O escritor Junot Díaz conta que quando era garoto imigrante e vivia em Nova Jersey, sentia-se marginalizado. Mas esse sentimento se desfez um pouco em 1981, quando estava na sexta série. Ele e seus amigos, colegas de aventuras com origens em reinos distantes –Egito, Irlanda, Cuba e a República Dominicana– mergulharam totalmente "num conceito completamente radical: o role-playing", sob a forma do jogo "Dungeons & Dragons" (D&D).
Jogando D&D e contando histórias sobre aventuras heroicas, "nós, garotos que vivíamos com a ajuda de benefícios sociais do governo, podíamos viajar longe", falou Díaz, 45, em entrevista dada por e-mail. "Vivíamos aventuras, tínhamos vitórias, éramos poderosos, triunfávamos, fracassávamos, e tudo isso de maneiras que teriam sido impossíveis no mundo maior, real."
"Para os nerds como nós, o D&D era como um horizonte adicional." O jogo funcionava como "uma espécie de aprendizado de contar histórias."
Angel Franco - 7.jul.2014/The New York Times | ||
O dramaturgo David Lindsay-Abaire é um dos autores influenciados pelo jogo Dungeons & Dragons, que completa 40 anos. |
Hoje o muito jogado e muito ironizado "Dungeons & Dragons", o primeiro RPG ("role-playing game", jogo em que os participantes representam papéis), tem 40 anos. No D&D, os jogadores se reúnem em torno de uma mesa, não de uma tela de vídeo. Juntos, usam ferramentas de baixa tecnologia, como mapas desenhados à mão e figurinhas de miniatura, para contar as histórias de protagonistas corajosos e astutos, como magos, elfos, guerreiros e anões que exploram masmorras e combatem trolls, orcs e humanoides monstruosos. Sacos de dados e enormes livros de regras determinam os resultados da história constante do game, que segue um formato livre.
Para certos escritores, especialmente os que cresceram nos anos 1970 e 1980, todo esse tempo passado jogando rendeu frutos. O D&D ajudou a dar um pontapé inicial em sua vida criativa. Como disse Díaz, o D&D "foi uma mídia narrativa que formou escritores de todos os tipos".
A liga dos escritores ex-jogadores de D&D também inclui o autor de "ficção esdrúxula" China Miéville ("The City & the City"); Brent Hartinger (autor de "Geography Club", um romance sobre adolescentes gays e bissexuais); Cory Doctorow, que escreve ficção científica e livros para o público adulto jovem; o poeta e ficcionista Sherman Alexie, o humorista Stephen Colbert e George R.R. Martin, autor da série "Guerra dos Tronos" e que ainda gosta de RPG. Entre outros que foram influenciados por D&D estão artistas e contadores de histórias da televisão e do cinema como Robin Williams, Matt Groening ("Os Simpsons"), Dan Harmon ("Community") e Chris Weitz ("American Pie").
Com o lançamento do novo "Dungeons & Dragons Starter Set" na terça-feira (15) e de livros de regras de D&D mais avançados ao longo do verão (do hemisfério norte), outra geração de antigos e futuros redatores pode encontrar inspiração no mapa rabiscado da masmorra e no segredo da Caverna do Dragão.
Díaz, que ensina redação no MIT (Massachusetts Institute of Technology), disse que seu primeiro romance, "A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao", que lhe valeu um Prêmio Pulitzer, "foi escrito em homenagem a meus anos como jogador". Oscar, seu protagonista, é "fanático por RPG". Ansioso por tornar-se um Tolkien dominicano, ele produz "dez, 15, 20 páginas por dia" de ficção de inspiração fantástica.
Díaz nunca chegou a tornar-se autor de ficção fantástica, mas atribui seu sucesso literário em parte a sua "infância e adolescência profundamente mergulhadas em narrativas fantásticas". Ele diz que aprendeu com o D&D "muitos dos elementos essenciais sobre a contagem de histórias, como dar ao leitor espaço suficiente para jogar".
Ele disse que geralmente era o mestre de seu grupo, o quase-narrador do jogo, árbitro das regras e responsável por definir o destino dos personagens.
O mestre precisa criar um mundo digno de crédito com uma história anterior, aventuras que os jogadores podem enfrentar e opções para viradas na trama. Isso requer habilidades tão diversas quanto as de diretor teatral, pesquisador e psicólogo –todas elas importantes para quem escreve. (Díaz disse que o grupo com quem jogava quando era garoto era mais como "um grupo improvisado, armado com alguns dados".)
Sharyn McCrumb, 66, autora da série "Ballad Novels", ambientada nos montes Apalaches, sofreu influência semelhante. Em seu romance cômico "Bimbos of the Death Sun", o D&D até ajuda a elucidar um homicídio.
"Eu sempre quis ser mestre, porque é o mestre quem precisa ter criatividade, bolando lugares, personagens e situações", ela disse. "Se for bem feito, o próprio jogo pode ser um romance."
Ethan Gilsdorf - 13.jul.2014/The New York Times | ||
Os dados utilizados no jogo Dungeons & Dragons |
O que torna uma história de D&D diferente de romances e outras narrativas é a improvisação e as respostas dos jogadores. As tramas são decididas pelo grupo. Como jogador de D&D, "é preciso convencer os outros jogadores que sua versão da história é interessante e válida", disse Jennifer Grouling, professora assistente de inglês na Ball State University. Ela estudou jogadores de D&D em seu livro "The Creation of Narrative in Tabletop Role-Playing Games" (A criação da narrativa em RPGs de mesa, ainda inédito no Brasil).
Se um mestre cria "um mundo entediante com uma trama pouco intrigante", ela disse, os jogadores podem seguir um rumo completamente diferente ou o árbitro pode vetar a ação de um jogador. "Acho que 'Dungeons & Dragons' pode fomentar as habilidades de trabalhar e escrever de forma colaborativa", disse Grouling. Díaz chamou a isso o "componente social colaborativo" do D&D.
Grouling também citou "o sentimento de controle sobre as histórias" como uma das razões principais pelas quais as pessoas gostam de RPGs. "O D&D está completamente na imaginação, e as regras são flexíveis; não existem as limitações" da ficção ou mesmo de um videogame programado, ela disse. Um romance é uma coisa acabada, escrita, editada e publicada; sua história não muda mais. No D&D, a trama sempre é mutável. Qualquer coisa pode acontecer.
O dramaturgo e roteirista David Lindsay-Abaire, 44, autor da peça premiada com o Pulitzer "Rabbit Hole", disse que o D&D "remete a um modo incrivelmente primitivo de contar histórias", algo que era ao mesmo temo "imersivo e interativo". O mestre do jogo lembra "o contador de histórias tribal que reúne as pessoas em volta da fogueira para contar histórias sobre heróis, deuses e monstros. É um acontecimento ao vivo, coletivo, onde tudo pode acontecer no momento."
Lindsay-Abaire disse que alguns de seus primeiros esforços de redação foram planejar aventuras de D&D. E o jogo o ensinou não apenas sobre tramas, mas sobre o desenvolvimento de personagens.
Jogar D&D também foi benéfico para escritores de não ficção. "O fato de atuar como mestre no D&D me ajudou a desenvolver o talento de pegar os elementos existentes no jogo e com eles criar uma narrativa coerente", contou Scott Stossel, editor da revista "The Atlantic" e autor de "My Age of Anxiety: Fear, Hope, Dread and the Search for Peace of Mind". "Mas você era limitado pelas regras do universo do D&D, o que, em termos de jornalismo, se traduz como ser limitado pelos fatos conhecidos."
Lindsay-Abaire concordou que os mundos fictícios precisam de regras. "Para quem uma história satisfaça, o público precisa entender como o mundo funciona", ele disse. "'Jogos Vorazes' é um exemplo perfeito de 'ok, estas são as regras desse mundo. Agora vá jogar nele'."
Grouling disse que, segundo sua pesquisa, os jogadores de RPG de mesa constantemente compararam sua vivência com os jogos com "ser protagonistas de seus próprios filmes ou escrever seus próprios romances".
Quanto a Díaz, "a partir do momento em que as meninas entraram na minha vida para valer, jogar games virou coisa do passado". Mas ele ainda sente saudades dos prazeres arcanos do D&D e acha que o legado do jogo ainda está com ele. "Não sei se eu teria conseguido fazer tão facilmente a transição de leitor para escritor, não fosse pelos games."
Tradução de CLARA ALLAIN