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    Edu Lobo e sua trupe de parceiros musicais

    ERIC NEPOMUCENO

    27/07/2014 03h16

    RESUMO Aos 70 anos, o compositor Edu Lobo tem sua trajetória narrada em "Edu Lobo: São Bonitas as Canções - Uma Biografia Musical" (Edições de Janeiro), e é um dos convidados da Flip, onde debate nesta sexta (1º) com Cacá Diegues. O trecho aqui destacado traz histórias das suas parcerias, com destaque para a com Chico Buarque.

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    Na geração de Edu Lobo, todos eram, em maior ou menor medida, jovens de classe média, universitários formados no contato permanente com livros. Todos ou quase todos, além da sensibilidade natural para a palavra cantada, tinham o hábito da leitura, o que foi decisivo para que a produção musical dessa geração tivesse alto nível de qualidade e também de exigência no que se referia às letras de canções.

    No caso de Edu, foram raríssimos os casos em que compôs uma música a partir de letras ou poemas. Mesmo assim, pelo menos uma dessas raras exceções resultou numa canção especialmente bem realizada, "O Tempo e o Rio", um poema de Capinam musicado por ele. A verdade é que Edu sempre preferiu trabalhar em parceria, ou seja, escrever a música, pedir a letra ao parceiro, e depois pouco a pouco irem ajustando resultado até chegar à forma fina, dada em conjunto.

    Paulo Garcez/Divulgação
    Tom, Edu Lobo e Vinicius no anos 70 no Rio
    Tom, Edu Lobo e Vinicius no anos 70 no Rio

    Edu também nunca teve o menor acanhamento de pedir a um parceiro que fizesse mudanças na letra. Nos seus tempos de juventude, e com a ousadia típica da idade, chegou a pedir a Vinicius que refizesse partes de uma letra. O argumento era direto: "Vinicius, não dá para cantar essa letra! Você faria outra?". Ele acabou fazendo, e reconheceu publicamente que, quando um garoto vinha e dizia que a letra não estava pronta, sentia-se renovado. Quis dizer, com essa afirmação, que achava normal que Edu, o garoto em questão, pedisse a ele para refazer trechos de determinadas letras (quais, nem um nem outro jamais contou). Mas Edu se lembra de uma cena de Vinicius, dias depois dessa primeira vez em que pediu mudanças em uma letra. Era uma encontro descontraído, em que o poeta deixou o uísque descansando no copo, olhou Edu nos olhos e disse: "Não entendi aquilo que você fez comigo. Se fosse o Tom, não aconteceria jamais. Enfim, tudo bem, não se preocupe: você ainda é um garoto". Edu recorda cada detalhe daquela conversa, mas insiste: "Eu devolvi a letra para ele porque não podia, não posso cantar uma coisa de que não gosto, não importa quem tenha escrito".

    Essa liberdade, Edu teve também com outros parceiros. Todos eles, letristas de primeira linha. Alguns, como Capinam e Cacaso, vinham diretamente da poesia escrita. Outros, como Gianfrancesco Guarnieri e Ruy Guerra, de outras áreas, como a dramaturgia, no caso de Guarnieri, e o cinema, origem de Ruy Guerra.

    ESCOLHAS

    A afinidade com cada um dos seus parceiros sempre fez com que Edu soubesse exatamente quem chamar para escrever as letras das músicas que acabava de fazer. Foi o que aconteceu com Capinam em "Ponteio", por exemplo, ou com Paulo Cesar Pinheiro em "Vento Bravo", e com Aldir Blanc em "Ave Rara".

    Divulgação
    Edu Lobo e Chico Buarque
    Edu Lobo e Chico Buarque

    O trabalho de Edu para projetos de teatro ou de musicais fez com que se aproximasse de diversos parceiros, nomes como Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha e o próprio Vinicius de Moraes, em trilhas para filmes e também em peças de teatro.

    Das canções escritas especialmente para o cinema, o teatro e a televisão, nem todas tiveram vida própria, sobrevivendo ao próprio tempo de cada uma dessas realizações. Outras, ao contrário, ganharam longas sobrevidas. "Upa, Neguinho" é um exemplo redondo. Ou "Beatriz" e "Valsa Brasileira", ambas feitas com Chico Buarque, seu parceiro mais constante, com quem compôs 42 canções.

    Nos tempos de início de carreira dos dois, o contato entre Edu e Chico era restrito a breves encontros em São Paulo.

    Ambos eram contratados da TV Record, muito poderosa na época, sobretudo em razão dos festivais de música popular. Assim, encontravam-se eventualmente nos estúdios da emissora, na rua da Consolação. Mas a relação se limitava a isso. "Não tínhamos grande proximidade", conta Edu. "No esquema da televisão daquele tempo, éramos postos para competir. Eu ganhava um festival, ele ganhava outro. Mas é claro que entre nós não havia nenhuma animosidade, um não tinha nada contra o outro. Só não éramos próximos, não éramos amigos como ficamos tempos depois e continuamos até hoje."

    Era como pertencer a grupos diferentes. Edu vinha das reuniões promovidas ao redor de Vinicius nos apartamentos da zona sul do Rio. Assim como os também jovens Dori Caymmi, Marcos Valle, Francis Hime. Chico morava em São Paulo e tinha outras amizades e relações. Havia os amigos de colégio e os da faculdade de arquitetura, com quem mantinha mais contato. Quando começou a se apresentar em programas de televisão, suas companhias mais constantes eram os integrantes do MPB-4, Miltinho, Magro, Aquiles e Ruy Faria.

    Gostava de estar com compositores da velha guarda, como Nelson Cavaquinho, por quem tinha admiração ilimitada. Edu e a turma do Rio eram mais de reuniões fechadas; Chico e a turma de São Paulo eram mais de serestas e noites varadas em bares.

    A primeira aproximação profissional dos dois aconteceu por intermédio de Ruy Guerra, parceiro de Edu em várias canções e parceiro de Chico na autoria da peça e das letras das músicas de "Calabar: O Elogio da Traição". Em 1973, tempos do general Emílio Médici, quando o regime militar endureceu intensamente, foi Ruy Guerra quem sugeriu que Edu se encarregasse dos arranjos da trilha da peça, proibida antes da estreia, e também do disco, que acabou tendo parte das letras ceifada pela censura.

    Sete anos mais tarde, Edu terminou uma música e achou que ela pedia uma letra do Chico. Telefonou dizendo isso a ele, e perguntou se não topava escrever. Chico disse que sim, e pediu para ouvir a música. Edu mandou uma fita com a melodia, e assim nasceu "Moto Contínuo". Foi a primeira aproximação autoral, e uma das poucas músicas que fizeram sem estar ligada a algum projeto de peça, balé ou filme. Mas é de sua parceria com Chico Buarque em projetos que surgiu o maior número de canções "clássicas" da dupla. E essa parceria, especialmente produtiva, levou um bom tempo para surgir. Quando aconteceu, ali, em 1980, parecia já consolidada.

    Nesse mesmo ano, Edu escreveu a trilha instrumental para um espetáculo do Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, "Jogos de Dança". Eram seis temas criados com a ideia de serem dançados.
    Edu escreveu tudo, as músicas e os arranjos, e o espetáculo foi muito bem-sucedido. Tanto que, dois anos depois, veio um novo convite, do mesmo grupo, para que ele criasse outro espetáculo.

    Edu sugeriu que essa nova empreitada tivesse também canções, e não apenas música instrumental. Queria voltar a trabalhar num tipo de composição que sempre exerceu uma atração especial sobre ele: um espetáculo musical. Começava a nascer "O Grande Circo Místico".

    "Quando chegamos à conclusão de que seria um musical baseado no poema de Jorge de Lima, por ideia de Naum [Alves de Souza], eu imediatamente pensei no Chico para fazer as letras. Não havia possibilidade de ser outro: tinha de ser ele, que aceitou na mesma hora. Foi nosso primeiro trabalho de fôlego, no total fizemos onze canções. Trabalhamos tão bem, que poderiam ter sido mais", conta Edu.

    DINASTIA

    Já naquele primeiro projeto, o processo de criação foi rigoroso. O diretor Naum Alves de Souza fez um roteiro inicial, partindo de um poema do poeta parnasiano Jorge de Lima (1893-1953), de sua fase espiritualista, publicado em 1938 no livro "A Túnica Inconsútil". Os versos contam a história do filho de um médico da aristocracia que se apaixona por uma equilibrista. Da união desse casal improvável surge uma dinastia circense.

    Em seguida, já com a participação de Edu e Chico, foram sendo detalhados os personagens apenas esboçados no poema original. Outros foram criados especialmente para o musical. Os dois se reuniam, e pouco a pouco iam criando os personagens.

    Partiam de perguntas básicas. Como seria a Lily Braun? Que tipo de música seria a do seu personagem? "Surgiu a ideia de um blues", conta Edu, "mas um blues sofisticado, mais para jazz que propriamente para blues. E o Chico, na letra, conta quem é Lily Braun, estende a história do personagem muito além do que estava no poema original. Na verdade, ele inventou essa Lily Braun."

    A "Ciranda da Bailarina", outra canção símbolo de "O Grande Circo Místico", surgiu por acaso. Era quase uma brincadeira que Edu começou a esboçar no violão. A canção cresceu, foi para o piano, e quando ficou pronta, Edu explicou a Chico que era a sua versão do "Poema Enjoadinho", do Vinicius de Moraes. Aquele que diz, entre um verso e outro: "Filhos?/ Melhor não tê-los!/ Mas se não os temos/ como sabê-lo?". E a saga segue com as estripulias das crianças que bebem xampu, engolem botões, chupam gilete, ateiam fogo no quarteirão, para concluir: "Porém, que coisa/ Que coisa louca/ Que coisa linda/ Que os filhos são".

    Edu achava que aquela canção "enjoadinha" merecia letra. "E Chico fez uma letra extremamente engraçada", diz ele, "extremamente bem-feita. Eu morri de rir quando ouvi a primeira vez".

    Um trecho da canção dizia: "Procurando bem/ Todo mundo tem pereba/ Marca de bexiga ou vacina/ E tem piriri, tem lombriga, tem ameba/ Só a bailarina que não tem". "Parece uma caixinha de música, uma cirandinha, e o interessante é que no espetáculo -e no disco- ela cria um contraste. Você tem aquela orquestra imensa, aquela orquestração brilhante, aquela massa sonora, com muitas músicas tristes, muitas letras que refletem situações dramáticas, e de repente vem a caixinha de música... uma coisa mais leve."

    Enquanto compunham as canções do balé, os dois imaginavam a voz que seria convocada para cantar os personagens. "Lily Braun", por exemplo, foi feita com os autores já pensando em Gal Costa. Milton Nascimento foi outro escolhido sem vacilar: assim que "Beatriz" ficou pronta, os dois concluíram: "O Milton. Tem de ser o Milton".

    Da mesma forma que a personagem Lily Braun foi construída basicamente por Chico, Beatriz tampouco aparece na obra de Jorge de Lima. No poema, o nome do personagem é outro: Agnes. "E aí, pensamos: o que rima com 'Agnes'? Era impossível". Chico mudou o nome para Beatriz, estendeu e completou a personagem criada pelo poeta, e a canção tornou-se clássica já ao nascer.

    TIM

    Se em "O Grande Circo Místico" a canção "Beatriz" tinha na voz de Milton Nascimento o destino determinado, e se "Lily Braun" nasceu endereçada a Gal Costa, "A Bela e a Fera" foi dirigida a Tim Maia. "O personagem era mesmo uma fera", comenta Edu, "o halterofilista que dava nó em paralela, almoçava rolimã, o homem mais forte do planeta, tórax de Superman e coração de poeta. Ora, se não fosse o Tim, quem seria?"

    Edu mal o conhecia. Tinham se encontrado umas poucas vezes em corredores de gravadoras ou de emissoras de televisão.

    Telefonou para o cantor, explicou qual era o plano, contou do espetáculo e disse que tinha uma música que ele cantaria melhor do que ninguém. E mandou a gravação. Tim Maia recebeu a fita, ouviu a música várias vezes seguidas e ligou dizendo que aceitava, sem dúvida. Estava entusiasmado. No entanto, já dentro de estúdio, a gravação a ponto de começar, surgiu uma diferença entre o compositor e o intérprete.

    Havia determinada nota, na frase "ouve a declaração, oh, bela", que na hora da palavra "bela", Tim cantava outra. Edu foi ao piano, tocou a nota certa, a que ele tinha escrito. Tim insistia: achava a nota "esquisita".

    Paciente, conhecedor do temperamento explosivo do convidado, Edu explicou que ele estava mudando a nota, e que a canção ficava errada, perdia força. A nota que Tim queria cantar se chocava com o acorde escrito por Edu. Tim Maia pensou dois segundos, e concordou. "Você tem razão, a nota certa é essa aí". E depois completou: "Mas não dá: vou cantar do meu jeito mesmo, do jeito que eu sei, porque aí o povo vai entender". Só tempos depois, quando Ney Matogrosso gravou a mesma música, ela foi registrada tal como foi escrita. Mas a gravação que se tornou mais conhecida foi a de Tim Maia -a versão errada que deu certo.

    ERIC NEPOMUCENO, 66, é jornalista, escritor e tradutor. O livro "Edu Lobo: São bonitas as Canções - Uma Biografia Musical" (Edições de Janeiro) será lançado na Flip.

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