RESUMO O conceito de "formação", como proposto por Antonio Candido, alçado a paradigma acadêmico, isolou a literatura brasileira da revisão pós-colonialista. Crítico defende que o estudo das letras nacionais não mais se dê sob a perspectiva de seu desenvolvimento, mas do ponto de vista de sua inserção no panorama internacional.
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Os dois volumes da "Formação da Literatura Brasileira", notável obra historiográfica de Antonio Candido, eram o principal companheiro de trabalho de todo jovem que, em fins da década de 1950 e durante as décadas seguintes, iniciava os estudos universitários em história da literatura nacional.
Passado mais de meio século, torna-se indispensável invocar o dom do livro ao estudante e a afeição do aluno ao livro e ao seu autor. Uma palavra, ou melhor, um conceito os fascinava e atava definitivamente os três -formação.
O metódico saber literário que o aluno recebe na faculdade de letras é parte capital na sua ampla formação universitária e se confunde, na teoria e na prática da leitura em casa ou na sala de aula, com o saber que o pesquisador lhe doa sob a forma de livro em que analisa e interpreta a nossa iniciação literária.
Alberto Baraya | ||
Acima e abaixo, "Orquídea Amarela em Estrutura de Exibição Pré-Colombiana", da série "Herbário de Plantas Artificiais - Expedição Berlim" (2014) |
Pela escrita da "Formação da Literatura Brasileira" e pela sua leitura, pesquisador, aluno e a própria literatura escrita por brasileiros desde meados do século 18 significam estar em vias de chegar à plenitude de suas respectivas e variadas vidas. Tanto as figuras humanas quanto as letras envolvidas por eles ainda eram verdes, por isso trabalhavam em uníssono a favor das respectivas formações.
O aprendizado escolar do estudante se espelha no trabalho original de pesquisa do universitário que, por sua vez, se espelha no próprio objeto de estudo -a literatura brasileira no processo de sua afirmação como necessariamente adjetiva no interior de um conjunto bem mais vasto e fascinante.
Unidos, os três vivem o lento, sofrido e gradativo processo da sua formação. Vivem o lento, sofrido e gradativo processo de interiorização de um saber que lhes é exterior, embora cada um e os três saibam que, sem a apreensão histórica e crítica daquele saber estranho, daquele saber intruso, não conseguiriam elaborar o alicerce indispensável para a grandeza plena das respectivas personalidades.
Como se esculpidos na cabeça dum alfinete, esse aluno, aquele livro e seu autor podem ser hoje vistos de maneira emblemática como corresponsáveis pela produção intelectual do século 20 brasileiro, inaugurada no ano de 1900 pelas memórias de Joaquim Nabuco, "Minha Formação". Nesse título o vocábulo -então definitivamente conceito- também tinha ganhado direito de cidadania em língua portuguesa e carreava o significado da sua importância no processo de amadurecimento pessoal e cultural do indivíduo e do cidadão brasileiro na passagem do século 19 para o 20. A boa formação era então -e até hoje, infelizmente-uma dádiva da família ou do Estado aos privilegiados.
No correr do século 20, o conceito de formação se torna mais e mais elástico por nossas terras. Em 1942, o historiador Caio Prado Jr. investigava a "Formação do Brasil Contemporâneo", enquanto o economista Celso Furtado, nos anos 1950, a "Formação Econômica do Brasil". E um dos prováveis discípulos de Antonio Candido, Paulo Eduardo Arantes, de perfil semelhante ao do universitário já mencionado, informava os estudiosos sobre -e o cito- "a formação da filosofia uspiana (uma experiência dos anos 1960)". Arantes aproveitou o adjetivo "uspiano" para lançar sua irônica defesa da boa formação: "[...] afinal um pastiche programado em início de carreira é bem melhor do que uma vida inteira de pastiches inconscientes". T. S. Eliot se referia a esse fenômeno quando, nos anos 1920, estabeleceu a célebre distinção entre "talento individual" e "tradição".
Não é fácil represar neste curto depoimento a abrangência semântica de "formação" no nosso século 20. Mas, caso se recorra ao conceito de "episteme" como definido na história das ideias por Michel Foucault, pode-se considerá-lo único e elástico na sua rentabilidade discursiva. E intenso na multiplicidade de visões históricas e de versões identitárias do brasileiro e da nação brasileira, a que ele deu curso.
Ao se elevar à condição de paradigma, "formação" funda e estrutura, no século 20 brasileiro, os múltiplos saberes confessionais, artísticos e científicos que compartilham certas características gerais ou formas do nosso ser e estar em processo de desenvolvimento.
De posse desse paradigma, o analista deve destrinçar menos os discursos acabados e publicados sobre o brasileiro ou a sociedade brasileira, de responsabilidade de X ou de Y, e dedicar-se mais ao conhecimento das condições materiais e linguísticas da produção de um feixe exemplar de narrativas afins e complementares.
JOGOS
Dentro do paradigma, o vocábulo se empresta a inevitáveis jogos semânticos. No sentido que lhe empresta Antonio Candido, o do processo soberano e moderno de construção do Brasil literário, "formação" reativa uma rede discursiva de carga histórica que arrebata o adolescente interessado pela literatura (nacional) no período de sua "formação", agora tomada no sentido que lhe empresta Nabuco, o do amadurecimento pessoal e cultural do cidadão brasileiro, aqui ou no estrangeiro.
No interior do paradigma, a ideia de formação comporta, pois, vários e diferentes galhos semânticos, embora guarde sua origem única germânica: "Bildung".
"Bildung" tem indiscutível conotação pedagógica e designa a formação, qualquer exemplo de formação, como lento e longo processo de interiorização do saber. É instrumento pedagógico contemporâneo da própria data que Candido designa para o começo da literatura brasileira -a segunda metade do século 18, quando vêm à luz os poemas de Cláudio Manoel da Costa na província das Gerais.
Por uma dessas coincidências extraordinárias, a data do século privilegiado –o 18– coincide com a idade em que o estudante brasileiro presta normalmente o vestibular para a faculdade eleita. A data do século e a idade do aluno -no que se refere às respectivas formações- são coincidentes, embora não sejam gratuitas. Na Europa, o conceito de formação é cunhado pelo idealismo alemão e se torna peça importante no surgimento do ideário iluminista. Confunde-se com a "paideia" dos gregos e o "humanitas" dos latinos. Os três traduzem a indispensável busca pela excelência humana para chegar à idade madura letrada, tanto no plano individual quanto no plano comunitário e coletivo.
Se cerceado pelas categorias de estilo de época e transposto para a produção literária descrita por Antonio Candido, "Bildung" passa a qualificar nosso desejo literário de independência e de liberdade sob o jugo do poder colonial da cultura portuguesa, nosso desejo de autonomia política e literária.
Ele nomeia o trabalho indispensável dos cidadãos privilegiados e letrados para que o adjetivo "nacional" aposto à literatura -ou à nação e sua história, economia, etc.- possa se afirmar como autêntico e se manter estável e rentável no conjunto das nações modernas do Ocidente. Como o próprio autor afirma, sua obra maior relata "a história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura". Fala sobre o espírito do Ocidente à procura de uma nova morada nesta nossa parte do mundo.
TRILHOS
Trens de ferro -e bondes- descarrilam. Os sistemas de pensamento e as metodologias de leitura também e, ainda, os paradigmas do saber. Às vezes, o descarrilamento vem da falta de manutenção das condições ótimas de funcionamento dos trilhos. Não é o caso do paradigma "formação" tal como o configuramos rapidamente com a ajuda de Foucault, ou do sistema literário proposto por Candido. Grandes intelectuais brasileiros, alguns já citados, atestam a favor da sua boa manutenção.
Às vezes, a avaria que leva ao descarrilamento do sistema literário nacional é tão imprevista quanto uma tempestade.
Logo após a Segunda Grande Guerra Mundial, o Primeiro Mundo atravessa uma fase de grande euforia econômica e social e, de repente, é questionado nas raízes pelo drama político das diversas nações colonizadas do continente africano, de que foi exemplo maior a Guerra da Independência Argelina (1954-1962). As colônias lutam a ferro e fogo contra o poder metropolitano. Buscam a independência das potências colonizadoras europeias, conquistada pelos brasileiros ainda no século 19.
Alberto Baraya | ||
Aparentemente, diz o famoso e chocante provérbio português, o cu nada tem com as calças. África colonial, de um lado, e Brasil moderno, modernista, do outro. Mas sistema algum está isento de descarrilamento imprevisto na agenda e no calendário. Em outras palavras, sistemas influentes de pensamento não são autoimunes, embora este ou aquele paradigma, este ou aquele sistema tenha sido apetrechado em favor da própria imunidade. É o caso do sistema literário proposto por Candido.
Ao cortar ao meio a história cultural brasileira pelo conceito disciplinar de arte literária no Ocidente, o historiador injeta no corpus da produção cultural no Brasil, de 1500 ao presente, a vacina que nomeou "manifestações literárias". Com isso, imuniza o sistema competentemente estetizado, preservando-o do descarrilamento pela África colonial. Libera o estudioso das letras do potencial semântico oferecido pelos quase dois séculos e meio de vida em terras brasileiras do vírus colonial lusitano.
OCEANO
Informe-se que, em 1959, ano em que se publica "Formação da Literatura Brasileira", o moçambicano Rui Knopfli estreia na poesia com o livro "O País dos Outros". Vivendo na costa leste da África colonial, banhada pelo Oceano Índico, o futuro grande poeta se beneficia, no entanto, do português literário mestiço, do português atlântico descolonizado que os modernistas Manuel Bandeira ("Evocação do Recife") e Carlos Drummond ("Consideração do Poema"), entre outros, lhe oferecem em coleções de poemas que chegam de navio à pátria colonial.
Pelo viés combativo e cosmopolita, os versos dos já canônicos modernistas brasileiros desestabilizam a pachorrenta e pouco poética identidade nacional da colônia moçambicana e levam Knopfli, como observa Luís Sousa Rebelo, "a escrever uma poesia sem os exotismos gratos ao gosto do leitor metropolitano". Leia-se o belíssimo, sofrido e corajoso poema "Terra de Manuel Bandeira".
Quando me torno bolsista do governo francês em 1961 e parto em viagem de estudos a Paris, o vírus colonial lusitano passa a me afetar no cotidiano europeu tomado pelos plásticos explosivos ("plastic") dos argelinos e resolvo tratá-lo com afeto (afinal ele é parte indireta da minha formação) e criticamente. Vale dizer, o afeto evita que eu me imunize com a vacina.
Com o corpo tomado por virose pós-colonial, deliro. Instruído pelos intelectuais e escritores africanos e pela França, apaixono-me pela poesia de Aimé Césaire. Leio as revistas "Temps Modernes" e "Présence Africaine".
Ao final do ano escolar de 1961-62, ocorre um segundo descarrilamento na formação do jovem latino-americano, que me retira às pressas de Paris e me leva a interromper a redação da tese de doutorado sobre André Gide. Concorro ao posto de professor na Universidade do Novo México, nos Estados Unidos da América. Passo de doutorando em literatura francesa moderna na Sorbonne a professor das literaturas brasileira e portuguesa em antigo território indígena norte-americano, cujo centro ultramoderno é a cidade de Albuquerque.
O vírus colonial lusitano é inerente à minha atividade docente. Na sala de aula e diante dos alunos, ele convive lado a lado com a vacina brasileira injetada por Candido no corpus da nossa história cultural. Em 1963, por exemplo, exercito-me a comparar o "Canto 9" de "Os Lusíadas" com famoso poema de "Claro Enigma" e ouso falar de tradição no modernismo. Escrevo sobre o "tópos" da "máquina do mundo" em Camões e Drummond. Em poema que recebo pelo correio (hoje na "Poesia Completa"), intitulado "A/Grade/Cimento", o itabirano acusa a leitura do ensaio. Pelo prefixo "a", rejeita tanto a "grade" de leitura quanto o "cimento" que solda Cammond & Drummões, para retomar o título do poema e o verso irônico inicial.
IMPULSO
Tendo por impulso as consequências funestas do duplo descarrilamento, falo sobre o período que vai de 1962, ano em que chego a Albuquerque, a 1972, ano em que inicio o movimento de regresso ao Brasil universitário.
Inicialmente, o período de dez anos se informa pelo abandono gradativo do conceito de literatura (no sentido de "belles lettres") e o desejo de legitimação da abrangente noção de cultura (posteriormente, ela se tornará mais substantiva na elaboração da disciplina estudos culturais).
Ao desconstruir o conceito disciplinar de literatura, devidamente afiançado pela periodização por estilo de época e adotado pelas faculdades de letras, a atitude indisciplinada e corrosiva do jovem professor apelava para a busca do conhecimento de outra e anterior formação, a dos discursos culturais identitários do Brasil, de que as "belles lettres" seriam apenas a parte sublime e nobre.
Por outro lado, a abordagem sociológica da produção discursiva colonizadora começava a ratear nas nações africanas e asiáticas recém-descolonizadas. As narrativas de nítida origem europeia tinham de ser contrabalançadas pelos textos dos falantes nativos, que desconheciam a escrita fonética. A produção cultural das nações independentes é magnetizada pela oralidade, assim como será a fala dos subalternos latino-americanos -por exemplo, Rigoberta Menchú, indígena guatemalteca.
No meu caso, a etnologia -então sendo desbravada pelo extraordinário trabalho de Claude Lévi-Strauss em "Tristes Trópicos" (1955)- conduzia à abordagem multicultural no exame do vírus colonial e se impunha como ferramenta auxiliar. Graças a ela, entenderia melhor os vários processos de alteridade articulados pela relação cultural entre metrópole e colônia, ou seja, pela sobreposição à etnia indígena dos valores culturais da etnia europeia.
Sem ser mero silêncio, o outro brasileiro não seria -embora estivesse sendo dado pela tradição eurocêntrica- o mesmo europeu. Duplicata. Por essa fórmula simplificada, fui levado a questionar o conceito de identidade e a conjurar, enfatizando-a, a noção de diferença, de que Jacques Derrida será o grande teórico a partir de 1967.
O mesmo europeu modelava e instruía o outro brasileiro, na maioria das vezes de maneira cruel e sanguinária, como atestavam os bons estudos sobre aculturação. Se havia história dever-se-ia escrevê-la a contrapelo da fé e do império (como poetava Camões), ou seja, do ponto de vista dos vencidos.
Em minhas anotações e na sala de aula, abandono gradativamente o objeto livro e me adentro analiticamente pela sua fragmentação em texto, cuja prática de leitura me fora inculcada por formação francesa. Refiro-me à famosa "explication de texte". A explicação de texto serve para retirar o objeto -qualquer texto do período colonial brasileiro- da leitura feita pelos notáveis historiadores e eruditos luso-brasileiros.
Como me valer do bom aprendizado teórico e ler textos -sem prejulgá-los- que escapam totalmente aos princípios estéticos determinados pelos formalistas russos da qualidade literária? Antes de ser uma disciplina de estudos, a literatura me fornecia tanto uma metodologia de leitura quanto alicerçava os primeiros passos no que viria a ser definido como teoria pós-colonial e estudos culturais.
Jogava e, munido das fichas de jogador, fiz uma aposta. Catava metáforas no texto da época colonial e, a partir delas, apreendia o modo como cada uma servia para montar e revelar, na superfície meramente descritiva do texto, as manobras eficientes do colonizador, embora enrustidas a olho nu e ainda cercadas de mistério nas primeiras narrativas historiográficas que iluminavam o Brasil.
Aparentemente inocente, a metáfora carreava carga semântica inexplorada e explosiva e, por isso, requeria a descodificação por parte do leitor pós-colonial brasileiro. Este entregava o texto historiográfico à sua visitação literária e etnográfica, ao mesmo tempo em que abria sua historicidade no mais profundo da dilatação da fé e do império pelos marinheiros lusitanos. O estudo de cada metáfora mostrava a organização de um padrão linguístico ambíguo que estava na base dos textos identitários, escritos por estrangeiro e, depois, por brasileiro, que se tornariam canônicos com o correr dos séculos.
COBAIA
Minha primeira cobaia foi a "Carta de Pero Vaz de Caminha", que líamos na edição em português arcaico e moderno dos Nossos Clássicos, evitando com cuidado a poderosa edição de Jaime Cortesão. Intuía que, pelo privilégio concedido a certa(s) metáfora(s), o texto da carta abria uma fascinante descendência na história da cultura e da literatura brasileira, cujos tataranetos no modernismo brasileiro são "Macunaíma" (Mário de Andrade) e "Poesia Pau-Brasil" (Oswald de Andrade).
A primeira metáfora privilegiada, dada, aliás, como "principal" pelo próprio texto, foi "semen" em latim, semente em português, e sua descodificação pode ser feita a partir do sintagma de origem bíblica: "Semen est verbum Dei" (A semente é a palavra de Deus).
No momento em que o rei de Portugal toma posse da carta como legítimo destinatário, também toma posse da terra e dos seres humanos por ela descritos pela primeira vez. A carta cria para a história o acontecimento da descoberta do Brasil por país europeu. Os cinco séculos de uma sociedade, sua organização social, política e econômica estão lá.
Paralelamente à metáfora "semente", levantei outra, que servia para caracterizar o indígena desconhecido dos portugueses. Ainda na língua latina, os jesuítas dirão que ele era "tanquam tabula rasa" (como tábua rasa). Já aí meu bom auxiliar era o então desconhecido livro de Mecenas Dourado, "A Conversão do Gentio" (1950), encontrado na biblioteca da Universidade do Novo México.
O simulacro analítico da carta de Caminha associa a metáfora da semente à metáfora da tábua rasa para oferecer ao leitor o relato histórico na sua verdade colonial: a palavra de Deus se imprimiria com toda a facilidade na página em branco da mente indígena.
Tal como recomposto hermeneuticamente pelas metáforas de alto poder colonizador, o modo de pensar, de observar e de escrever de Vaz de Caminha predetermina o encontro imprevisível entre duas etnias que se desconheciam mutuamente. Não havia possibilidade de conflito sanguinário. Os bons valores ocidentais seriam naturalmente escritos na mente virgem e acolhedora dos indígenas.
Ainda no excepcional 1959, Sérgio Buarque de Holanda publica o esplêndido "Visão do Paraíso". Por sua leitura eu acertava (como se acertam ponteiros de relógio) minha proposta: "Como nos primeiros dias da Criação, tudo aqui era dom de Deus, não era obra do arador, do ceifador ou do moleiro".
De acordo com o simulacro analítico que então esboço, a descendência colonial de Caminha passa -em movimento de repetição e de diferença- pelo padre Antônio Vieira e o "Sermão da Sexagésima" (1655). Inspirada pela parábola bíblica do semeador (Mateus, 13, Marcos, 4) e com apoio nas pernas das duas metáforas que caminham de maneira otimista pela escrita de Caminha, a fala na Capela Real de Lisboa tem ¾ do seu conteúdo tomado pelos descarrilamentos ocorridos durante o primeiro período de evangelização no Brasil.
Passa também pelo romântico José de Alencar e "Iracema" (1865), onde a metáfora bíblica ganha conotação amorosa e serve a traduzir o processo conturbado, embora pacífico, da posse pelo macho português da fêmea indígena. O licor de jurema, oferecido a Martim, escancara o escândalo da miscigenação sem estupro. O sêmen de Martim fertiliza o corpo virgem de Iracema e dele nasce o mestiço Moacir, cujo nome em tupi-guarani significa "filho do sofrimento".
Naquele momento, a descendência colonial da semente ia até o pré-modernista Lima Barreto e o romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma" (1915). Se atar a observação de Sérgio Buarque, já citada, a Jacques Derrida, direi que Lima Barreto era o primeiro a desconstruir a metáfora da semente.
Nada no Brasil, dizia o romance, seria obra de Deus. O discurso literário desconstruía a primazia do discurso espiritual sobre o material, primazia estampada nas muitas narrativas que descrevem o processo da colonização lusitana/jesuítica nos trópicos. Refiro-me à segunda parte do romance de Lima Barreto, onde se frustra o desejo de Policarpo em cultivar a semente (agrícola) em território brasileiro. Anos depois, Mário de Andrade escreveria em "Macunaíma": "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são". Já então o texto da carta é motivo de paródia.
Pouco a pouco, o esquema inicial foi-se enriquecendo e redundou num curto e temeroso ensaio, "A Palavra de Deus", que escrevo no final da década de 1960 e publico no número 3 da revista "Barroco" (abril de 1971), dirigida por Affonso Ávila. Pouco mais tarde, ele foi também testado no primeiro curso que dou na PUC-RJ como professor visitante. Levava o título de "A semente, ou a impossibilidade de se escrever a origem".
Associada a "semente", a palavra "origem" é um tanto pedante, mas julgava-a importante para trabalhar a distinção entre "origem" (valores ocidentais) e "começo" (valores brasileiros), que tomei de empréstimo a Joaquim Nabuco. Encaminho os dois conceitos, com a ajuda de Derrida, à desconstrução da literatura comparada.
A fim de ir até à origem, eu tinha de abandonar o campo adjetivo em que a literatura nacional fora inserida e me adentrar por uma literatura comparada também pós-colonial. Para tal, tinha de considerar o modo como encarava e vinha lendo o vírus colonial lusitano. Precisava constituir as bases de uma disciplina acadêmica que recusaria adotar o centramento europeu -sua esplêndida e trágica tradição milenar- como forma de organizar e qualificar a produção literária nas metrópoles colonizadoras e sua disseminação inferior e desafortunada nas colônias.
Foi naquela época que tive a ideia de introduzir nos estudos sobre literatura comparada a noção de "entre-lugar", espaço negociável de leitura das literaturas latino-americanas e das que passaram por processos semelhantes de colonização, cujo principal intuito era dar o troco pela diferença (pela originalidade), valor sempre neutralizado pela literatura comparada tradicional.
Redijo em 1972 a palestra "O entre-lugar da literatura latino-americana", logo traduzida e publicada em inglês, que hoje se encontra na coletânea "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco).
MILÊNIO
Abandono a memória e me reinstalo no novo milênio. Termino por uma nota aparentemente melancólica, mas, na verdade, otimista.
Dou-me conta do esgotamento dos vários, diferenciados e notáveis "discursos de formação" que constituíram o paradigma desenvolvimentista como tarefa prioritária no crescimento da jovem nação brasileira.
A exaustão do paradigma não o aliena. Assinala, antes, que ele está a perder a condição de prioritário. Novas condições materiais definem o novo milênio brasileiro. Elas passam a exigir outro feixe amplo e crítico de discursos afins e complementares, que constituirão novo paradigma -o da "inserção" do Brasil no conjunto das nações.
Tendo sido esclarecido (e não resolvido, obviamente) o modo como o sujeito brasileiro se automodelou como cidadão e acomodou nos trópicos a emancipação de uma sociedade jovem e moderna, delega-se hoje ao Estado nacional democrático papel e funções internacionais. Cosmopolita, a nação está habilitada a tomar assento no plenário do planeta. Automodelado, o sujeito discursivo -confessional, artístico ou científico- pode e deve dar-se ao luxo da crítica e da autocrítica em novo paradigma.
Nota: Versão mais longa deste texto será apresentada pelo autor na Universidade Tres de Febrero, em Buenos Aires, no dia 2/10, em simpósio que o homenageia.
SILVIANO SANTIAGO, 77, escritor e crítico literário, é autor de "Mil Rosas Roubadas" (Companhia das Letras) e de "O Cosmopolitismo do Pobre" (ed. UFMG). Tornou-se na semana passada o primeiro brasileiro agraciado com o Prêmio Iberoamericano de Letras José Donoso.
ALBERTO BARAYA, 46, artista plástico colombiano, representado no Brasil pela galeria Nara Roesler, participa da coletiva "Beyond the Supersquare", no Bronx Museum of the Arts, em Nova York, em cartaz até 11/1/2015.