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    Tinhorão de volta à roda

    FABIO VICTOR

    21/09/2014 02h58

    RESUMO O historiador José Ramos Tinhorão protagonizou refregas ao se posicionar contra movimentos, como a bossa nova e o tropicalismo, e ícones da música popular. Aos 86, distante do noticiário e preparando o 29º livro, o crítico marxista, que diz ter rompido com a vida burguesa nos anos 80, segue inquieto, amado e odiado.

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    Sentado com as pernas abertas numa cadeira de boteco, as mãos espalmadas sobre os joelhos, José Ramos Tinhorão observa a roda de samba em sua homenagem. Na véspera, 7 de fevereiro de 2014, ele completara 86 anos, daí o motivo da festa.

    "Estou vivendo com você/ Num martírio sem igual/ Vou largar você de mão/ Com razão/ Para me livrar do mal", canta a roda, formada pelos grupos Terra Brasileira e Samba de Terreiro de Mauá, por amigos e admiradores.

    A "Para me Livrar do Mal" seguiram-se "Se Você Jurar", "Nem É Bom Falar", "Choro Sim", "O Que Será de Mim", "É Bom Evitar" e várias outras de Ismael Silva: em deferência ao homenageado, o repertório daquele sábado se concentrou no sambista do Estácio, o preferido de Tinhorão.

    É uma tarde abafada do mais quente verão da história de São Paulo, e a roupa do aniversariante –calça, camisa, sapatos e meias sociais– destoa do clima de praia no asfalto instalado na calçada do bar da Vila Buarque, região central de São Paulo.

    Destoar faz parte da natureza do velho historiador e crítico. José Ramos Tinhorão ganhou visibilidade nacional nos anos 1960 por, em artigos na imprensa, menosprezar a bossa nova enquanto o Brasil e o mundo a celebravam, algo que repetiria anos mais tarde com o tropicalismo ou qualquer manifestação que em seu entender maculasse a pureza das raízes populares da música nacional.

    Zé Carlos Barreta/Folhapress
    Tinhorão em sua casa, na região central de São Paulo
    Tinhorão em sua casa, na região central de São Paulo

    Ali nasceu o rótulo de crítico radical marxista e nacionalista que, alimentado à farta pelo próprio, jamais se descolaria dele, mesmo porque, ao se reinventar como historiador da cultura urbana, o rotulado manteve seus dogmas e sua ortodoxia.

    Quem passa pelo cruzamento das ruas General Jardim e Dr. Vila Nova nem se dá conta de quem seja o senhor festejado, o que parece compreensível.

    Faz pelo menos menos dez anos que Tinhorão quase sumiu do noticiário, a não ser por reportagens e resenhas eventuais, em geral dedicadas a livros que lança ou reedita.

    É, ao que tudo indica, um isolamento involuntário, pois, mesmo aos 86, ele continua lúcido, inquieto e prolífico.

    Finaliza seu 29º livro, sobre as origens do congado, manifestação de ascendência africana que, entre os séculos 17 e 19, foi uma das festas mais populares do Brasil. O trabalho ainda não tem data para ser publicado. Até o final de outubro a editora 34, que concentra a maior parte da obra de Tinhorão, lançará uma reedição de "Música Popular - Do Gramofone ao Rádio e TV" (1981), com texto revisto e um novo prefácio.

    Por outra editora, a da Unesp, o autor publicou em 2012 "Festa de Negro em Devoção de Branco", em que investiga as conexões entre a cultura africana, o catolicismo português e o Carnaval brasileiro.

    Dois anos antes, em 2010, foi lançada uma biografia autorizada do autor, "Tinhorão, o Legendário" (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), de Elizabeth Lorenzotti.

    A desaparição deve ser relativizada também porque, a despeito da habitual queixa de Tinhorão de que é subvalorizado, sua obra ganha cada vez mais respeito.

    O homem que o ensaísta e músico José Miguel Wisnik já definiu como "o mais importante pesquisador de música popular no Brasil" tem admiradores mesmo entre jovens com idade para serem seus netos, como pôde se ver naquela tarde na Vila Buarque.

    TIETAGEM

    Equilibrando nos joelhos um exemplar de "História Social da Música Popular Brasileira" (ed. 34, 1998, lançado originalmente em Portugal pela Caminho em 1990) de cujas páginas pulavam incontáveis post-its de cores berrantes, dando ao volume uma aparência algo fosforescente, Elisa Meier Ferreira, bandolinista de 20 anos, sentou-se ao lado de Tinhorão. Viajara de Porto Feliz (a 118 km de São Paulo) só para tietá-lo, assim como as irmãs Corina, 26, flautista, e Lia, 23, violonista. Ela formam o grupo "Choro das 3", dedicado a tocar o gênero.

    "Aprendemos a tocar na escola de choro [autêntico] que ele defende. Hoje em dia ninguém mais conhece nada, por isso, quando fazemos um concerto, procuramos explicar as origens do que tocamos", disse Elisa.
    "Desde os 16 anos", acrescentou Corina, "leio e admiro o Tinhorão". Para explicar por que o admira, pediu que eu lesse um trecho destacado na contracapa de "História Social...".

    Diz o trecho: "Essa espécie de vergonha da própria realidade, desenvolvendo-se principalmente entre as camadas da classe média com caráter de autêntico complexo de subdesenvolvimento, conduz, assim, a uma progressiva perda ou desestruturação da identidade cultural, o que desemboca no ridículo de, ao procurarem tais consumidores colonizados apresentar-se como modernos, só conseguiram aparecer como estrangeiros dentro do seu próprio país".

    Havia outros jovens em torno do pesquisador naquela tarde, como as jornalistas Janaína Marquesini, 32, e Raquel Munhoz, 23, agradecidas por Tinhorão ter sido fonte para o trabalho final de graduação em jornalismo na Universidade Metodista de São Bernardo, sobre Clementina de Jesus.

    "A cultura popular brasileira é muito carente de pesquisadores. Tinhorão é um dos poucos que tocam o assunto com seriedade", disse Janaína.

    Tinhorão também é revisitado, nas novas gerações, por quem o critica.

    Revelada na cena musical paulistana em 2013, a banda Filarmônica de Pasárgada incluiu em seu álbum de estreia a canção "Enfartando Tinhorão", uma mistura de ritmos cuja letra diz "Vou batucando/ Tudo tudo o que me vem no ouvido/ Mas eu não uso fantasia de bamba/ Só porque o samba tá sapucaído" e "No fundo do meu copo/ No oco eu coloco/ Cachaça e Coca-Cola".

    "Fiz esta canção pois me identifico musicalmente com o contrário do que Tinhorão sempre falou ou escreveu. É uma maneira bem-humorada de me contrapor às suas ideias", explica o compositor Marcelo Segreto, 31.

    A música tem como introdução uma quadra popular anônima retirada de um livro de Tinhorão ("Eu vô bebê/ Eu vô me embriagá/ Eu vô fazê barulho/ Pra polícia me pegá") e termina com a leitura de trechos de obras do pesquisador.

    "Mesmo discordando de suas posições ideológicas, sei que quem quer estudar música popular no Brasil precisa ler obrigatoriamente Tinhorão. Admiramos seu trabalho de pesquisador e ao mesmo tempo discordamos de suas posições tão rígidas", observa Segreto.

    ORIGENS

    A rigidez a que se refere o músico de certo modo está relacionada às origens de Tinhorão.

    José Ramos nasceu em 7 de fevereiro de 1928 em Santos, litoral paulista, primogênito de uma família de imigrantes ibéricos (o pai era português e a mãe, filha de espanhóis). Só ao virar jornalista, nos anos 1950, incorporaria à assinatura o apelido Tinhorão, nome de uma planta venenosa.

    (Diferentemente do que muitos pensam, o motivo não foi o veneno que caracteriza o crítico, mas apenas um chiste de um chefe na Redação do "Diário Carioca", que, sem saber como chamar o jovem jornalista que acabara de chegar –mas lembrando que seu sobrenome guardava algo de vegetal–, lançou a alcunha que tornaria o rapaz famoso.)

    Teve uma infância que define como a de "um menino pobre, mas numa família com moral pequeno-burguesa". O pai foi garçom, vendeu bilhete de loteria e teve uma tinturaria, até ser convidado por um amigo para trabalhar no Cassino da Urca, no Rio, para onde a família mudou-se em 1937, quando o garoto tinha nove anos.

    Por exigência do pai, Tinhorão começou a trabalhar adolescente (na divisão de material do Ministério da Fazenda), antes de cursar e se formar em direito e jornalismo.

    Nunca exerceu a primeira profissão. Na segunda, começou em 1952, no "Diário Carioca", onde trabalhou com Janio de Freitas, hoje colunista da Folha, que entrara no "DC" como desenhista e diagramador. Tinhorão era copidesque, jargão da época para a função de redator/revisor. "Foi o meu primeiro amigo no 'Diário Carioca'. Já ali tinha vocação de intelectual, pesquisava literatura francesa do século 18. Era muito inteligente, muito reflexivo e analítico. Foi se tornando 'o cara'", conta Janio.

    Ao liderar a reforma do "Jornal do Brasil", entre 1958 e 1959, que tornaria o diário carioca referência nacional, Janio convidou o amigo para ser redator de primeiro time.

    Foi no "JB" que Tinhorão tornou-se pesquisador meticuloso e crítico musical ferino.

    Além de recuperar a memória de velhos sambistas –entrevistando nomes como Donga, João da Baiana, Ismael Silva, Bide, Heitor dos Prazeres e Pixinguinha–, passou a investigar as origens do gênero e de outras manifestações da cultura popular urbana do pais.

    Muitos dos textos que escreveu naquela época estão hoje publicados em livros como "Música Popular - Um Tema em Debate" (ed 34) ou "Crítica Cheia de Graça" (Empório do Livro).

    "O que eu fazia não era crítica, era ensaio. Pegava as coisas no calor da hora e analisava ali mesmo. Claro que é um delírio de grandeza meu, mas só Marx fez isso. Ele ia publicando nos jornais em que colaborava e era aquilo [que publicava em livro], a análise estava feita", afirmou Tinhorão, em um dos cinco encontros que tivemos para esta reportagem.

    Como que para ressaltar o valor da música "autêntica" produzida pelas camadas populares, o crítico começou a apontar a "impureza" da bossa nova quando o movimento consagrado por João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes estourou, em 1962.

    Num artigo naquele ano no "JB", escreveu que "o aparecimento da bossa nova na música urbana do RJ marca o afastamento definitivo do samba de suas origens populares".

    Deste estranhamento com a bossa nova viria boa parte de sua fama e um grande número de desafetos, que só cresceram à medida que Tinhorão atacava a nata da MPB que ascendia, com alvos que iam dos tropicalistas a Tom Jobim, passando por Paulinho da Viola.

    Muitos reagiram, a começar de Caetano Veloso, que em 1965, num texto publicado pela revista "Ângulos", da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, definiu como "histéricos" os artigos de Tinhorão. A se julgar por eles, dizia o baiano, "somente a preservação do analfabetismo asseguraria a possibilidade de fazer música no Brasil".

    Caetano voltaria a arengar com Tinhorão inúmeras vezes nas décadas seguintes.

    Mas o contra-ataque mais pesado veio do colega Sérgio Cabral, pai do ex-governador do RJ. Num artigo para o número 361 do semanário "O Pasquim" (28/5 a 3/6 de1976), intitulado "Tinhorão agente da CIA?", com chamada de capa, o jornalista e pesquisador musical recorria ao bom-humor para fazer acusações sérias.

    "Não será José Ramos Tinhorão um agente remunerado da CIA contra a música popular brasileira?", questionava Cabral.

    "Qualquer relatório sobre a CIA ensina que uma de suas táticas é infiltrar agentes em movimentos hostis ao Estados Unidos para que esses agentes não só recolham informações como também prejudiquem os próprios objetivos do movimento com atitudes radicais", continuava o texto, que em seguida identificava a MPB como um "movimento hostil" aos EUA, fechando o raciocínio.

    "Qualquer compositor de classe média que faça música, por mais talento que tenha, é logo acusado de deturpador (...) Noutro dia, ele chamou Caetano Veloso de mau caráter simplesmente porque Caetano dedicou um dos seus discos a Clementina de Jesus.

    Assim, já foram esculhambados por Tinhorão os seguintes artistas: Chico Buarque de Holanda (que uma vez me disse assim: 'Vou dar um pau no Tinhorão, hem!'), Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Gilberto Gil, João Bosco, Vinicius de Moraes, Hermínio Bello de Carvalho, Antônio Carlos Jobim, Baden Powel, Edu Lobo e muitos outros. Esses são os chamados pilares de nossa música popular em termos de prestígio e de mercado. Atrapalham a penetração da música norte-americana no Brasil. Portanto, o negócio é destrui-los."

    Passados 38 anos, Cabral –que trabalhou com Tinhorão no "JB" e era titular da página musical em que o colega passou a escrever em 1961– se diz arrependido do artigo. "Era apenas provocação. [O texto] tinha lógica, mas era mentira, um absurdo [dizer que ele era agente da CIA]. Foi exagerado, eu reagi mal, fui grosseiro e me arrependo. Tinhorão não merecia isso, é um pesquisador sério, profundo conhecedor de música popular, um craque. Sou fã dele."

    Tinhorão, marxista que nunca se filiou a partidos, considera que o artigo teve motivação ideológica. "Ele escreveu aquilo porque tinha entrado no PCB e o partido era da esquerda do [espetáculo musical] Opinião, a esquerda festiva, e eu não."

    Se Cabral agora contemporiza, entre tanta gente da música espinafrada no passado por Tinhorão, poucos se dispõem hoje a ressuscitar as controvérsias.
    Procurado, Caetano alegou, por meio de sua assessoria, falta de espaço na agenda para dar entrevista, mesma justificativa dada por Chico. Paulinho da Viola mandou dizer, pela sua mulher, "que não tem nada para falar sobre esse assunto".

    Aldir Blanc, que costumava ser elogiado pelo crítico, mas tomou as dores do parceiro João Bosco (este sim objeto da pena implacável), ao incluir Tinhorão entre cobras venenosas num trecho da letra de "Querelas do Brasil" ("Tinhorão, urutu, sucuri"), topou falar.

    "Acho que dei duas solas no Tinhorão, uma na música citada outra em texto para o 'Pasquim', mas quero deixar muito claro que Tinhorão é sinônimo de polêmica enriquecedora e que sua obra crítica e histórica engrandecem nossa cultura. Eu não só respeito o Tinhorão. Também o admiro muito, graças ao meu amigo Nei Lopes, que me tirou de um antagonismo que não afeta o Tinhorão mas que me diminuiria. Mando de público um abraço agradecido para minha 'sucuri' favorita", disse Aldir, por e-mail.

    Mais fácil é encontrar quem conteste as inúmeras acusações de plágio, ou "anterioridade", apontadas por Tinhorão. Para ele, "Águas de Março", de Tom Jobim, é copiada de uma música folclórica ("Água do Céu") oriunda de um ponto de macumba. "Desafinado", de Tom e Newton Mendonça, "é roubada" do samba "Violão Amigo", de Bide e Marçal, gravado por Gilberto Alves. "Samba de Uma Nota Só", também de Tom e Mendonça, seria derivada de Mr. Monotony, de Irving Berlin, gravada por Judy Garland. Até a revolucionária batida de violão da bossa nova criada por João Gilberto, aponta, já podia ser ouvida antes num samba de Sinhô, "Maldito Costume". E, mais recentemente, Cartola também entrou na dança: a melodia de "As Rosas não Falam", diz Tinhorão, é chupada da instrumental "La Rosita", de Coleman Hawkins e Ben Wester.

    Tido por muitos como o maior compositor popular brasileiro, Tom é desdenhado por Tinhorão desde o primórdio da carreira do crítico, que diz ter pelo menos 16 exemplos de canções do músico carioca derivadas de criações alheias.

    "Tom não era um criador, era um arranjador", declara Tinhorão, repetindo uma frase que de tão reproduzida soa até velha. Imediatamente acrescenta: "Já vai a reportagem acabar caindo no lugar-comum das outras..."
    O jornalista e escritor Ruy Castro acha graça. Depois de frisar que é um admirador de Tinhorão ("aprendo muito com ele e tenho o maior respeito pela seriedade de suas pesquisas sobre música popular até 1900") e mostrar 14 livros do colega na estante de seu apartamento no Rio, Ruy o rebate.

    "O que me intriga é um homem feito ele, que teve uma relação tão íntima com o disco, não entender que, por causa do disco, foi impossível manter uma pureza na música. Charles Mingus não ouviu nada além de música protestante até a adolescência, até escutar Duke Ellington e não querer ouvir outra coisa. Quando Pixinguinha toca saxofone e põe bateria no conjunto dele, é por influência americana –o contrabaixo tocado nos dedos também é jazz. Não há como escapar da promiscuidade imposta pela indústria fonográfica", defende Ruy.

    Autor de "Chega de Saudade", sobre a história da bossa nova, o jornalista também contesta a tese de que seja americana a maior influência do movimento, uma vez que, argumenta, seus três principais nomes –Tom, Vinicius e João Gilberto– "tiveram todos uma formação musical profundamente brasileira".

    Ruy lembra que Tom reagia aos ataques do crítico com um chiste recorrente: "Tinhorão acha que não sou autêntico. Eu também acho que não sou. Autêntico é o jequitibá".

    Ao escutar em seu toca-discos as músicas que Tinhorão aponta como a base para apropriações de Tom e cia. –tinha todas em sua coleção, em vinil ou CD–, Ruy minimizou certas semelhanças ("Se quiser procurar plágio, você acha onde quiser, 'Wave' [de Tom] é a Quinta Sinfonia de Beethoven") e brincou: "Fico contente em saber que o Tinhorão passa o dia ouvindo música americana."

    Sergio Cabral concorda com Ruy. "Não tem nada de plágio. Como dizia Noel [em 'Mais um Samba Popular'], 'Sendo as notas sete apenas/ Mais eu não posso inventar'."

    Tinhorão tem uma metáfora desairosa para explicar por que discorda dos colegas. "O criador de música está sujeito a ser emprenhado pelo ouvido. Diz que é muito pouco para configurar plágio. Mas quando você pega uma namorada e bota na coxa, às vezes goza e vem um filho com todas as características suas, só por causa dessa gozadinha na coxa."

    O SOGRO

    O ataque sofrido no "Pasquim" apenas tangencia uma passagem pouco conhecida da vida de Tinhorão. Ao afirmar no artigo que o crítico era à época "muito bem protegido" e que "na editora Abril, todas as vezes em que se falava em demiti-lo aparecia sempre uma força superior para mantê-lo no emprego", Cabral possivelmente se referia ao então sogro do colega, Antonio Ferreira Marques.

    Veterano da FEB na Segunda Guerra, o general Ferreira Marques foi chefe do Estado-Maior do 2º Exército (em São Paulo) durante um dos períodos mais duros da repressão (ocupava o cargo quando Vladimir Herzog foi assassinado pelos militares, em 1975) e chegou a chefe do Estado-Maior do Exército brasileiro no governo Figueiredo (1979-1985).

    Cabral diz que sabia que Tinhorão tinha um sogro do Exército, mas jura que desconhecia quem era o militar e quanto poder ele detinha –a informação tampouco aparece na biografia de Tinhorão, e mesmo seus amigos mais próximos afirmam ignorar esse capítulo de sua trajetória.

    Era um tempo em que Tinhorão frequentava colunas sociais, como a de Tavares de Miranda, na Folha.

    Em 13 de fevereiro de 1968, o colunista registrou: "Se o general Syseno Sarmento pajeou a filha e o genro no fim de semana, no princípio da semana a vez de pajem foi de seu assessor, agora comandante da Força Pública, o coronel Antonio Ferreira Marques, que recebeu a visita da filha Noely Nazareth e do genro, que é o jornalista e escritor José Tinhorão, que veio [sic] passar o seu 'nat' no Planalto".

    Noutra coluna, em junho do mesmo ano, Tinhorão e a mulher eram listados entre os convidados a uma recepção de um alto oficial que teve "todo o Exército dizendo presente".

    Cabe recordar que a associação com os militares –ainda que indireta ou fantasiosa– serviu de ataques de Tinhorão a músicos. Numa tese no mínimo controversa, o crítico escreveu, em "História da Música Popular Segundo seus Gêneros", que, durante a ditadura, os tropicalistas não somente "renunciaram a qualquer tomada de posição político-ideológica de resistência" como reproduziram a doutrina do regime.

    "O grande erro de perspectiva do poder militar, ao insurgir-se contra a irreverência e o deboche do tropicalismo através da medida política da expulsão [do país] de Caetano Veloso e Gilberto Gil", observou Tinhorão, "foi não perceber que, afinal, a proposta dos baianos correspondia exatamente, no plano cultural, ao da filosofia da atualização tecnológica programada pelo movimento de 1964 no plano econômico".

    Conforme o crítico, a prisão de Caetano e Gil em 1968, à qual se seguiu o exílio em Londres, foi um engano dos militares.

    Tinhorão foi casado com Noely Marques de 1964 a 1980. Tiveram três filhos. O pesquisador conta que há muito tempo não fala com nenhum deles. "Se você tem uma sociedade e um dia a empresa se desfaz, o que é que você tem que ver mais com seus ex-sócios?", questiona.

    Ele emposta a voz e ironiza: "Aí você vai me perguntar: mas e as relações afetivas?". E ele mesmo responde: "Meu casamento era burguês, para a família que eu tinha, o importante era ter sucesso material. Como eu rompi com esses valores, me afastei automaticamente dos personagens que os resumiam."

    Segundo Tinhorão, há até algum tempo atrás os filhos ainda lhe telefonavam em seu aniversário, mas nem isso fazem mais –"o que é um conforto para mim", ele diz.

    Indagado se suas posições de esquerda interferiram na sua relação familiar, afirmou: "Perto de mim ele [o sogro] não falava de determinados assuntos. Era uma coisa tácita. Ele sabia que eu não ia aprovar e eu mais ou menos sabia o que poderia sair daquela cabeça. Então pra que é que eu ia mexer?".

    E o sogro, nunca interferiu no trabalho do pesquisador? "Não, inclusive porque militar brasileiro não lê nada."

    LIBERTO

    O novelão familiar estaria circunscrito à vida pessoal de Tinhorão não fosse o fato de que a separação da primeira mulher marcou uma guinada na carreira do crítico.

    Vivendo desde 1968 em São Paulo, para onde se mudara ao aceitar convite da revista "Veja", ele separou-se em 1980 e, à medida que diminuía sua colaboração com a imprensa, se aprimorava como historiador da cultura.
    "Casamento é escravidão. Você não se separa, você vira um homem liberto. O primeiro [casamento] é mais difícil, te dá obrigações morais, éticas e sentimentais e te amarra a situações econômicas. Tua vida individual acaba, você passa a ser um homem de família, o que é incompatível com a atividade de pesquisador. Ou você rompe com isso ou não consegue fazer o que tem de fazer."

    Tinhorão deixou "uma casa burguesa na Vila Nova Conceição [bairro nobre na zona sul paulistana]" e mudou-se sozinho para uma quitinete de 31m2 na rua Maria Antonia, na Vila Buarque, que já usava como escritório e arquivo.

    Rato de sebos e bibliotecas, ampliou seu já rico acervo (coleções de discos, partituras, revistas e jornais, folhetos, modinhas etc) a ponto de tornar o imóvel lendário. A partir de algum momento nos anos 90, Tinhorão passou a ser referido não apenas como um grande pesquisador, mas como aquele grande pesquisador que vivia entre livros num apartamento minúsculo em São Paulo. Ele estimulava a lenda, contando que, por falta de espaço para cama, pernoitava num saco de dormir e que coleções de jornais e revistas ocupavam o minúsculo banheiro.

    Janio de Freitas interpreta que a opção de Tinhorão por se desligar da imprensa para mergulhar na pesquisa histórica foi motivada pela reação que o trabalho do crítico provocava, como a paulada de Cabral no "Pasquim". "A contestação sobre o fato de ele ver influência americana em tudo criou muita polêmica, e a polêmica o levou a deixar o jornalismo. O Tinhorão é muito polêmico, é do temperamento dele, mas não é mal-humorado, é engraçado, tem muito bom-humor, e pagou por isso."

    Junto com o acervo, multiplicavam-se os livros de Tinhorão. Àquela altura, sua principal obra era a reunião de artigos "Música Popular: Um Tema em Debate", seu segundo trabalho publicado (em 1966) e até hoje o seu livro mais conhecido. A estreia, também em 1966, foi com "A Província e o Naturalismo", um ensaio sobre como essa escola floresceu no Ceará.

    A cultura popular urbana do Brasil, do século 16 ao século 20, sempre foi o campo de estudo de Tinhorão, em especial a música popular, que ele define como aquela "de compositor conhecido e divulgada por meio de partituras, discos, filmes, fitas etc.", em contraposição à folclórica, "de autor desconhecido, transmitida oralmente", oriunda do universo rural –ele detesta ser confundido com um folclorista, assim como não gosta de ser chamado de crítico, pois considera subestimação do seu papel de historiador da cultura.

    Criou obras de referência, como "Pequena História da Música Popular" (1974, hoje na 7ª edição) e "A Música Popular no Romance Brasileiro", trabalho em três volumes (1992, 2000 e 2002) que esmiúça como os ficcionistas do país trataram do tema.

    Investigou a gênese de manifestações pouco conhecidas ("O Rasga: Uma Dança Negro-Portuguesa", lançado em 2007 em Portugal e em 2010 no Brasil) e apresentou pioneiros ("Domingos Caldas Barbosa: O Poeta da Viola, da Modinha e do Lundu", 2004, sobre o primeiro compositor popular brasileiro).

    Transitou com desenvoltura pela chamada história do cotidiano em trabalhos como "Os Sons que Vêm da Rua" (1976), misto de pesquisa e ensaio sobre manifestações típicas de metrópoles, de cantores de serenatas e realejos a coretos, circos, gafieiras e forrós.

    Ou se aproximou da historiografia clássica, com laivos sociológicos mais evidentes, como os já mencionados "História Social da Música Popular" e "Do Gramofone ao Rádio e TV" –neste último, examina como a evolução da tecnologia influenciou a música brasileira.

    "Quase todo ano, ou no máximo a cada dois, publicamos algo do Tinhorão. A produção dele é muito grande, a gente não dá conta de publicar tudo", afirma o diretor editorial da 34, Paulo Malta, ao explicar por que vez por outra alguns títulos saem por outras editoras. A casa publica o autor desde 1997 e tem à disposição em catálogo 11 dos deus livros (um deles em três volumes, "A Música Popular no Romance Brasileiro"). Malta relata que o principal público são estudantes universitários, de música ou história, e que o mais vendido é "História Social da Música Popular Brasileira", cerca de 20 mil exemplares –"Música Popular - Um Tema em Debate", publicado 30 anos antes e que passou primeiro por outras duas editoras, possivelmente vendeu mais que isso.

    "Não são best-sellers, mas são livros que vendem sempre e têm um público cativo", diz Malta.

    O VELHO DE BARBA

    No entender do professor de história da USP José Geraldo Vinci, co-organizador, com Elias Thomé Saliba, de "História e Música no Brasil" (Alameda), Tinhorão aprofunda e ordena o trabalho iniciado por pioneiros da historiografia musical brasileira, como Almirante, Vagalume, Orestes Barbosa e Lúcio Rangel, cujo perfil mais evidente era de memorialistas.

    "Ele é o cara que coloca toda a carga dessa primeira geração a serviço de um discurso historiográfico muito articulado e documentado, que cria uma narrativa, uma interpretação –que pode até ser muito pessoal ou calcada em teorias discutíveis, mas que representa um grande avanço."

    Dos desbravadores, segundo Vinci, Tinhorão guarda a concepção de música popular "naturalizada", a ideia de que "só a música do povo é pura e bonita", mas acrescenta aos antigos, para além da documentação obsessiva, a visão marxista.

    "Os fatos não acontecem por geração espontânea. O que motiva os fatos numa sociedade capitalista é a cultura de classes. Conforme a classe a que você pertence, você terá uma visão cultural diferente. A origem de classes explica muita coisa sempre", afirma Tinhorão.

    Adotar o materialismo histórico como bandeira, relata, atendeu simultaneamente a uma opção de vida e à conveniência profissional. Ele recorre à seguinte metáfora para explicar o dilema de pesquisadores que acumulam informação em excesso.

    "É como uma pessoa que come demais e depois não consegue digerir. Para evitar que isso acontecesse comigo eu precisava de um método. O meu método é o materialismo histórico. Isto é, a realidade observada numa sociedade de classes e a cultura numa cultura de classes. Vamos ver os fenômenos culturais conforme a área de quem produz e quem consome."

    E acrescenta que vem daí o que chama de sua "coerência" como autor.

    Mas, sendo um integrante da classe média que sempre teve a cultura popular como objeto de trabalho, não seria incoerente reclamar que "a classe média se apropria" da música popular?
    Para responder, Tinhorão recorre mais uma vez a Marx.

    "Assumi uma posição fora da minha classe. É preciso ter coragem para fazer isso. Eu não digo que só a produção popular é que é válida. O que digo é que a classe média é que crie a produção dela. Quando tenta imitar, vira caricatura. Aí entra o velho de barba [Marx]: a classe média não é uma classe para si. A elite é, vai à ópera, viaja, se informa."

    Tinhorão diz que "sofre" ao subverter sua classe de origem. "Veja o drama que vivo: os que poderiam concordar com a minha análise não podem me ler. E os que entendem detestam."

    ESPECIALIZAÇÃO BURRA

    Trata-se, como em muitas das queixas feitas pelo pesquisador, de um exagero –mas no fundo com uma pontinha de sentido.

    Na transição entre o crítico e o historiador, Tinhorão diminuiu as refregas com compositores da MPB, mas não abriu mão de buscar novos alvos. Talvez o preferido seja a universidade, que ele associa a "acomodação", em oposição à curiosidade intelectual que diz ser a mola do seu trabalho. "Não há uma área que se extingua em si. A especialização é burra. Quem está na academia é o competente burro, sabe tudo de sua área e não enxerga mais nada lateralmente. Minha forma de conhecer as coisas não tem bitola. Eu brinco nas onze."

    "Quanto mais informação você tem, mais fica difícil a síntese. É por isso que tem tanto ignorante brilhante, porque quando o cara sabe pouco, ele acha que domina tudo. Só percebi o tamanho da minha ignorância depois de estudar tantos anos e ler muito."

    O ressentimento com a academia constitui um dos aspectos mais intrigantes da trajetória do pesquisador.

    Faz anos que ele reclama do suposto desprezo que acadêmicos nutrem por sua obra, com tiradas-quase-bordões como "eles comem Tinhorão e arrotam Mário de Andrade" ou "só sou citado como apud [indiretamente, como o autor que teve acesso à fonte original]".

    Como recorda José Geraldo Vinci, isso pode ter sido verdade num passado distante, hoje não mais.

    "A academia não dava mesmo muita importância, mas não era a ele, mas ao que ele estudava, a canção popular urbana. As ciências sociais e a história sempre foram muito refratárias ao tema até o início dos anos 90. Hoje ele é um cara respeitadíssimo. Mas acho que não recebe o debate com abertura de espírito", comenta Vinci, um dos muitos entrevistados que disseram usar em suas aulas livros de Tinhorão.

    O também historiador da USP Marcos Napolitano, autor de "História & Música" (Autêntica) e "A Síncope das Ideias" (Editora da Fundação Perseu Abramo), endossa a visão do colega.

    "Tinhorão é referência para muitos, embora a historiografia da música popular tenha avançado para outras perspectivas nos últimos anos. Eu mesmo indico a leitura dos seus livros em muitos cursos, como referência e como fonte de um tipo de pensamento musical no Brasil. Os seus livros mais historiográficos são leituras correntes nas pesquisas acadêmicas."

    Para Napolitano, os pontos fortes da obra de Tinhorão são "a erudição documental e o cuidado com as informações históricas", enquanto "o ponto mais frágil é a análise excessivamente dogmática e valorativa do sentido histórico, estético e político do material musical, sobretudo em relação ao que chamamos de 'MPB'".

    Vinci também destaca o trabalho de documentação de Tinhorão. "Num país mais desenvolvido, é trabalho para uma instituição, não para um indivíduo."

    Professor do Departamento de Filosofia da EFLCH/Unifesp e músico, Henry Burnett avalia que Tinhorão não é desprezado pela academia, mas é sim subutilizado. "Há um descompasso entre o documento e a análise, porque uma coisa é achar que o Brasil não pode se deixar invadir pela cultura exterior, outra é dizer que um Tom Jobim era frustrado como músico erudito e foi fazer samba. É cômico, mas é por essas e outras que ele ficou 'de fora' da festa da MPB, porque ele explicitava sua teses de modo grosseiro e descuidado, algo estranho para quem pesquisa tanto e conhece mais do que ninguém", diz Burnett, que considera Tinhorão um autor "fundamental" e recorreu à obra dele para escrever seu livro "Nietzsche, Adorno e um Pouquinho de Brasil' (Unifesp, 2011).

    MESTRADO AOS 70

    Apenas uma vez Tinhorão dominou o asco que diz nutrir pela academia, quando, no final dos anos 1990, já um septuagenário, fez um mestrado na história da USP, que resultou no livro "A Imprensa Carnavalesca no Brasil - Um Panorama da Linguagem Cômica" (Hedra, 2000).

    Ao fim de uma pesquisa em mais de 200 publicações carnavalesca do país, traçou um painel da linguagem cômica desde a Idade Média e fez ao menos uma descoberta significativa: que em 1904, 60 anos antes de o linguista russo Mikhail Bakhtin apresentar suas teorias sobre carnavalização –que se tornariam fetiche entre intelectuais de todo o mundo nos anos 1960/1970–, um jornalzinho do Recife, "O Philomomo", antecipara o uso do conceito, com o slogan "Descarnavalizemos a República e Republicanizemos o Carnaval".

    Tinhorão gosta de frisar que só topou a experiência do mestrado porque precisava do dinheiro da bolsa para viajar ao Recife, base, junto com o Rio, da maioria das publicações pesquisadas.

    O percurso acadêmico foi sui generis. O mestrando escolheu para orientá-lo um professor que nada sabia sobre o tema pesquisado, o especialista em Idade Média Jônatas Batista Neto, somente porque o conhecia das rodas de uma livraria do centro de São Paulo.

    "Não entendo nada de imprensa carnavalesca no Brasil e não o orientei. Só lhe garanti a possibilidade de fazer o trabalho e de o apresentar na Universidade", afirma Batista Neto.

    "Ele entrou na pós como qualquer outro aluno. Inscreveu-se, passou por uma entrevista comigo e fez alguns cursos. Apesar das reservas do Tinhorão com relação à academia, o percurso dele lá foi dos mais tranquilos que já vi, não houve nenhum problema", recorda o professor da USP, hoje aposentado.

    Tinhorão foi aprovado com louvor. Um dos integrantes da banca que avaliou a sua dissertação de mestrado foi o historiador Nicolau Sevcenko, professor da USP e de Harvard (EUA) morto em agosto.

    É vasta e curiosa a lista que Sevcenko desfia ao elogiar o colega. "O que chama mais a atenção no trabalho do Tinhorão é a vasta erudição dele, o conhecimento quase enciclopédico de uma variedade de fontes empíricas de pesquisa, de coleções de documentos, de arquivos e bibliotecas, de testemunhas, depoimentos, crônicas, documentos pessoais, relatos orais, historiográficos, literários, jornalísticos, de partituras, instrumentos, gravações, intérpretes, arranjadores, músicos, cantores, maestros, orquestras, conjuntos, instrumentistas, côros, coreografias, tradições, lendas, anedotas, datas, nomes, locais, eventos, festas, improvisos, personagens, casos, fatos históricos, filmes, narrativas, fotos, documentários, relatórios de instituições oficiais, códigos, normas, posturas, procedimentos policiais, folclore, práticas cotidianas, registros vocabulares, recursos tecnológicos, circuitos temáticos, repertórios vernaculares... não tem fim."

    "Nesse sentido" prossegue Sevcenko, "ele é uma referência imprescindível para qualquer pesquisador interessado em temas de cultura popular. A ênfase dele se concentrando na pesquisa de base, na multiplicidade das fontes, não se desdobra com a mesma intensidade sobre a área teórica ou sobre questões epistemológicas ou conceituais. Não é nesse vão que ele deixa a sua marca, com certeza".

    Jônatas Batista Neto conta que ofereceu uma vaga para Tinhorão fazer o doutorado, mas que ele não teve interesse.

    DESCOBRIDOR DE PORTUGAL

    Com "Os Negros em Portugal - Uma Presença Silenciosa" (Editorial Caminho, 1988), Tinhorão passou a publicar os resultados de sua crescente pesquisa naquele país, para onde viaja pelo menos um vez por ano, desde o começo dos anos 1980, a garimpar sebos e arquivos públicos.

    "O português faz silêncio sobre isso [a história da contribuição negra à cultura do país] e, como a bibliografia brasileira não falava nada, senti necessidade de ir lá", conta o autor.

    Ele chamaria a atenção além-mar especialmente por esta obra e por "Fado - Dança do Brasil, Cantar de Lisboa" (Caminho, 1994), na qual desenvolve a tese –antes já levantada por nomes como Câmara Cascudo, Mário de Andrade e Mário Souto Maior– de que a música nacional portuguesa teve origem no Brasil, a partir do lundu.

    Tinhorão tem seis livros editados em Portugal e, sem o saber, tornou-se referência entre acadêmicos do país.

    "Pelo seu fascinante contributo para a redescoberta ou iluminação do passado e pela sua oposição a mitologias várias que ainda hoje perduram na imaginação da identidade nacional, a obra do Tinhorão, sobretudo o excelente 'Os Negros em Portugal', tem inegável valor. Em conjunto com trabalhos mais recentes, como o de Didier Lahon [antropólogo francês estudioso da escravidão nu mundo lusófono], o contributo de Tinhorão perdurará como referência obrigatória", afirma o sociólogo Miguel Bandeira Jerónimo, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

    Definindo Tinhorão como "um investigador incansável, que levantou um conjunto vastíssimo de fontes originais até então não estudadas", o musicólogo e professor da Universidade Nova de Lisboa Rui Vieira Nery acrescenta: "É um pioneiro da abordagem pós-colonial, sobretudo ao chamar a atenção para a influência mútua e para a circulação de modelos culturais entre o Brasil colonial e a metrópole portuguesa, mas também para a importância do contributo africano para esse tecido cultural luso-brasileiro. É também um percursor do estudo interligado das práticas musicas eruditas e populares".

    Por fim, num artigo publicado em abril no jornal "Público", em que critica a forma com que os portugueses comemoraram os 40 anos da Revolução dos Cravos, o jornalista João Miguel Tavares equiparou Tinhorão a outros estrangeiros que, a seu ver, interpretaram o país melhor que os patrícios.

    "Há uma qualquer maldição que insiste em reduzir Portugal à mera descrição da tal banalidade sem sal e a uma desvalorização generalizada do trabalho sobre a memória. O resultado dessa cegueira está à vista: foi um francês a escrever a melhor biografia de Pessoa (Robert Bréchon), um italiano a ficar obcecado por ele (Antonio Tabucchi), um corso a fazer as recolhas da nossa música tradicional (Michel Giacometti), um espanhol a realizar o primeiro filme sobre fado (Carlos Saura), um brasileiro a investigar as suas origens (José Ramos Tinhorão), um suíço a filmar 'A Cidade Branca' (Alain Tanner) e até um alemão a assinar o melhor documentário sobre o PREC (Processo Revolucionário em Curso, período relacionado à Revolução dos Cravos nos anos 70 em Portugal, o filme é "Torre Bela", de Thomas Harlan)", escreveu.

    Tantas loas a Tinhorão num universo que incrivelmente lhe parece hostil não significam que na academia ele esteja imune a críticas, ainda que em geral elas surjam de quem o admira ou respeita.

    É o caso de José Miguel Wisnik, professor de literatura na USP e autodefinido como "o maior conhecedor de José Ramos Tinhorão que eventualmente exista", mas que já lhe deu deu alguns pitos públicos.

    No ensaio "Global e Mundial", publicado em 2004 no livro "Sem Receita" (Publifolha) e segundo Wisnik uma "transcrição melhorada" de um fala sua num encontro de pesquisadores de música popular realizado em 2001 no Rio, o ensaísta rejeita o "fundamentalismo sociocultural" em defesa das classes populares encampado por Tinhorão e diz que "o fundamento de uma música popular genuína na essência" é um "mito redutor".

    Num adendo ao ensaio publicado no mesmo livro, Wisnik acusa Tinhorão de ter usurpado uma ideia sua, exposta naquela fala de 2001, sobre a originalidade do rap brasileiro como bom exemplo de "mundialização" que ele contrapunha à globalização.

    Wisnik narra que no debate de 2001 Tinhorão desdenhou do rap ("pois já tínhamos o cordel, o repente e a embolada", ele teria dito), mas que, três anos depois, em entrevista à Folha, apresentou o gênero como "a grande novidade" da música popular do país –declaração que repercutiria muito à época e que seria ecoada meses adiante por Chico Buarque, como sintoma do esgotamento da canção.

    "(...) O mais extraordinário é a composição da frase: 'Costumo dizer que o rap é a grande novidade, porque restaura a música da palavra'. Como assim, costuma dizer? Em primeiro lugar, costuma coisa nenhuma; em segundo lugar, quem disse isso a ele fui eu", escreveu Wisnik.

    Tinhorão trata a acusação como uma "bobagem". "Se ele falou isso na palestra, eu não lembro. O que eu disse é que o rap é uma forma de embolada, e isso ele não falou", afirma, antes de repetir uma "boutade" sobre o assunto: "Quem primeiro fez rap foram os padres, que leram o texto evangélico em forma rítmica, os cantochões. Isso ele [Wisnik] nem sonhou em saber".

    TINHORÃO DUPLICADO

    O que Tinhorão não tem como negar –embora também o faça– é o fato de, em meio à sua vasta produção, às vezes copiar a si próprio.

    A reportagem identificou duas passagens de um livro dele repetidas ipsis litteris em outro sem a devida citação (em um dos casos, apenas poucas palavras foram substituídas).

    Um trecho de três páginas sobre o tropicalismo de "Pequena História da Música Popular Segundos seus Gêneros" (págs 283 a 286) ressurge idêntico em "História Social da Música Popular Brasileira" (págs. 339 a 342).
    Já uma passagem sobre o frevo editada nas páginas 161 e 162 de "Pequena História..." reaparece igual, com o acréscimo de uns poucos termos, na página 192 de "História Social...".

    Questionado sobre a prática, Tinhorão negou recorrer a ela. "Não. Faço citação de mim mesmo, mas é entre aspas." Indagado se não aproveitara partes de um livro no outro, afirmou: "Que eu me lembre não. Você diz transcrever? Não. Não me lembro. Na minha cabeça não cabe eu me transcrever –me citar sim, mas entre aspas."

    ACERVO PECULIAR

    O reconhecimento, no Brasil, ao trabalho de Tinhorão teve impulso significativo no início dos anos 2000, quando o IMS (Instituto Moreira Salles) adquiriu o acervo do pesquisador.

    Na sede carioca da instituição, no bairro da Gávea, a coleção antes pertencente ao historiador é a maior em volume entre as de música, ocupando 11 corredores de arquivos (cinco de 10 metros de extensão e seis de 3 metros).

    Reúne partituras, discos, rolos de pianola, folhetos, coleções de revistas e jornais, fotos etc. Entre as raridades estão disquinhos tipo berliner do início do século passado (compactos de 70/72 rpm com músicas só de um lado) -um deles, gravado em Londres em 1901, traz o Hino Nacional Brasileiro executado por uma banda militar londrina; outro, de 1902, registra o tango "O Bico do Papagaio"–, a primeira edição do livro "Na Roda do Samba" (1933), de Vagalume, e coleções das revistas "O Malho" (1902 a 1952), "Careta" (1908 a 1952) e "Fon-Fon" (1902 a 1952).

    "Não dá para dizer que é nosso acervo mais importante, porque temos os de Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, entre outros. Mas sem sombra de dúvida é a coleção mais ampla e mais peculiar do IMS", comenta o pesquisador Euler Gouvêa, um dos responsáveis pelos acervos musicais do instituto.

    GATOS

    José Ramos Tinhorão é baixo, parrudo e ereto. Anda sempre de roupa social, como a que vestia no dia do samba em sua homenagem.

    Diz que não tem o dom para ensinar ("sou melhor escrevendo que falando"), mas pontua as conversas com leituras de longos trechos de seus livros, que encerra enfatizando as palavras finais e balançando o dedo indicador direito em riste, como a confirmar a validade de suas teses.

    Não conhece a modéstia. Seja nas apresentações de seus livros, em bate-papos ou entrevistas, está sempre a ressaltar os seus feitos. Diz que, para o novo livro sobre a congada, vai desmascarar "a mentira dos reis do Congo", revelando que naquele país jamais houve monarquia e que os títulos de rei foram dados pelos portugueses para afagar os colonizados. "Eram reis de mentirinha, ninguém no Brasil nem em Portugal escreveu isso."

    Lendo "A Imprensa Carnavalesca no Brasil", para e diz: "É uma obra de erudição, modéstia à parte".

    Comenta que, em "De Índios, Negros e Mestiços" (1972, esgotado), foi o primeiro a esmiuçar as razões da integração dos negros africanos de Portugal ao catolicismo, por meio da devoção à Nossa Senhora do Rosário. "Quem levantou as hipóteses foi o menino aqui."

    Nunca fez psicanálise. "Sou tão resolvido nos meus erros que não preciso. Todo sujeito que procura análise está desconfiado com ele mesmo. Eu não estou."

    Volta e meia, solta expressões eufóricas de autoregozijo. Ao explicar que o nome dos instrumentos banza (guitarra do fado) e banjo vêm do kimbundu "mbanza", grita: "Aaaah, o americano não sabe disso, que banjo vem daí!".

    Diz que, entre críticos de música do país, não consegue enxergar um sucessor, "Porque fui um cara singular, os discos eram pretexto para fazer ensaio em cima do materialismo histórico, os outros sempre foram 'gostei' e 'não gostei'."

    É também uma área em que mantém admiradores febris, como o musicólogo e crítico Luís Antônio Giron, para quem o apetite investigatório e a falta de vínculo com a academia mantêm Tinhorão como "um jornalista puro-sangue". "Ele é o grande jornalista cultural brasileiro dos séculos 20 e 21. É referência em pesquisa rigorosa e mostrou que crítico tem de ser parcial, não é para afinar o coro dos contentes. Há um Tinhorão em cada um de nós que fazemos jornalismo musical no Brasil", afirma Giron.

    Extremamente organizado, Tinhorão mantém sua mesa de trabalho impecável e tem um fichário atualizado com a bibliografia dos temas que pesquisa.

    "Nunca vi uma casa mais lustrosa, mais limpa e organizada do que a do Tinhorão quando morava com os pais. No quarto dele, um papel não ficava a um milímetro do outro", recorda Janio de Freitas.

    Tinhorão escreve à mão, de lápis, depois passa à máquina de escrever e só então pede ajuda para digitarem no computador, tarefa em geral feita pela sua segunda mulher, a professora aposentada Maria Rosa Vieira, 21 anos mais nova e com quem vive desde os anos 1980. Ela o trata por "Zezinho". Dividem, com cinco gatos, um apartamento de 93m2 na alameda Barão de Limeira, em Campos Elíseos, região central de São Paulo.

    Maria Rosa conta que, por causa do companheiro, deixou gradativamente de ouvir música. "Se ponho um CD, ele faz crítica à música, à indústria cultural, ao contexto –aí perco o prazer. Já absorvi, não ouço mais."

    O pesquisador mantém no apartamento uma biblioteca enxuta, formada basicamente por livros que está consultando (alguns em francês e muitos editados em Portugal, nos dois casos comprados em sebos daquele país) e obras de referência.

    Com a ajuda da mulher, pesquisa no Google e na Wikipedia. A vídeos no Youtube, diz que só assiste "para sacanear plágio dos outros". Afirma que não escuta mais música, porque nada lhe desperta interesse.

    Ainda lúcido e vivaz, tem porém lapsos frequentes de memória, quando recorre à mulher (falava "naquela americana metida a brasileira" quando lhe faltou o nome de Rita Lee; gritou então para Maria Rosa, que lembrou na hora).

    Admite ser pão-duro ("tenho mentalidade de proleta mesmo, sou meio mão de vaca"). Não almoça. Acorda tarde ("a manhã é feita para despertar"), toma um café reforçado e faz uma segunda refeição no início da noite.

    Seu melhor amigo é o ótico e bibliófilo Israel Souza Lima, 89, com quem sai todas as quartas e sextas para conversar, ler e frequentar sebos e bibliotecas no centro de São Paulo - o outro era o pesquisador musical Humberto Franceschi, morto em junho último, aos 86 anos, que conhecia desde desde 1948 e em cuja casa se hospedava quando ia ao Rio.

    Mesmo sem ter mais a obrigação, continua a votar em toda eleição. Desta vez diz que dará um "voto cínico" em Marina Silva (PSB). "Nossa amiga presidenta representa o partido da traição, o PT, que faz acordo com o diabo para ficar com o poder", diz ele, que escolheu Lula e Dilma nas eleições presidenciais anteriores. "Embora já venha com um pecado original, o de ser religiosa, que já é brabo, Marina pelo menos representa um mínimo de novidade."

    VINHO E CACHAÇA

    Tinhorão não toma cerveja ("embucha muito"), mas bebe um pouco de vinho e de cachaça, esta em geral aos sábados à tarde, quando vai religiosamente ao Amélia, o boteco onde ocorreu a roda de samba dos seus 86 anos.

    Ali, encontra amigos como o jornalista e editor Jorge Henrique Bastos, o perito criminal Antônio Nogueira (que sempre lhe leva uma cachaça do interior de SP) e o administrador aposentado Antônio Carlos Amaral. Tudo começou por causa de um sebo que existia em frente ao bar, hoje fechado. Desde 2010, o bloco de carnaval da turma do Amélia, o Esquina da Vila Buarque, homenageia Tinhorão no Carnaval.

    Naquele sábado da festa, o samba esquentou, choveu por alguns minutos (uma alívio enganoso para a seca que assolava São Paulo), a esquina da Vila ferveu em torno de Tinhorão. E o velho pesquisador, o que achou de tanto afeto na encruzilhada da vida? "Não me afeta. Sou muito cínico. Acho gentil da parte das pessoas, mas a mim não causa emoção nenhuma. Faz parte."

    José Ramos Tinhorão diz não ter arrependimento nem remorso das querelas do passado, mas, em perspectiva, faz hoje uma sutil admissão: "Eu poderia ter sido mais maneiroso. Teria sido mais cômodo, eu me tornaria mais conhecido. Mas é o meu jeito".

    FABIO VICTOR, 42, é editor-adjunto da "Ilustrada".

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