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    A violência e o sagrado

    JEAN-PIERRE DUPUY

    28/09/2014 03h30

    Já apresentei a obra antropológica do filósofo franco-americano René Girard sobre as relações entre a violência e o sagrado no ciclo de conferências coordenado por Adauto Novaes, em 2010: Mutações - A invenção das crenças. Assinalei então que essa teoria da origem violenta da cultura humana se baseava, ela própria, numa teoria do desejo humano como "desejo mimético". Em Girard, a origem do sagrado está na violência e a origem da violência está no desejo. É essa primeira fundação que eu gostaria de discutir agora, o que parece apropriado ao tema geral do ciclo deste ano: as fontes passionais da violência.

    É por ser mimético que o desejo conduz os homens a entrarem em conflito uns com os outros. Essa tese é paradoxal. "Mimético" quer dizer "que se baseia numa imitação". Ora, a imitação, como os filósofos desde Platão compreenderam bem, é o cimento social por excelência. É por imitação que a criança pequena aprende as regras e os símbolos de sua sociedade, a começar pela linguagem. A imitação é um fator de paz. Os dois cavalheiros de Verona de Shakespeare cresceram juntos, aprenderam as mesmas lições, leram os mesmos livros, jogaram os mesmos jogos: estão de acordo em tudo. Essa convergência repousa na imitação mútua e fundamenta sua amizade. Até que um deles, ao se apaixonar por uma mulher, designa ao amigo a mulher que este deve desejar: essa mesma mulher. Mas Eros não se compartilha como se compartilham um livro ou uma peça de música. Os dois jovens desejam a mesma mulher, de amigos passam a ser rivais. Quando a imitação envolve o desejo, ela conduz inevitavelmente ao conflito. Como escreve Girard: "A imitação do desejo é ao mesmo tempo o motor do que a amizade oferece de melhor e do que o ódio tem de pior."

    Dessa ideia muito simples, Girard tira consequências de uma riqueza inédita. A forma mais simples do desejo é o triângulo, composto de um sujeito, de um objeto e de um terceiro termo, o modelo. O modelo é o mediador do desejo, no sentido em que o sujeito deseja segundo ele: o desejo do sujeito pelo objeto não é espontâneo, mas imitado segundo o desejo de seu modelo. Se a posse do objeto não pode ser compartilhada - o exemplo inevitável, aqui, é a paixão exclusiva de um homem por uma mulher -, é mecanicamente, sem que haja a menor intenção, que o modelo, carregado de um sinal positivo, se transforma em rival, carregado de sinal negativo, sem que seu estatuto de modelo seja com isso alterado, muito pelo contrário: quanto mais a rivalidade se acentua, tanto mais o modelo se torna um obstáculo fascinante no caminho do objeto. Os papéis de modelo e de obstáculo se reforçam um ao outro, enquanto o objeto adquire cada vez mais valor, numa dinâmica que Girard nomeia por um termo tomado do antropólogo Gregory Bateson: o double bind [duplo vínculo].

    Essa "rivalidade mimética" é a figura de base que engendra todas as outras, que abrangem o conjunto das paixões más que agitam a humanidade desde a aurora dos tempos e que ameaçam hoje a sobrevivência mesma da espécie, pois se aliam a uma capacidade tecnológica sem precedente: inveja, ciúme, ressentimento, sadomasoquismo, orgulho, individualismo exacerbado, ódio de si e dos outros.

    A teoria de Girard se apresenta como explicação universal tanto das disputas de recreio no pátio escolar quanto da rivalidade entre potências nucleares. Examinaremos todas as facetas disso, ilustrando o assunto com exemplos tirados tanto da atualidade quanto da literatura ou do cinema.

    Um dos grandes méritos dessa teoria é resolver, de modo simples, uma série de paradoxos envolvendo paixão e violência. É natural pensar que a violência é muito mais forte do que são intensas as paixões, indeléveis crenças, importantes questões em jogo. Sabe-se, hoje, que um pequeno conflito pode partir de um objeto desimportante (o sonambúlico deflagrar da Primeira Guerra Mundial); que a guerra à distância (desde a bomba nuclear, os drones) pode contrapor "criminosos sem ódio, vítimas sem ressentimento" (Günter Anders); que a carnificina pode se dar independente de fortes convicções (Benjamin Constant sobre o Terror). É isso que Hannah Arendt chamou de "banalidade do mal".

    JEAN-PIERRE DUPUY apresenta a conferência "A Violência e o Sagrado" dia 6/10 no Rio e dia 8/10 em São Paulo dentro da programação do ciclo Mutações deste ano. Para mais informações: www.mutacoes.com.br

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