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    Foucault, de dentro para fora da filosofia

    ANDRÉ DUARTE

    19/10/2014 03h27

    RESUMO Livros inéditos e relançamentos recordam os 30 anos da morte do filósofo Michel Foucault. Além dos temas já familiares para o leitor brasileiro, como a sexualidade, o encarceramento e a saúde mental, novos volumes cobrem desde análises políticas da tragédia grega até questões teóricas a respeito do real na arte.

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    Editadas na França em 2011 por Daniel Defert, o companheiro de Michel Foucault (1926-84), as "Aulas sobre a Vontade de Saber" [trad. Rosemary Costhek Abílio, WMF Martins Fontes, R$ 46, 308 págs.] constituem a transcrição do primeiro curso do filósofo no Collège de France, entre 1970 e 1971.

    Esse curso, do qual dispúnhamos apenas da primeira aula, "A Ordem do Discurso", é magistral: não apenas pela elegância das análises, pela erudição e pela amplitude dos assuntos aí abordados mas porque confere unidade -ainda que não sistematicidade- às pesquisas de Foucault no Collège, que começaram e se encerraram inquirindo as relações entre poder, saber e verdade na antiguidade grega.

    No curso, Foucault analisa as transformações jurídicas, políticas e econômicas que, entre os séculos 7 e 6 a.C., período raras vezes abordado por ele, tornaram possível o advento da "pólis" democrática, da filosofia e da tragédia.

    O fio condutor de Foucault é uma genealogia do inquérito judicial em que se comparam os procedimentos de verificação da verdade factual descritos em Homero, em Hesíodo e, finalmente, nas reformas que inventaram a lei escrita e a moeda, núcleo do curso. Confirma-se ainda a base filosófica nietzschiana da investigação genealógica das relações entre saber, poder e verdade que Foucault então começava a empreender.

    O volume conta ainda com duas aulas, uma sobre Nietzsche e outra, nomeada "O Saber de Édipo", oferecendo-nos análises pormenorizadas sobre as relações entre saber e poder na tragédia de Sófocles, sobre as relações de exterioridade entre verdade e conhecimento em Nietzsche, e também a respeito de filósofos sobre os quais Foucault pouco escreveu, como Aristóteles.

    Nessas análises, Foucault não apenas esbanja erudição filosófica e filológica como as adorna com elegância e clareza. E o que é mais interessante: são as análises filosóficas sobre Aristóteles, complementadas com as lições sobre Nietzsche, que preparam o terreno para as investigações histórico-políticas a respeito da Grécia arcaica e das transformações jurídicas, políticas e econômicas que, lentamente, tornaram possível o advento da Grécia clássica.

    As "Aulas" mostram que é a partir de dentro da filosofia que Foucault se projeta para fora dos textos filosóficos e que tal manobra se destina a elucidar uma série de lutas políticas contingentes -Foucault emprega várias vezes a terminologia marxista da "luta de classes"- sem as quais a filosofia e suas relações bem determinadas entre saber, conhecimento e verdade jamais se teriam constituído.

    VERDADE

    A metafísica, assim, aparece-nos como cega para o fato de que sua concepção da verdade enquanto pura e alheia às contingências histórico-políticas do mundo sublunar depende justamente das lutas políticas que prepararam o terreno para sua aparição.

    Flertando com um materialismo histórico de caráter não dialético, de timbre nietzschiano, Foucault relaciona sua genealogia do inquérito judicial e sua exigência correlata de estabelecimento analítico da verdade dos fatos a uma interessante discussão sobre as lutas histórico-políticas entre aristocratas e camponeses, que estão na raiz das reformas implementadas por legisladores e tiranos ao longo dos séculos 7 e 6 da era pré-cristã.

    Foucault mostra que tais reformas, particularmente a invenção da lei escrita e da moeda, visaram mediar e apaziguar conflitos sociais que tendiam a se radicalizar. Seu argumento é o de que tais reformas promoveram um delicado jogo de equilíbrio: por um lado, houve certa redistribuição econômica e de poder, de maneira que nem os ricos poderiam se assenhorar de todo poder e de toda riqueza nem os pobres poderiam ser reduzidos à extrema pobreza e, assim, alienados do poder pela servidão; por outro lado, no entanto, tais invenções contiveram as reivindicações populares que visavam promover uma radical redefinição do regime econômico e político.

    É nessas "Aulas" que Foucault inicia a investigação da hipótese anunciada em "A Ordem do Discurso", a de que a vontade de verdade exerceria o papel de exclusão em relação a certos discursos, e o faria estabelecendo não apenas a partilha entre verdade, ilusão e falsidade, mas, sobretudo, a partilha ainda mais fundamental entre discursos verdadeiros, ou, ao menos, aptos a conquistar a verdade, e falsos discursos, como os sofismas, que nem mesmo seriam discursos falsos ou errados, merecendo apenas ser descartados.

    Com argúcia, Foucault nos mostra que o enunciado que abre a "Metafísica" de Aristóteles -segundo o qual todo homem por natureza deseja conhecer, tal desejo se anunciando já no prazer da sensação visual que, para além de toda utilidade, agrada por si mesma- "supõe que esteja excluído o tema de um saber transgressivo, proibido, temível". Excluía-se assim algo como o "saber de Édipo", por exemplo, que não é desejado por natureza, mas impelido por complicadas articulações entre saber e poder, que apenas uma análise histórica poderia revelar.

    Na aula que encerra o volume, "O Saber de Édipo", Foucault argumenta, contra Freud, que a grade de inteligibilidade da tragédia de Sófocles não passaria por fazer de Édipo um "brasão do inconsciente, figura do sujeito que ignora a si mesmo," e sim que ele encarnaria a "figura do soberano portador de um saber excessivo", em choque com os saberes e poderes arcaicos.

    Seus "novos" saberes, ele os obterá por meio do inquérito judicial por ele mesmo instalado, em conformidade com as novas regras jurídicas do século 5, ao fim do qual ele próprio aparecerá como réu.

    Ao compreender a tragédia segundo a lógica do símbolo que une duas metades, Foucault mostra que Sófocles põe em cena a figura do tirano que a história tratara de banir. A peça, entretanto, confirma tal banimento e, assim, rende homenagem às reformas jurídico-políticas que tornaram possível a cidade democrática e a própria tragédia, fechando-se o círculo. Diz Foucault em sua conclusão:

    "O problema do saber político -do que é preciso saber para governar e reerguer a cidade-, esse problema que tem tanta importância na segunda metade do século 5, sem dúvida nasceu da supressão dessa antiga figura. 'Édipo Rei' é, na cena trágica, sua reaparição e sua nova supressão."

    "Em um sistema de pensamento como o nosso, fica muito difícil pensarmos o saber em termos de poder e, portanto, de excesso, portanto, de transgressão. Pensamos o saber-e justamente a partir da filosofia grega dos séculos 5 e 4- em termos de justiça, de pureza e de 'desinteresse', de pura paixão de conhecer." E mais adiante: "Pensamos o saber em termos de consciência. Foi por isso que negativizamos Édipo e sua fábula".

    Essa passagem nos ajuda a entender algumas afirmações de Foucault no debate de 1971 com Noam Chomsky, marcadas por sua associação pouco ortodoxa entre Marx e Nietzsche.

    O debate, publicado em livro sob o título "Natureza Humana: Justiça vs. Poder" [trad. Fernando Santos, WMF Martins Fontes, R$ 22, 104 págs.], confronta duas posições irredutíveis.

    Por um lado, Chomsky expõe sua concepção objetiva e a-histórica da natureza humana, com seu potencial intrínseco de criação inteligente, da qual ele extrai consequências teóricas e políticas comprometidas com os ideais de progresso científico e de uma sociedade "decente", na qual as condições econômico-políticas para esse progresso e para o bem-estar social de todos estejam garantidas pela noção de justiça.

    Por outro lado, Foucault recusa o conceito de natureza humana como invenção de uma civilização baseada no sistema de opressão de classes, substituindo-o, no campo filosófico-epistemológico, pela ideia de que o conhecimento obedece a um conjunto de regras anônimas e coletivas, apresentada anteriormente em "As Palavras e as Coisas". E, no campo político, ele substitui o recurso a uma ideia abstrata de justiça pela noção de uma justiça intrínseca à própria luta de classes.

    Em duas afirmações contundentes, ele afirma que "em vez de pensar na luta social em termos de 'justiça', devemos enfatizar a justiça em termos de luta social", e que se entra "na guerra para vencer, não porque ela é justa".

    Chomsky recusa tais afirmações e distingue entre legalidade e uma noção ideal de justiça como critério crítico que permita avaliar os desmandos do poder, bem como recorre a uma ideia de direito que comportaria espaço para a crítica das distorções jurídicas do mundo burguês. Já Foucault conjectura que, numa "sociedade sem classes", talvez já não faça sentido recorrer a qualquer noção de justiça definida anteriormente.

    Caberá aos estudiosos do pensamento foucaultiano avaliar se, em qual medida e de que modo, os constantes deslocamentos de sua reflexão não farão com que ele se afaste dessa noção de poder entendida exclusivamente como embate de forças contrapostas, em nome de uma concepção que permita distinguir mais claramente entre o que é da ordem do exercício do poder e a mera dominação violenta.

    30 ANOS

    No contexto das comemorações dos 30 anos de sua morte, reeditaram-se ainda outras obras importantes de Foucault, como o texto "Isto não É um Cachimbo" [trad. Jorge Coli, Paz e Terra, 84 págs, R$ 20], escrito em 1967, em homenagem à morte de Magritte. Nele Foucault retoma questões teóricas complexas, discutidas em "As Palavras e as Coisas", como as relações entre o real, a representação e a semelhança, porém concentrando-se nos planos da pintura e da linguagem. Entre os anos 1960 e o começo dos anos 70, como se sabe, Foucault escreveu muitos textos sobre literatura, cinema, pintura e música.

    Sua reflexão sobre as artes, por outro lado, vai diminuindo com o aprofundamento de suas pesquisas histórico-genealógicas dos anos 70, bem representadas no volume de artigos organizado por Roberto Machado sob o título de "Microfísica do Poder" [trad. Roberto Machado e outros, Paz e Terra, 432 págs., R$ 47,50].

    Trata-se de coletânea abrangente e que opera como introdução aos temas e ideias centrais do pensamento foucaultiano, como a questão da loucura, o problema do encarceramento e do sistema prisional, a constituição histórica dos hospitais e das políticas de saúde, questões relativas à relação entre arquitetura, geografia e poder, bem como suas reflexões a respeito da sexualidade.

    Particularmente interessante é a entrevista "Verdade e Poder", na qual Foucault expõe sua concepção acerca do intelectual específico, que atua em lutas circunstanciais e pontuais, em oposição ao chamado intelectual universal, aquele que pretende falar pelos oprimidos, conscientizando-os das causas pelas quais devem lutar.

    Finalmente, "História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber" [trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Paz e Terra, 176 págs., R$ 38] é um dos livros mais importantes do autor. Pode-se mesmo dizer que boa parte da mais avançada reflexão contemporânea sobre as relações entre gênero e sexualidade é devedora das teses ali apresentadas, como as obras de Judith Butler e Beatriz Preciado. É um livro pequeno, mas de grande ambição teórica.

    Para Foucault, a sexualidade não poderia ser pensada como um dado da natureza a ser libertado de sua secular repressão. Para ele, a sexualidade como a conhecemos seria o produto histórico da articulação de inúmeros saberes e poderes que fizeram do sexo, sobretudo a partir do século 19, um foco de preocupação, de vigilância, de conhecimento, de punição e mesmo de governo, se pensarmos nas políticas públicas dirigidas ao saneamento e à melhora das condições de vida da população, tema que está na base do conceito foucaultiano de biopolítica.

    Desviando-se da sexologia, Foucault argumentou que, em vez de escrevermos sobre a verdade da sexualidade, mais importante seria experimentar novas formas de prazer, contrárias ao crivo da normalidade, e engajar-nos em lutas que tornassem possível o desfrute dessas novas modalidades.

    ANDRÉ DUARTE, 48, é professor de filosofia da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e autor de, entre outros, "Vidas em Risco: Crítica do Presente em Heidegger, Arendt e Foucault" (Forense Universitária, 2010).

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