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    Um trecho de "Paraíso Reconquistado", de John Milton

    JOHN MILTON
    tradução ADRIANO SCANDOLARA, BIANCA DAVANZO, GUILHERME GONTIJO FLORES, RODRIGO TADEU GONÇALVES, VINICIUS FERREIRA BARTH
    ilustração WILLIAM BLAKE

    16/11/2014 03h46

    SOBRE O TEXTO Este trecho corresponde aos versos 1 a 108 do livro 4 de "Paraíso Reconquistado" -é a primeira vez que se traduz ao português a continuação de "Paraíso Perdido", obra mais famosa do inglês John Milton. O volume sai no dia 25 pela Editora de Cultura e estará à venda só na Livraria Cultura.

    Reprodução

    (Satã tenta o Messias com uma imagem de Roma e a sugestão de que, sendo filho de Deus, deveria tomar o poder secular.)

    Perplexo e perturbado pela falha,
    Estancou, sem resposta, o Tentador,
    Sem esperança, a fraude revelada,
    Bem como sua persuasão retórica
    Da língua que ganhara tanto de Eva,
    Pouco agora; perdida: Eva era Eva;
    Este é superior ao prepotente
    Que se precipitou em comparar
    Sua própria força contra a qual lutava:
    Mas, feito um homem de imbatíveis dolos
    Que ao ver-se inesperadamente ao chão,
    Quer por salvar seu nome, ou por desprezo,
    Inda insiste em tentar quem o frustrara,
    Não cessa e mais aumenta sua vergonha;
    Ou como enxame em tempo de vindima
    Que cerca o doce mosto que se prensa
    E, expulso, inda retorna a zumbizar;
    Ou poderosas ondas contra as rochas,
    Que mesmo em só tremor, de novo assaltam,
    Em vão, pois findam em escuma e bolhas;
    Assim Satã, repulsa e mais repulsa
    Sofre e em silêncio vergonhoso acaba,
    Mas nem desesperado ele desiste
    E em vão persiste sendo inoportuno.
    Levou o Salvador à parte oeste
    Do alto monte, que lá pudesse ver
    Outra planície, longa, mas não larga;
    Banhada pelo mar do sul e, ao norte,
    Se estende uma cadeia de montanhas
    Que protegia a messe e o lar dos homens
    Do gélido Setentrião; no meio,
    Cortada por um rio em cujas margens
    Havia uma Cidade Imperial,
    Com torres, templos, altos e orgulhosos,
    Em sete montes, bela de palácios,
    Teatros, banhos, aquedutos, pórticos,
    Troféus, estátuas, arcos do triunfo,
    Jardins e bosques que ele pôde ver
    Parado acima desses altos montes:
    Que estranha paralaxe, ou truque óptico
    Multiplicou-se pelo ar, que lente
    De telescópio, é caso curioso:
    Por fim, o Tentador rompe o silêncio:
    "A Cidade que viste não é outra
    Senão Roma, Rainha sobre a Terra,
    Renomada e tão rica pelo espólio
    Doutras nações; ali o Capitólio,
    Ergue acima de todos sua fronte
    Sobre a Rocha Tarpeia, cidadela
    Intocável, e ali o Palatino,
    Palácio Imperial, imenso, excelsa
    Estrutura de nobres arquitetos,
    Áureas ameias, longe já notáveis,
    Com torretas, terraços e pináculos.
    E muitos belos edifícios, quase
    Casas dos deuses (fiz perfeito o meu
    Aéreo microscópio); podes vê-las
    Dentro e fora, pilares e telhados,
    Tudo esculpido pela mão de artífices
    Em cedro, mármore, marfim, ou ouro.
    Lança aos portões o teu olhar e vê
    Que imenso fluxo avança, entra e sai:
    Pretores e procônsules que partem
    Ou tornam das províncias, com suas togas;
    Lictores, fasces, marcas do poder;
    Coortes, legiões, equestres turmas e alas;
    Ou embaixadas de regiões remotas,
    Com várias vestes pela Via Emília,
    Ou Ápia: algumas vêm do extremo sul,
    De Siena, onde a sombra tem dois lados,
    Meroé, ilha nilótica; e a oeste
    Vêm do reino de Boco, em Mauritânia;
    Dentre eles vêm os reis da Pártia e da Ásia,
    Da Índia, do dourado Quersoneso
    E da longínqua ilha Taprobana,
    Alvos turbantes cobrem faces negras;
    Do oeste da Bretanha, Gália e Gades;
    Norte, os citas, sarmácios e germanos
    Vêm de além do Danúbio, junto ao Táurico.
    Todas nações estão aos pés de Roma,
    Aos pés do imperador, que tem domínio
    De amplo império, riquezas e poder,
    Civilidade em modos, artes, armas,
    E um bom renome, até superior
    Aos dos partos; além desses dois tronos,
    O resto é bárbaro, nem vale ver,
    Que se divide entre a ralé dos reis;
    Ao que te expus, expostos foram todos
    Reinos do mundo, e toda sua glória.
    O Imperador é velho e não tem filhos,
    Velho e lascivo, longe está de Roma,
    Em Cápria, uma pequena e forte ilha
    Às margens da Campânia, pois lá foi
    Gozar a sós de uma hórrida luxúria,
    E entregou a um perverso favorito
    A República, embora até suspeite
    Que esse odiado a tudo odeia. Fácil
    A ti, dotado de virtudes régias,
    Que apareceste com teus nobres feitos,
    Será tirar o monstro de seu trono,
    Hoje um chiqueiro, e ascender ao posto
    Um povo vencedor, livre do jugo!
    Com minha ajuda, sim; pois me foi dado
    O poder, e por lei to posso dar.
    Nada queiras, senão o mundo inteiro,
    Nada, senão o topo, sem o topo
    Nunca terás assento, nunca o trono
    De Davi, pouco importa a profecia."

    JOHN MILTON (1608-74) foi um poeta britânico, autor de "Paraíso Perdido".

    ADRIANO SCANDOLARA, 25, é poeta e tradutor, autor de "Lira de Lixo" (Patuá).

    BIANCA DAVANZO, 25, é tradutora.

    GUILHERME GONTIJO FLORES, 30, poeta, professor de língua e literatura latina na UFPR, premiado com o Jabuti 2014 pela tradução de "Anatomia da Melancolia", de Robert Burton.

    RODRIGO TADEU GONÇALVES, 33, tradutor, leciona língua e literatura latina da UFPR.

    VINICIUS FERREIRA BARTH, 28, tradutor, edita a revista virtual de arte e cultura R.Nott Magazine (rnottmagazine.com).

    WILLIAM BLAKE (1757-1827) poeta e pintor britânico.

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