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    Douglas Coupland: 3,1415926535

    DOUGLAS COUPLAND
    DO "FINANCIAL TIMES"

    30/11/2014 03h21

    O dinheiro é a cristalização do tempo e do livre-arbítrio

    A invenção do hambúrguer foi uma maneira de homogeneizar vacas. Pegue o que você quiser de vários animais (mas esperemos que seja de vacas), moa tudo, e de repente você tem nas mãos uma unidade de carne consistente e uniforme: o hambúrguer. Do mesmo modo, a humanidade pegou o tempo, como ele era vivenciado, e o converteu em segundos, minutos e horas. Um segundo é basicamente um "hambúrguer de tempo", ou "a duração de 9'192'631'770 períodos da radiação correspondente à transição entre dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio 133" [Wikipedia]. Romântico!

    A cultura moderna desde 1900 se caracteriza pela homogeneização implacável de qualquer coisa que possa ser homogeneizada: subprodutos suínos em salsichas de cachorro-quente; café em cápsulas para as máquinas de café expresso Nespresso; títulos podres em "hedge funds".

    Dentro desse espírito investigativo, começo a me perguntar: "O que é que o dinheiro homogeneíza?"

    A pessoa mediana com nível de instrução secundária emprega 3.000 palavras por dia e é capaz de reconhecer 20 mil palavras. Mas, quando se trata de sequências e números, quando é que uma palavra deixa de ser uma palavra? Exemplos: o próprio alfabeto é uma palavra? Abcdefghijklmnopqrstuvwxyz -todos a conhecemos. Deveria ser uma palavra. A sequência 1234567890 é uma palavra?

    Sabemos que 1.000.000 é uma palavra, mas 1.000.001 também o é? Meu professor de matemática no colegial nos dava um ponto a mais se decorássemos pi até dez casas decimais, e, é claro, todos o fizemos. Então será que trêsvírgulaumquatroumcinconovedoisseiscincotrêscinco é uma palavra? E, se sim, é uma palavra diferente de pi até nove casas decimais (trêsvírgulaumquatroumcinconovedoisseiscincotrês)? Quem saberia a resposta?

    Alguns anos atrás eu estava fazendo uma faxina em um espaço velho da casa e, dentro de uma lata enferrujada de tinta, encontrei um saco de lona cheio de moedas de prata -moedas canadenses de dez centavos pré-1967, de prata, e uma seleção de moedas americanas mais antigas. Não sei como é encontrar um tesouro, mas deve ser como a sensação de encontrar uma lata enferrujada cheia de moedas. Ao telefone com minha mãe, mencionei a descoberta. Ela disse: "Me traga as moedas agora mesmo. Você já as separou?"

    "Já."

    "Jogue tudo dentro da lata outra vez. Quero separá-las aqui."

    Greg Salibian - 6.set.2014/Folhapress
    O escritor e artista plástico Douglas Coupland na mostra "Ciclo", realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, em SP, em setembro de 2014
    O escritor e artista plástico Douglas Coupland na mostra "Ciclo", realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, em SP, em setembro de 2014

    Fui à casa dela, e ela estava com um ímã, pronta para ajudar a separar as moedas (a prata não é magnética). Foi minha primeira festa de separação de dinheiro à moda do Tio Patinhas. No final, o valor das moedas chegou a US$2.100. Se meu contador tivesse telefonado para dizer que tinha encontrado um jeito para eu economizar impostos no valor de US$2.100, eu teria ficado de bom humor, mas não teria sido a sensação de encontrar um tesouro. Os bons contadores deveriam esconder sacos de dinheiro poupado de impostos em vários lugares de nossas casas. Imagine a alegria que poderiam proporcionar às pessoas.

    A preocupação com dinheiro é uma das piores preocupações. É como estar com síndrome do encarceramento, só que você continua a se mexer e a fazer as coisas. Sua cabeça arde. Qualquer coisa que indique que outras pessoas não estão tendo problemas com dinheiro deixa você enfurecido. A falta de dinheiro o deixa obcecado e furioso, porque faz você lembrar que é limitado nas maneiras em que pode expressar sua influência no mundo. Preocupar-se com dinheiro induz à raiva, porque faz você pensar no tempo: quantos dólares por hora, quanto salário por ano, quantos anos faltam para você se aposentar. A preocupação com o dinheiro o obriga a fazer contas mentais intermináveis. A maioria das pessoas não gostava de matemática no colégio e não gosta dela agora.

    As pessoas fazem coisas estranhas por quantias de dinheiro estranhas. Na abertura de uma exposição minha em Vancouver, os levantadores de fundos para a galeria perguntaram se havia alguma coisa que as pessoas pudessem fazer para ganhar um cupom de US$10 da Starbucks, uma das patrocinadoras da exposição. Espalhei uma pilha de blocos de Lego vermelhos por uma faixa de seis metros e a chamei de "a caminhada de fogo Lego". Para conseguir o cupom, era preciso atravessar a faixa descalço. As pessoas estavam gostando, mas então percebemos que, se colocássemos menos bloquinhos, seria mais doloroso atravessar a faixa. Isso a tornou irresistível. Há uma lição de marketing a tirar disso.

    Não sou mórmon, mas admiro o mormonismo como religião. Os mórmons realizam coisas, se vestem bem e não parecem pregar demais. Também gosto porque eles acreditam -e eu concordo-que as duas coisas que diferenciam os seres humanos de todos os outros do universo é que os humanos têm livre-arbítrio e a percepção do passar do tempo. Acho que isso resume um aspecto fundamental da humanidade na terra -e talvez seja o mais básico que uma filosofia possa ser. Então comecei a pensar que talvez seja isso o que é o dinheiro: uma cristalização, ou, melhor, uma homogeneização do tempo e do livre-arbítrio nessas coisas que chamamos de dólares, libras, ienes e euros. O dinheiro multiplica nosso tempo. Amplia nossa possibilidade de influir e o número de coisas que podemos fazer. Os grandes ganhadores da loteria não ganharam 10 milhões de dólares -ganharam 10 mil anos-pessoa de tempo para fazer praticamente qualquer coisa que queiram, em qualquer lugar do mundo. Pilhas de dinheiro recebidas de modo inesperado são como a versão do tempo e do livre-arbítrio multiplicados pelo efeito da metanfetamina.

    Tempo e livre-arbítrio. Já mencionei isso antes, mas é verdade: se você perguntar a pessoas com mais de 50 anos o que prefeririam ter, mais tempo ou mais dinheiro, quase todas escolheriam o tempo. Mas o que escolheriam se pudessem optar entre mais dinheiro e mais livre-arbítrio? Sabemos a resposta a essa pergunta, e ela se chama Escandinávia.

    O livro mais recente de Douglas Coupland é um título de não ficção, "Kitten Clone", publicado pela Visual Editions.

    Twitter: @dougcoupland

    Tradução de CLARA ALLAIN

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