RESUMO Um mês após a morte da mulher, com quem foi casado por 49 anos, o historiador Boris Fausto iniciou um diário sobre a experiência do luto. As anotações dos últimos quatro anos, publicadas agora em livro, testemunham a batalha de um homem comum, despido de pretensão intelectual, para seguir vivendo.
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o retrato que se forma de Boris Fausto ao fim da leitura de "O Brilho do Bronze" é uma surpresa para os leitores -e, em alguns aspectos, até para ele mesmo.
O grande Fausto, digamos assim, que já conhecemos, é o historiador de 84 anos, um dos intelectuais mais respeitados do Brasil, autor de livros de vulto sobre temas centrais do país.
Raquel Cunha/Folhapress | ||
O historiador Boris Fausto na biblioteca de sua casa, no Butantã (SP) |
Mais recentemente, Fausto publicou duas obras de memórias, "Negócios e Ócios" (1997) e "Memórias de um Historiador de Domingo" (2010). Apesar do registro pessoal, em ambos os títulos, procurou manter a objetividade, o distanciamento do historiador.
"O Brilho do Bronze" [Cosac Naify, 240 págs., R$ 39,90] deixa entrever um outro Fausto, não o intelectual, mas o pequeno Fausto, o homem comum diante de uma dor terrível, a perda da mulher com quem foi casado por 49 anos.
A educadora Cynira Stocco Fausto morreu em junho de 2010, de câncer. Um mês depois, Fausto, decidiu dar início a um diário, que vem a público agora. Os textos escritos nos últimos quatro anos, quase todos tocantes, alguns surpreendentemente engraçados, ilustram a luta cotidiana, sem qualquer pretensão intelectual, de apenas sobreviver ao que de início parecia insuperável. "Mudou minha relação com o mundo", diz o historiador.
Fausto recebeu a Folha em sua casa no Butantã , que ele teve que reaprender a habitar sem Cynira.
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Folha - Como surgiu o diário e por que o senhor decidiu publicá-lo?
Boris Fausto - Depois que a Cynira morreu, eu fiquei naquele transe e decidi escrever um diário para mim, com a intenção primeira de circular entre os íntimos. Não havia inicialmente a intenção de publicar. Mas os amigos se interessaram. A Marta Garcia, editora que já vinha comigo da Companhia das Letras, leu o começo, gostou e quis publicar. Daí resolvi continuar a escrever, mas já sabendo que seria lido por um público mais amplo.
A escrita pode ser um consolo?
Acho que ajuda, pois você inventa uma missão na vida. Corta um pouco aquela sensação de que nada mais tem sentido. Escrever foi bom, foi útil, mas foi muito penoso em certos momentos.
O senhor não tem religião, mas cita no livro um trecho do "Diário de Luto", que Roland Barthes escreveu após a morte da mãe: "Que barbárie não acreditar nas almas, na imortalidade das almas! Que verdade imbecil é o materialismo!". Ficou tentado a se apegar à fé?
Eu concordo com o Barthes (risos). Pouco depois da morte da Cynira, eu vi "Além da Vida" (2010), o filme do Clint Eastwood no qual vivos e mortos trocam experiências. Eu saí do cinema eufórico, dizendo "é isso aí, vou me encontrar com a Cynira". Porque não era Jesus quem afirmava, era o Clint. Ele é mais confiável (risos).
Mas essa sensação passa. Poderia dizer até infelizmente. No dia seguinte o ceticismo já havia se instalado. No fundo a gente tem até um pouco de orgulho de se dizer racional, de afirmar que vemos as coisas com mais clareza, sem todas essas muletas que são fabricadas para gente se aguentar.
O que mudou na sua rotina nesses últimos quatro anos?
Mudou minha relação com o mundo. Hoje sou mais aberto nas relações pessoais. Mais compreensivo com as pessoas. Eu ampliei meu círculo de amigos.
No meu aniversário [dia 8 de dezembro], por exemplo, fui jantar com meus novos amigos de Ibiúna [cidade do interior de São Paulo, onde o autor tem casa]. Era um grupo de profissionais liberais, pouco intelectualizado, mas muito afetivo. Porque o intelectual, para ser claro, é difícil, é um bicho muito complicado (risos).
No passado, embora eu não dissesse isso, no fundo, no fundo, eu achava que o grupo intelectual era superior. Meu interesse pelos outros grupos era muito secundário. Isso hoje mudou. Os acadêmicos que me perdoem, mas certamente esse outro grupo é mais afetuoso, tem muito mais abertura.
E a vivência do luto mudou?
Ah sim, bastante. Você vai se sentindo mais forte. Hoje estamos aqui, nem te conheço, mas te conto essas coisas sem esforço. Isso já é uma coisa nova, é um novo Boris. Não tenho mais resguardo de falar isso ou aquilo. Eu não tô nem aí.
MARCO RODRIGO ALMEIDA, 31, é jornalista da Folha.