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    Conversa com Carrière, Oscar honorário do ano

    CLAUDIO LEAL

    01/02/2015 03h51

    RESUMO Colaborador de nomes como Jacques Tati e Luis Buñuel, o escritor e roteirista Jean-Claude Carrière repassa aqui sua trajetória. Autor, com Peter Brook, do "Mahabharata", adaptação em nove horas do mito indiano, o francês que nasceu numa casa sem livros e se tornou um bibliófilo é um narrador, nas diferentes acepções do termo.

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    Uma chuva afilada e teimosa, dessas de Paris em qualquer estação, batizaria a entrada de Jean-Claude Carrière no universo do cinema. Por segundos atento às calçadas da rue Dumont d'Urville, o cômico francês Jacques Tati se encantou com uma observação do escritor de 26 anos, abrigado sob a porta de sua produtora. "Engraçado! Quando chove, os carros vão devagar e os pedestres andam rápido", atentou Carrière. Seguiu-se um lampejo de Tati: "Você tem percebido isso?".

    Editora de seu romance de estreia ("Lézard", de 1957), a Robert Laffont selecionara Carrière para a adaptação literária dos filmes "As Férias do Sr. Hulot" e "Meu Tio", dirigidos por Tati. Assim, viu-se compelido a aprender a técnica da montagem, e logo receberia um roteiro das mãos da montadora Suzanne Baron, aproximando-se, cena por cena, da linguagem secreta e quase muda de Hulot, o personagem de alma inadaptada à modernidade.

    O escritor francês atribui ao encontro com Tati a dádiva da iniciação profissional. Em 8 de novembro de 2014, aos 83 anos, Carrière ganhou um Oscar honorário em Los Angeles, numa cerimônia a ser exibida na festa de fevereiro deste ano. A Academia premiou um dos mais conceituados roteiristas da história do cinema, presente em cerca de 80 filmes e, em seis décadas, associado a obras de criadores como Peter Brook, Louis Malle, Jean-Luc Godard, Andrzej Wajda, Nagisa Ōshima, Milo Forman, Michael Haneke, Hector Babenco e Fernando Trueba.

    A parceria com o diretor espanhol Luis Buñuel rendeu seis longas, que incluem "O Diário de uma Camareira" (1964) e "Esse Obscuro Objeto do Desejo" (1977), e inúmeras narrativas de uma amizade aprofundada em vinhos e viagens.

    A chuva parisiense, ou melhor, aquela frase sobre os carros e os pedestres, de honrar um criador de gags, funcionou como um abracadabra, em 1957. Sem esse pitaco, acredita Carrière, Tati poderia abrir o guarda-chuva e dar adeus.

    Meses antes do anúncio do Oscar, Jean-Claude Carrière avisou ao repórter quais aperitivos seriam servidos em seu palacete do século 19: "Haverá chá, vinho ou uísque". Dentro de um pátio privado de Pigalle, um dos distritos da vida libertina de Paris, o imóvel de quatro andares acolheu outrora um bordel e um antro de jogadores, ambos fechados em 1931 -por algum deboche dos astros, o ano de nascimento do atual morador. No último piso, a poucos degraus do bafafá, o pintor Toulouse-Lautrec se empoleirava num ateliê.

    "Não há razão especial para morar aqui. Tive a sorte de comprar esta casa (em 1976)", diz ele, na sala de visita, cercado de obras de arte asiáticas e africanas. "Baudelaire, Jean Renoir, Mallarmé, Paul Valéry e André Breton viveram na vizinhança. Gosto do bairro", sorri. De longe ressoam as vozes da mulher, a escritora iraniana Nahal Tajadod, 54, e da filha Kiara, 12.

    O roteirista instalou duas salas de trabalho no porão, e nele construiu ainda um ambiente para a banheira, decorado com elementos orientais, a partir do qual se abre um closet em que as roupas mínguam ante centenas de livros em vários idiomas. A escultura de Buda oferece um mal-entendido. "Não tenho religião. Sempre fui ateu, mas sem violência", graceja.

    LIVROS

    A biblioteca barroca despediu-se da casa em dezembro de 2013. Dentre os 273 livros raros levados a leilão, os colecionadores salivaram por oito volumes do cosmólogo, matemático e ocultista inglês Robert Fludd (1574-1637), o autor de uma "História do Macrocosmo e do Microcosmo". O conjunto de obras de Fludd chegou a ser cotado em 55 mil euros.

    As buscas livrescas de Carrière estão narradas em "Não Contem com o Fim do Livro" (Record, 2010), uma conversa com o escritor italiano Umberto Eco mediada pelo jornalista Jean-Philippe de Tonnac. Essa paixão reage à abstinência de sua infância em Colombières-sur-Orb, no sul da França. "Nasci numa casa de pequenos camponeses, onde não havia nem livros nem gravuras. Nada, salvo os livros do colégio."

    Com a mudança para a capital francesa, em 1945, descobriu Sade e duas obras traumáticas: "O Estrangeiro", de Albert Camus, e o "Manifesto Surrealista", de André Breton. "São dois livros que marcaram a minha geração", diz Carrière. "'O Manifesto Surrealista' me conduziu num sentido. Breton aconselhava a ler isso, isso e isso. Depois, li outras coisas. Não é bom escutar uma pessoa dizendo 'tem que ler isso, isso não!', mesmo que essa pessoa se chame André Breton."

    O selo de roteirista não contempla sua personalidade de polímata. Mestre em história, Carrière é autor de romances -"O Mahabharata" (Brasiliense, 1991), "A Controvérsia" (Companhia das Letras, 2003)-, manuais de roteiro, ensaios, dicionários (um deles sobre a burrice) e traduções para o francês do escritor inglês William Shakespeare, do espanhol José Bergamín e, com a mulher, da poesia do cineasta iraniano Abbas Kiarostami.

    Em 2014, movido pelos transtornos financeiros da Europa, o escritor lançou o ensaio "L'Argent: Sa vie, sa Mort" [Dinheiro: sua vida, sua morte, Éditions Odile Jacob], no qual transforma o dinheiro em personagem, "para entender o que não entendia na crise de 2009".

    Desenha, compõe e, desde a infância, é capaz de produzir o próprio vinho. "Jean-Claude sabe tudo o que pergunto. É um ser universal", declarou a cantora Juliette Gréco à Folha. Em 1998, ela gravou um álbum com canções do amigo: "Un Jour d'Été et Quelques Nuits".

    Todas essas habilidades deságuam no "contador de histórias". Assim se vê o homem de barba irregular e olhos zelosos. "Rapidamente decidi não ser diretor e continuar a escrever para todas as áreas. No momento em que fosse diretor de cinema, iria esquecer a literatura, o teatro etc. Seria o fim", reconheceu Carrière, que dirigiu apenas três curtas.

    MÍMICA

    O boulevard de Clichy o separa de um artista central em suas incursões pela mise-en-scène. Do outro lado de Pigalle, num prédio agregado a velho casarão, o palhaço Pierre Étaix, 86 anos, preserva a elegância corporal de mímico. Ficaram amigos nas jornadas de finalização de "Meu Tio". "Jean-Claude me disse que queria fazer cinema, mas lhe interessava essencialmente o cinema cômico", conta o ex-assistente de direção de Tati. "Ele me falava muito de Buster Keaton, que eu não conhecia. Os filmes americanos não chegavam à França em guerra".

    A dupla realizou "Rupture" (1961) e o vencedor do Oscar de melhor curta "Heureux Anniversaire" (Feliz aniversário, 1962), esticando a cumplicidade aos roteiros de outros seis filmes, numa febre só interrompida pela falta de grana. "Uma pobreza terrível", queixa-se Étaix.

    "Em 'Rupture', durante um traveling, usei uma mão empurrando a câmera e a outra para fazer as regulações. Foi uma proeza", gaba-se Carrière, que abandonou a direção em 1969. "La Pince à Ongles" (O cortador de unhas), escrito com Milo Forman, se inspira numa situação surreal vivida no Rio, em meio à filmagem de "Pour un Amour Lointain" (Por um amor longínquo, 1968), de Edmond Séchan. "Estava no meu quarto, falando com um colega, e havia deixado um cortador de unha no banheiro. Nunca mais encontrei esse maldito cortador."

    O processo de escrita de roteiros não se modificaria, substancialmente, na convivência com cineastas excêntricos. "Meu trabalho é sempre o mesmo: fazer um bom filme", simplifica Carrière. "O roteirista deve estar totalmente integrado ao diretor. Se ele não se reconhece no roteiro, é porque o roteiro não é bom. Para mim, é uma exigência ter o mesmo nível de conhecimento técnico."

    A prevenção de Godard contra qualquer roteiro lhe abriu uma escola diferente. Na gênese do script de "Salve-se Quem Puder", de 1980, Carrière e a cineasta suíça Anne-Marie Miéville, mulher do diretor de "Acossado", adaptaram-se ao método godardiano: de uma história nebulosa, partiram para os rabiscos sobre o filme, amparados por projeções de fotos, vídeos e quadros de pintores como Pierre Bonnard (1867-1947).

    O trabalho com Buñuel projetou sua mística de roteirista e originou um caso de simbiose criadora, inabalada nos confinamentos que chegavam a durar cinco semanas. Os clássicos "A Bela da Tarde" (1967) e "O Discreto Charme da Burguesia" (1972) talvez sejam as obras mais conhecidas dessa união iniciada por uma pergunta de Buñuel, tão singela quanto eliminadora: "Bebe vinho?".

    O espanhol gostava dos claustros e dos monges; desgostava dos cegos (Jorge Luis Borges, em especial) e dos chapéus mexicanos; admirava os anões e a arte gótica. Odiava as estátuas de Dom Quixote. Na entrevista, Carrière definiu a amizade com a famosa frase de Montaigne ao explicar sua proximidade com Étienne de La Boétie: "Porque era ele, porque era eu".

    Esforça-se um pouco mais e extrai alguns elos: "A diferença de geração era importante. Havia 31 anos de diferença entre ele e eu. Havia coisas do mundo contemporâneo que ele não conhecia. E havia coisas do mundo antigo que ele conhecia. Em comum, o Mediterrâneo. Eu sou do sul da França, ele é espanhol. Éramos do Mediterrâneo. O latim, o catolicismo, meu gosto pelo surrealismo. Gostava do surrealismo antes de conhecê-lo".

    Pelas suas contas, comeram juntos mais de mil vezes. A partir de "A Bela da Tarde", Buñuel instituiu o "direito de veto", uma regra criada pelo pintor espanhol Salvador Dalí nos tempos de "Um Cão Andaluz" (1929): cada um teria somente três segundos para dizer sim ou não à ideia proposta pelo outro; uma negativa, dentro dessa margem, derrubaria a sugestão.

    O livro de memórias "Meu Último Suspiro" (Cosac Naify, 2013), depoimento de Buñuel a Carrière lançado em 1982, é a obra-prima derradeira dos amigos. "Ele tinha 80 anos e se cansou de fazer filmes. Encontrei um pretexto para ir ao México e propor o livro a dois. De início, ele não quis e disse que todas as camareiras escreviam memórias", recorda, rindo.

    TEATRO

    Com o diretor teatral britânico radicado na França Peter Brook, 89, ele consolidou sua presença nos palcos. Em 21 de maio de 2014, a dupla se reencontrou no bate-papo de lançamento de "La Qualité du Pardon - Réflexions sur Shakespeare" (A qualidade do perdão - reflexões sobre Shakespeare, Seuil), ensaios de Brook traduzidos pelo parceiro. Na Maison de la Poésie, em Paris, Carrière surgiu de chapéu, casaco preto e camisa roxa. Algo nele fazia lembrar o lendário ator Jean Gabin.

    Peça de nove horas encenada em 1985 e convertida em filme e série de TV, "O Mahabharata" virou a maior aventura cultural da dupla. "Trabalhamos por muito tempo (dez anos). Foi um imenso trabalho", disse Brook, tomando um vinho tinto enquanto esperava o fim da chuva.

    "Certamente é a coisa mais difícil que fiz em minha vida", afirma o escritor. "'O Mahabharata' é a própria Índia. Não podia adaptá-lo sem conhecer a Índia". Quinze vezes mais longo que a Bíblia e um dos pilares do hinduísmo, "O Mahabharata" é um poema épico em sânscrito que, estima-se, começou a ser escrito nos séculos 4 ou 5 a.C., com sucessivas alterações.

    "Embora entenda que o filme não tenha sido bem recebido na Índia, creio que consegue transmitir ao público algo da gravidade e do teor emocional deste que é, sob muitos aspectos, um conto sombrio de intriga, violência e guerra, não obstante atravessado por uma profunda espiritualidade", avalia, por e-mail, o professor de sânscrito Robert Goldman, da Universidade da Califórnia em Berkeley.

    Jean-Claude Carrière mantém uma rotina plena de viagens, conferências e novos filmes. "Não há dois dias que sejam iguais. É uma regra em minha vida. Amanhã, por exemplo, não vou te ver!", troçou. Em breve, serão filmados roteiros seus com o afegão Atiq Rahimi, de "A Pedra de Paciência", e o americano Julian Schnabel, de "O Escafandro e a Borboleta".

    "O cinema se renova sempre. Se você assiste a um filme de hoje, ele não é montado como outro feito há 50 anos. Tudo muda. Todo grande cineasta -por exemplo, Kiarostami, Lars von Trier e (Michael) Haneke- muda a linguagem", reflete Carrière, contestando a tese de uma decadência criativa. "Há 50 anos, quem pensaria que a Coreia do Sul, Taiwan, Irã e Argentina -ou a Turquia!- se tornariam grandes países cinematográficos?"

    CLAUDIO LEAL, 33, é jornalista.

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