• Ilustríssima

    Thursday, 28-Mar-2024 17:08:23 -03

    A condição humana: duas visões do que é ser judeu

    NOEMI JAFFE

    19/04/2015 03h00

    RESUMO Dois livros abordam, segundo vias diferentes, a definição da identidade judaica. "Ser Judeu" reúne textos de Vilém Flusser, que destaca a gratuidade e o absurdo como traços comuns. Já "Os Judeus e as Palavras", de Amós Oz e de sua filha Fania-Oz Salzberger, considera a leitura aspecto essencial dessa identidade.

    *

    "Ser judeu", de Vilém Flusser (1920-91) e "Os Judeus e as Palavras", de Amós Oz e Fania-Oz Salzberger, são livros semelhantes em suas diferenças e diferentes em suas semelhanças.

    O parágrafo acima, em seu aparente absurdo e controvérsia gratuita, já é bem judaico. Afinal, sou judia e, segundo os autores de "Os Judeus e as Palavras" [trad. George Schlesinger, Companhia das Letras, 256 págs., R$ 39,90; e-book R$ 27,90], judeu é qualquer um que goste de polemizar.

    Já que ser judeu não é uma religião, nem um povo, nem uma raça, nem uma cultura, talvez a compulsão pela controvérsia seja uma síntese possível do perfil judaico.

    Vilém Flusser era um pensador ligado ao existencialismo, com uma linguagem e uma interpretação do real poeticamente abstratas e metafísicas.

    "Ser Judeu" [trad. Murilo Jardelino e Marcelo Rouanet, Annablume, 246 págs., R$ 55] é uma coletânea de vários ensaios produzidos ao longo dos anos que o autor tcheco naturalizado brasileiro viveu no país (numa edição que, diga-se, tem o maior número de erros que já encontrei num mesmo livro) e é possível dizer, de forma breve, que Flusser lamenta, em sua condição incontornavelmente racionalista, não ser um simples "chassid", cumpridor feliz e sabiamente tolo dos rituais judaicos.

    Sua leitura do real e do judaísmo é complexamente apegada a uma simplicidade impossível para um filósofo que já não pode mais sentir "a alegria espontânea de viver o absurdo". Absurdo que, segundo ele, é um dos fundamentos do judaísmo (inclusive em sua interpretação definitiva de Kafka).

    Amós Oz e sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger, ambos declaradamente ateus e seculares, identificam como traço definidor do judaísmo, só e simplesmente, a leitura. "Não é preciso ser arqueólogo, antropólogo, geneticista para traçar um continuum judaico. Não é preciso ser um judeu praticante. Não é preciso ser judeu. Ou, quanto a isso, ser antissemita. Basta ser um leitor." Para os dois, o lugar do judeu é o livro, e se você, leitor que se considera não judeu, for um leitor ativo e crítico, um comentarista da leitura, sinto dizer, mas, para os Oz, você é judeu.

    Ocorre que essa defesa do livro como o espaço perene do judaísmo é narrada de forma simples e pé no chão, carregada de anedotas, piadas, casos talmúdicos e uma abordagem da realidade que, de tão prática (o judaísmo é também uma práxis), é quase pragmática.

    Ou seja, o livro complexo se apega à gratuidade absurda do simples e o livro simples defende a elevação espiritual pela leitura.

    PARADOXOS

    Nada mais judaico do que esses paradoxos complementares, ambos corretos, mas, referindo-se, talvez, a dois tipos diferentes de judeus –para Oz, a palavra "judeus", porque parte de indivíduos, é muito mais interessante como nomenclatura do que "judaísmo", um termo recente na história e que, atualmente, serve até a propósitos segregadores.

    Flusser, a partir da observação de um de seus melhores amigos, Romy, estranha continuamente a alegria serena e inexplicável daqueles que, como esse amigo, são cumpridores rigorosos das festividades e dos rituais judaicos.

    Como Romy, homem estudioso, racional, amante das artes seculares, pode seguir as cerimônias e regras com tanto fervor, sem se questionar e, ainda assim, permanecer em estado de contínua alegria?

    A resposta de Flusser é só aparentemente simples.

    Essas limitações seriam justamente a razão pela qual Romy podia atingir o êxtase impossível –ao menos para a maioria dos intelectuais cuja palavra de ordem é, quase sempre, a melancolia. "Compreendi que os inúmeros mandamentos e proibições do judaísmo não são limitações, mas aberturas para uma vida santificada, festiva. Pois isto é o ritual judaico: formalismo como abertura para o existencialismo verdadeiro."

    Flusser compreende, na festividade, o que chama de "acte gratuit", a prática da existência, ou a existência prática, sem finalismos ou utilitarismos que a assombrem; gestos sem esperança de recompensa –e, o que é mais revolucionário, sem noção de sacrifício. A má ação é evitada não porque será punida, mas por ser ruim em si.

    Nesse sentido, a visão flusseriana do judaísmo lembra alguns comentários de outro filósofo judeu, Lévinas, que, por sua vez, pensa o "eu" não em termos do Ser (como fazia Heidegger), mas em termos de bondade e gratuidade.

    É principalmente na "finalidade sem fim" das festas e no bem desmesurado e desnecessário de sua prática que Flusser enxerga a condição alegremente absurda da vivência judaica. (Oz, aqui, poderia tranquilamente intervir com suas piadas ou histórias em que o próprio Deus discute com alguns rabinos e, para espanto do leitor crédulo, sai perdendo).

    Já em "Os Judeus e as Palavras", pai e filha veem na combinação "pão e palavras", ou "pão e livros", a explicação para a sobrevivência tão longa e marginal dos judeus na diáspora, desde sua expulsão para a Babilônia. Foi em torno da mesa, comendo, lendo, estudando e discutindo a Torá (e assim, criando o Talmud) que os judeus mantiveram sua condição, mesmo que sempre instável (e por causa dela).

    Discordar, obedecer compreendendo –por oposição à gratuidade do "chassid" de Flusser– e mesmo, por que não, desobedecer respeitando são os caminhos que definem o ser judaico. Deus, para os autores, é mais uma das palavras criadas pelos judeus para compor sua história –embora, claro, seja uma das mais importantes.

    Numa das parábolas contadas no livro um rabino chega aos céus para encontrar Deus, não em contemplação ou êxtase, mas estudando. "Por que Deus haveria de estar estudando? Bem, por que não? Não é ele a 'yid'? É isso o que faz um judeu. Estuda!"

    Entretanto, é nas semelhanças entre os dois livros, embora tratem de dois tipos judaicos diferentes, que se perfaz mais profundamente a dialética que mais os une do que os separa e que, por sua vez, legitima a visão de ambos sobre o judaísmo como um conhecimento de alcance e interesse universais.

    Para Flusser, a festa gratuita do judeu acontece na relação intersubjetiva de cada pessoa com seu semelhante e na aceitação do mistério e da impossibilidade de conhecer o outro.

    "O rosto humano é a única imagem de Deus que conhecemos" e é eternamente impossível compreendê-lo. Por isso é preciso abrir-se a esse desconhecido e, segundo o autor, só há duas maneiras de assumir-se judeu: "para os outros judeus ou para o mundo".

    É claro que Flusser recomenda a segunda alternativa: "O que nos faz falta é o movimento diastólico que abre o judaísmo para os outros, ao se abrir para eles". Mas essa atitude de abertura para o outro, não só para os judeus, pode se conciliar com o cumprimento gratuito das regras judaicas? Para Flusser, sim. Aliás, do modo como ele interpreta as limitações, essa seria uma das formas mais poéticas de abrir-se, como conseguia fazer seu grande amigo Romy.

    "O judaísmo pode reduzir-se a um mero gozo da sacralidade ou a uma vida que assume a responsabilidade da existência em mundo absurdo pelo reconhecimento do sacro em outro homem". No caso, qualquer outro homem, não só qualquer outro homem judeu.

    Já Amós Oz e sua filha, ao depositarem nas palavras e na leitura o eixo da continuidade judaica (afinal, o judaísmo pode ser isso –nem religião, nem povo, nem cultura, mas uma continuidade), universalizam a ideia do judeu para qualquer pessoa que se dedique a comentar os textos sagrados e, ainda mais longe, os textos em geral.

    Se a interpretação, para os Oz, é a palavra-chave do judaísmo, é na leitura que os autores fazem de alguns trechos da Torá e da Mishná que se revelam as afinidades fundas entre sua visão e a de Flusser: se "toda alma é um mundo inteiro" (...) "cada um de nós deve ser infinitamente importante para os outros e para o coletivo, porque cada um é uma variante única da imagem de Deus".

    Um judaísmo que ama e respeita as possibilidades infindas das palavras é, afinal, um judaísmo que ama e respeita quem as cria e quem as pronuncia. Ou seja, todos. Se as histórias bíblicas são fatos ou parábolas, se foram escritas por homens ou por Deus, não diz tanto respeito aos autores. O que importa é que elas existem, são belas, construtivas e pedagógicas.

    "Enquanto numerosas gerações de judeus devotamente acreditaram que sem deus não haveria netos, no fundo de seus corações também sabiam que sem netos não haveria nenhum deus." O tempo judaico, dizem os Oz, é tão importante quanto seu espaço. O tempo, aliás, pode ser a morada do judeu.

    Se Flusser pede a abertura do ser judeu para o outro, também Oz relembra que quem quer que, como os judeus, tenha tido seu mundo desfeito não pode ser estranho aos judeus. "O lancinante sentimento de um mundo desfeito –não apenas perdido, desfeito– permeia igualmente as calamidades palestina e judaica."

    Termino a leitura dos dois livros, assim como este breve ensaio, ainda me perguntando: mas por que sou judia? Por que qualquer pessoa é um judeu?

    Não tenho a resposta definitiva, embora essas leituras tenham me ajudado a esclarecer algumas coisas. Mantendo vivos o desejo e a prática de continuamente me abrir para o desconhecido, de me compadecer da dor alheia, de praticar gestos absurdos e gratuitos com quem quer que seja e de sempre respeitar a ambiguidade das palavras e das leituras, terei a bênção de dois dos judeus que mais respeito e admiro.

    NOEMI JAFFE, 53, doutora em literatura brasileira pela USP e autora de "O que os Cegos Estão Sonhando?" (ed. 34)

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024