RESUMO Cansados dos abusos de cartéis da droga e da inação do Estado, mexicanos do interior formam milícias. A Folha acompanhou grupos em Guerrero, um dos Estados mais pobres do país, onde 43 estudantes sumiram em suposta ação conjunta entre políticos e criminosos e onde se planta 60% da papoula na produção de heroína.
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Faz calor na delegacia comunitária do município de San Marcos, no Estado de Guerrero, sul do México. Com os olhos fixos na reportagem da Folha, o comandante Tomás Palma Espírito, 58, fala ao telefone num tom de voz sereno.
A pistola à cintura não o impede de sentar-se relaxado, com os pés apoiados sobre as sandálias. Do outro lado da linha, ouve-se de longe uma mulher aos gritos. "Peço calma à senhora, nós vamos trazer seu marido aqui e ele vai explicar o que aconteceu", diz dom Tomás, encerrando a conversa.
Do lado de fora, três rapazes armados com escopetas riem e conversam com duas adolescentes. Numa cela improvisada na sala do antigo casarão, um menor de idade chora, e outro detento, com cara de enfado, tenta acalmá-lo. Pergunto o que o menino fez de errado. "O pai o trouxe para ele se recompor, estava infernizando demais em casa", diz José, 21, com um ar de naturalidade, rifle cruzado no peito. "Já o outro estava andando por onde não devia, armado. Ainda não sabemos se é narcotraficante", completa.
Dom Tomás explica, então, como grupos de justiceiros do tipo do que ele comanda, conhecidos como "autodefensas", vêm se formando em algumas regiões do México "para suprir o que o Estado não faz". Assim, a delegacia de San Marcos não só combate o crime organizado mas também assume a tarefa de educar crianças travessas, curar jovens do alcoolismo ou resolver desavenças conjugais.
"Há uns anos, esse município estava cheio de 'delinquentes'. Vinham em seus carros com vidros escuros, roubavam nossas vacas, cobravam mensalidade dos comerciantes e estupravam nossas mulheres. Pegamos em armas para proteger o que é nosso, nossa comunidade. Como eles fizeram", diz, apontando para imagens que tem coladas à parede, detrás de si.
As fotocópias coloridas exibem retratos desgastados de Pancho Villa (1878-1923) e Emiliano Zapata (1879-1919), heróis da Revolução Mexicana (1910), e de Vicente Guerrero (1782-1831), um dos generais da Guerra de Independência (1810), que dá nome ao Estado.
No pensamento articulado de dom Tomás, que usa óculos grossos e se diz leitor voraz de livros de história, tanto essas figuras do passado como as atuais "autodefensas" buscam justiça popular.
"Eles defendiam o povo dos que tinham o poder, terras e dinheiro no passado. Hoje, nós que fazemos isso, defendemos nossos irmãos da terra contra o governo, que é corrupto e aliado ao narcotráfico."
Os Estados de Guerrero, Oaxaca e Michoacán, ao sul do país, e Sonora, Chihuahua, Tamaulipas e Sinaloa, ao norte, são os que têm maior presença de cartéis da droga. Estima-se que haja cerca de 15 dessas organizações, operando de forma dinâmica, mudando de liderança e campo de ação para ludibriar os serviços de inteligência.
Os cartéis mexicanos despontaram nos anos 1990, quando ações do Exército colombiano, com ajuda e financiamento dos EUA, praticamente dizimaram os cartéis de Cáli e Medellín, responsáveis então por 80% da cocaína produzida e distribuída no mundo. A quebra do esquema deu aos agrupamentos mexicanos o controle das rotas.
Se no início o país era "apenas" passagem obrigatória para a cocaína do Peru, da Bolívia e da Colômbia rumo aos EUA, não tardou para que os criminosos mexicanos transformassem as rotas em vias para escoar e comercializar outros entorpecentes e produtos ilegais.
O principal deles é a heroína. Segundo dados recém-divulgados pela DEA, a agência norte-americana antidroga, o consumo da substância nos EUA quadruplicou nos últimos cinco anos. Já o número de mortes relacionadas a seu uso foi, em dois anos, de 1.779 a 3.665. Em fevereiro de 2014, a morte do ator Philip Seymour Hoffman chamou a atenção da mídia local para a explosão do problema.
PAPOULA
A maior parte da heroína consumida nos EUA vem dos Estados de Guerrero e Oaxaca, os mais pobres do México. Ali há imensas plantações clandestinas de papoula (de cujo bulbo se extrai a pasta para elaborar a droga) e laboratórios para processamento.
Nos plantios trabalham famílias humildes, recrutadas pelos traficantes. Se o quilo de heroína sai da serra valendo US$ 5.000 (cerca de R$ 15 mil) e chega à fronteira custando US$ 25.000 (cerca de R$ 75 mil), nas ruas de Nova York vale por volta de US$ 100 mil (cerca de R$ 300 mil). A lucratividade do negócio é praticamente imbatível.
"Guerrero é onde se planta 60% da papoula do país, e o resultado é que sua estrutura social foi destruída", diz o analista político Jorge Zepeda Patterson.
O surgimento das "autodefensas" está relacionado a essa desconstrução social provocada pelo comércio ilegal de drogas. Milícias civis como as de dom Tomás são formadas por comerciantes, camponeses e pequenos empresários de regiões afetadas pelo tráfico.
Sua motivação pouco tem a ver com a droga em si. A principal preocupação é conter os abusos que os membros dos cartéis cometem contra a população local.
Ao tomarem cidades, vilarejos e estradas para estabelecer uma rota para a droga, os criminosos passam a cobrar pedágio para que os produtores locais transitem com mercadorias, exigem mensalidades para não atacar lojas, sequestram familiares de agricultores em troca de resgate, convocam garotos da região como mensageiros e, não raro, meninas para cozinheiras ou acompanhantes sexuais.
"Somos pobres e estamos abandonados, o governo não chega aqui, nem a saúde pública, nem a educação, muito menos a polícia. Não há investigação nem punição quando nos extorquem ou estupram nossas filhas. Por isso resolvemos atuar. Não é uma questão de moralismo. Se o sujeito quer se drogar, que se drogue, se quer comprar ou vender drogas, que o faça, mas não mexam com nossas famílias", diz Ernesto Gallardo, 30, ex-agricultor e pai de quatro filhos que hoje é comandante da polícia comunitária de Tecoanapa.
A Folha acompanhou a ação de três tropas de "autodefensa", ou "polícias comunitárias" (como são chamados pela população), em Guerrero. Os integrantes revezam-se em turnos de 24 horas, montam guarda nas entradas das cidades, revistam carros e atendem a denúncias de roubos ou sequestros feitas por moradores.
Como oficialmente não recebem salário, muitos mantêm atividades profissionais nas horas em que não estão a serviço da milícia. "Não dormi essa noite. Sou músico e toquei até tarde numa festa. Mas sinto que tenho que fazer isso. Não quero que meus filhos virem traficantes quando crescerem", diz Estanislao Sosa, 49, enquanto esfrega os olhos vermelhos e úmidos.
"Antes a gente apenas recebia a denúncia, ia lá, trazia o 'delinquente' e prendia aqui mesmo. Agora fazemos com mais cuidado, investigamos antes se a acusação é verdadeira ou não." E como investigam? "Consultamos a população. Sempre tem alguém que viu e sabe o que de fato aconteceu. Não é difícil descobrir a verdade. Os mortos têm olhos, você não sabia?", responde dom Tomás, um ex-oficial do Exército que abandonou o serviço militar após 12 anos.
"Não são as Forças Armadas que sabem o que é melhor para o povo. Nem a Justiça. É o povo mesmo. O governo deveria deixar que voltássemos a viver como antes, segundo as leis de usos e costumes da população local. Com respeito aos líderes mais velhos de cada comunidade e com as penas que nós estabelecemos", completa.
Há cinco grandes concentrações de "autodefensas" em Guerrero, altamente hierarquizadas, que cobrem 60% do Estado, com cerca de 10 mil voluntários. Outros 13 Estados, dos 31 que constituem o México, têm "autodefensas". O aumento do poder das milícias civis levantou uma discussão sobre o risco que corre o Estado de Direito. O debate social pegou fogo ao se tornar uma questão política.
TEMPLÁRIOS
No começo de 2014, a presença do cartel dos Cavaleiros Templários no rico Estado de Michoacán não só provocou o aumento dos índices de violência. O crime organizado também tomou o porto de Lázaro Cárdenas, o maior do país na costa do Pacífico, e passou a controlar o escoamento de exportações para a China.
O governo federal reagiu à grita dos exportadores locais. Sem dados de inteligência ou recursos para enfrentar o problema, o presidente, Enrique Peña Nieto, do Partido Revolucionário Institucional, apresentou um programa de integração das milícias civis ao Exército. As "autodefensas" seriam legalizadas, transformando-se em "polícias rurais". Entregariam as armas pesadas e colaborariam com as Forças Armadas; em troca, poderiam atuar nas comunidades. Alguns aceitaram, outros não.
A oposição criticou o governo duramente, argumentando que essa era a velha forma de atuar do PRI, partido que governou o México por 71 anos, fazendo pactos clandestinos tanto com milícias quanto com o crime organizado, apenas para garantir que a violência fosse mascarada.
Para o analista político Sergio Sarmiento, essa fronteira jamais deveria ter sido cruzada. "O Estado não pode nunca abrir mão do monopólio do uso da força."
Já para o historiador Lorenzo Meyer, as raízes do movimento estão no período colonial e pertencem à cultura política regional. "No começo, a Espanha pedia que os súditos na América se unissem em milícias urbanas. Só no século 18 começou-se a pensar num Exército profissional, com a perspectiva de uma invasão inglesa."
O acordo entre o governo e as milícias de Michoacán, de início, teve efeito. A violência na região diminuiu, e um importante líder dos Cavaleiros Templários, La Tuta, foi enfim preso pelo Exército.
Recentemente, porém, a aliança desandou. Com a recusa de alguns grupos a participar do acordo, houve um racha entre as forças, que começaram a se enfrentar.
Enquanto algumas tropas receberam membros infiltrados pelos Templários e passaram elas mesmas a cobrar pedágios e a desviar a produção local, outras se arregimentaram em torno de empresários isolados. Em janeiro, um enfrentamento entre milícias, com a participação do Exército, terminou com 16 mortos, num tiroteio no meio da cidade de Apatzingán, uma das principais do Estado.
"Era questão de tempo para que isso começasse a acontecer. Sabíamos que as 'autodefensas' iam sair do controle e ganhar vida e poder próprios. Agora que o governo as legalizou, como restringi-las?", inquire o analista Alejandro Hope.
O governo federal anunciou que está investigando o papel que tiveram nas mortes os oficiais do Exército ou de "polícias rurais".
APOIO ELEITORAL
Com a pele artificialmente branqueada, Ociel García Trujillo, 38, sorri nos cartazes de propaganda eleitoral no município de Cruz Grande.
Numa quinta à tarde, o atual prefeito se prepara para uma grande festa, na qual inaugurará um parque esportivo e reforçará sua candidatura a deputado pela região. No dia 7 de junho, o México elege 500 deputados ao Congresso, nove governadores e 993 prefeitos.
O clima eleitoral expõe a dependência da precária estrutura política regional mexicana. Muitos dos atuais prefeitos estão sob acusação de vínculo com o narcotráfico, que se transformou em financiador de várias campanhas.
Os que tentam se mostrar "limpos", como García Trujillo, que concorre pelo esquerdista PRD, têm de buscar apoio das milícias.
Poucas horas antes do ato, o prefeito se reúne com a tropa local.
"Vocês sabem que estou do lado de vocês, conto com a sua força para representar nossa luta no Congresso", diz ao grupo. García Trujillo lembra que o centro esportivo será também para os filhos deles.
A palavra passa para um dos milicianos, que pede que se reforme o lixão. Outro quer um campo de futebol onde mora, pois seu filho não pode ir até ali. "Vamos fazer tudo, mas preciso de mais tempo, e que vocês me ajudem nessa eleição. Meu orçamento na prefeitura é muito limitado. Como deputado, terei acesso ao orçamento federal. Vocês não sabem o que é isso!"
O acordo é selado com um aceno do comandante e brindes celebrados com garrafas de refrigerante.
Quando os "autodefensas" viram as costas, a reportagem indaga ao prefeito sobre a conveniência de pedir apoio a uma milícia civil. Nitidamente embaraçado, García Trujillo responde. "Mas não vou deixar que me dominem! Hoje preciso do apoio deles. Depois os trarei para o marco da lei. Vou promover cursos de ética, treinamento policial. Não vale a pena comprar briga com eles. Temos de lhes ensinar o que diz a lei", explica.
A alguns quilômetros dali, no vilarejo de El Pericón, dona Brígida Chora Lopez, 83, está sentada em casa. Aponta para as pernas para explicar que tem dificuldades para andar, não enxerga nem ouve direito, mas lembra-se muito bem de como era Guerrero durante sua infância. "Não havia estrada até aqui, quem queria ir da Cidade do México ao litoral tinha de pedir ajuda aos moradores e caminhar vários dias pelas trilhas", diz, enquanto debulha milho para fazer "tortillas", massa herdada do passado pré-colombiano que é a base da alimentação popular.
Nos últimos meses, os familiares de dona Brígida têm controlado seus passos, com o temor de que, ao sair, ela veja as fotos do neto nas ruas ou no altar montado para o jovem na sala da casa do pai.
Alexander Mora Venancio, 21, foi o único dos 43 estudantes desaparecidos em 26 de setembro na escola rural de Ayotzinapa a ter seus restos mortais identificados.
Nos retratos pregados na casa de um só cômodo em que vivia com o pai, o irmão, a cunhada e os dois sobrinhos, ele aparece sério, sempre usando uniforme de times.
"Ele adorava futebol, mas queria muito ser professor, havia tentado outras escolas, estava muito feliz por ter sido aceito em Ayotzinapa", diz seu pai, Ezequiel.
O que houve com os estudantes não foi de todo esclarecido, mas aponta para o elo financeiro entre autoridades locais e narcotráfico.
A Justiça investiga as conexões entre o prefeito de Iguala, José Luis Abarca, e o cartel local Guerreros Unidos. Na noite do crime, os estudantes da escola rural planejavam um ato contra a candidatura à prefeitura da mulher de Abarca, María de los Ángeles Pineda.
A investigação trabalha com a hipótese de que o casal, que está preso, teria pedido que a polícia interceptasse os ônibus nos quais os jovens iam à cidade. Os oficiais os teriam entregado aos Guerreros Unidos que, após matá-los, teriam esquartejado e queimado os corpos, no lixão de Cocula. Foi nesse local que os restos mortais de Alexander foram encontrados.
A tragédia marcou o início da queda de popularidade de Peña Nieto e mostrou que o México de desempenho econômico exitoso em relação ao resto da América Latina não pode ocultar uma guerra civil em curso. A popularidade do presidente foi dos 51% de aprovação que tinha um ano antes –quando obteve apoio inédito no Congresso para reformas constitucionais polêmicas, como a privatização da exploração de petróleo– para 39%. Isso a longos quatro anos do fim do seu mandato.
No exterior, reluzem o crescimento do PIB (estimado em 3,5% a 4% neste ano), a redução do desemprego e o aumento de investimentos estrangeiros para o polo industrial no centro do país. Entre outros dados, o México ultrapassou, recentemente, o Brasil como maior produtor e exportador de automóveis da América Latina.
A herança da guerra ao narcotráfico, porém, ainda é seu principal desafio. Iniciado em 2006 pelo conservador Felipe Calderón (PAN), que decidiu enviar o Exército contra os cartéis, o conflito tem um saldo oficial de mais de 60 mil mortos. As estimativas também somam 23 mil desaparecidos, sendo 40% jovens de 15 a 29 anos.
Após a desaparição dos 43, multidões protestaram. Sete meses depois, os cartazes de "vivos os levaram, vivos os queremos" ainda flamulam na Cidade do México.
SYLVIA COLOMBO, 43, repórter especial da Folha, assina o blog Latinidades no site do jornal (sylviacolombo.blogfolha.uol.com.br)
ADRIANA ZEHBRAUSKAS, 46, é fotógrafa e mora na Cidade do México.