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    Alexander Scriabin: o compositor que escutava cores

    GIULIO DRAGHI

    03/05/2015 03h00

    RESUMO Personalidade excêntrica, que aliou o misticismo à composição de obras musicais elaboradas, o russo Alexander Scriabin é lembrado no centenário de sua morte. Sua obra, cercada de mito desde a composição, aos 16 anos, de um estudo para piano, será recordada no segundo semestre no Brasil, pela Osesp.

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    O mundo musical homenageia em 2015 os cem anos da morte do compositor russo Alexander Scriabin, cuja fama se desenrolou a partir de duas singelas páginas, compostas pelo pianista de uma só penada, aos 16 anos.

    O famoso "Estudo em Dó # menor Op.2 n.1", constante nos recitais de Vladimir Horowitz (1903-89), permeado de profunda melancolia, deflagrou o mito e a lenda em torno da figura de Scriabin.

    A fim de compreendermos melhor o alcance e o significado de um "opus" tão peculiar na história da música, seria útil nos determos um pouco no ambiente no qual o compositor se desenvolveu.

    Nascido em 1871, Scriabin foi certamente um produto da explosão de criatividade artística que acometeu a Rússia "fin-de-siècle" e pré-revolucionária.

    Oriundo de uma família tradicional, cujos antepassados remetem ao século 13, e tendo perdido a mãe logo após o seu nascimento, o pequeno Shurinka –como era então apelidado– foi criado num ambiente feminino e superprotetor constituído por uma avó, uma tia-avó e uma tia. Iniciou seus estudos com o legendário professor Nicolai Zverev e teve por companheiro de classe ninguém menos do que Rachmaninoff (1873-1943).

    De temperamento hipersensível e místico, Scriabin sentiu-se de imediato atraído por qualquer filosofia que pudesse dar um respaldo a sua natureza inquieta.

    De ávido leitor de Nietzsche e Schopenhauer, o jovem músico passou rapidamente para escritores teosóficos tão em voga na época –como registra seu biógrafo Fabion Bowers, naqueles anos "os russos passavam o seu tempo livre obcecados com sessões espíritas, tentando se comunicar com o além por meio de tábuas ouija ou se 'rasputinizando' em torno deste ou daquele homem santo".

    Entre as figuras que absorveram a atenção de Scriabin estava sua conterrânea Helena Blavatsky.

    Embora considerada postumamente por muitos estudiosos como uma das maiores charlatãs de sua época, madame Blavatsky pregava uma doutrina que se adaptava perfeitamente às questões espirituais que o compositor desejava expressar por meio de sons. Seus contos fantásticos abordando eventos sobrenaturais, entidades malignas, vampiros tibetanos e experiências fora do corpo forneceram a centelha necessária para incendiar a criatividade visionária de Scriabin.

    É necessário salientar que, apesar de todo o seu entusiasmo, Scriabin nunca foi considerado um estudioso sério: tendo lido febrilmente uma página qualquer de alguma teoria teosófica, era capaz de seguir impávido, professando aquelas ideias como suas e ainda as expandindo conforme suas necessidades no momento.

    CORES

    Scriabin necessitava apenas de uma ideia, de um princípio. Uma vez de posse de alguma fagulha, sua imaginação imediatamente explodia em sonoridades inusitadas, harmonias e cores arrojadas. Cores, sim: o compositor nasceu com uma rara condição médica conhecida como sinestesia, condição esta em que o paciente tem um dos seus cinco sentidos diretamente associado a outro –no caso do compositor, sua audição estava conectada diretamente à visão.

    Na medicina, tal condição é chamada de cromestesia. A cada som percebido, Scriabin visualizava imediatamente uma cor que a ele correspondesse. Nos seus últimos anos de vida chegou a encomendar um aparelho munido de lâmpadas coloridas, que pode ser visto e operado por visitantes em seu apartamento em Moscou, onde funciona o Museu Scriabin.

    INDIGESTÃO

    Embora definitivamente impregnadas de um "páthos" russo, suas obras iniciais deixam ver imediatamente a influência do polonês Chopin (1810-49) –tanto que um contemporâneo seu, o compositor italiano Ferruccio Busoni (1866-1924) as rotulava sarcasticamente de "uma indigestão de Chopin".

    Este é sem dúvida o caso da atormentada "Sonata op.6 n.1", que reflete um grave momento de crise na vida do compositor. Por todo o primeiro movimento, uma intrusiva e raivosa mão esquerda ecoa em conflito com a melodia ansiosa executada pela mão direita. Em seu último movimento a sonata conclui em fortíssimo com uma "Marcha Fúnebre" –melodia cuja lugubridade ultrapassa em muito a célebre marcha homônima do compositor polonês.

    A presença de uma mão esquerda mais incisiva do que a direita em quase todas as obras pianísticas de Scriabin, se bem intrigante, tem uma simples razão de ser.

    Tendo assistido o virtuose Josef Lhevinne (1874-1944) receber a Grande Medalha de Ouro do Conservatório de Moscou com uma execução arrebatadora da "Fantasia" de Liszt sobre a ópera "Don Juan", de Mozart –e tendo Scriabin na mesma ocasião recebido apenas a Pequena Medalha de Ouro–, o competitivo compositor decidiu encerrar-se numa "datcha" nos arredores de Moscou e praticar a mesma obra dia e noite, decidido a emular o feito do oponente.

    O resultado de horas consecutivas deste trabalho irracional –contemporâneos reportaram que era possível ouvir som do piano da outra margem do rio Klyazma– foi uma grave tendinite na mão direita que por um triz não encerrou sua ambicionada carreira de pianista.

    Foi nesse momento que surgiu na vida do compositor um mecenas, na figura do comerciante de madeiras e proprietário de terras Mitrofan Belaieff. Não só o multimilionário se comprometeu a pagar imediatamente por cada peça composta e a publicá-las como concedeu a Scriabin um salário, a fim de que ele pudesse se dedicar à composição em tempo integral.

    Livre de preocupações materiais, prosseguiu com suas inclinações filosóficas, que haviam evoluído para um bizarro pancristianismo místico-visionário que permearia toda sua obra futura. Ele tentava conclamar as "forças divinas misteriosas do Universo", conjurando-as por meio de harmonias sofisticadas, orquestrações ousadas e indicações de dinâmica inéditas para a sua época.

    Parafraseando Glenn Gould, o ouvinte "não devia entender grande coisa, mas se sentia elevado de alguma forma". Suas perorações em público incluíam declarações excêntricas (como "eu sou o criador de um novo mundo, portanto sou Deus"), que constituiriam uma fonte contínua de constrangimento para os seus amigos.

    Na estreia da sinfonia "Prometeus", obra monumental e repleta de misteriosas combinações tímbricas, uma mulher na plateia sofreu um ataque cardíaco. Os críticos não o pouparam, associando a ele e à sua obra termos como "perversão" "negativismo", "sonoridades caóticas" e "inovações antiartísticas".

    Mesmo um apoiador ardente do compositor como o regente russo Serge Koussevitsky não se furtou a comentar suas estranhezas: "Scriabin está convencido de que quando terminarmos de executar sua sinfonia, o mundo irá desmoronar, mas o fato é que iremos em seguida todos juntos para um ótimo restaurante".

    O fato de ter nascido na noite de Natal certamente motivava o misticismo de Scriabin; já o fato de ter morrido na Páscoa contribuiu para impressionar seus seguidores além de qualquer medida. Mas, extravagâncias pessoais à parte, é certo que ninguém consegue ficar indiferente a sua música.

    Sua morte aos 44 anos foi a mais banal possível para um homem tão repleto de autoconfiança e profundamente convencido de sua missão: uma pequena pústula localizada sobre o lábio superior evoluiu rapidamente para uma septicemia da qual nada pôde salvá-lo.

    Durante a subsequente Revolução Soviética, sua obra seria alvo de censura; o partido não via com bons olhos nem suas menções teosóficas nem sua música em si, considerada por demais simbolista e fora dos padrões do almejado realismo soviético.

    Se hoje suas composições se encontram plenamente reabilitadas, em grande parte isso se deve a pianistas como Horowitz, Richter, Sofronitsky, Zhukov e ao brasileiro Roberto Szidon (1941-2011), intérprete de uma belíssima integral das dez sonatas para piano, "Complete Piano Sonatas" –um conjunto de três CDs lançado em 2004 pela gravadora Deutsche Grammophon.

    A obra orquestral de Scriabin foi gravada incontáveis vezes e, se a execução ao vivo nas temporadas não tem sido mais constante, o motivo se deve mais às dificuldades de arregimentação de um efetivo orquestral tão grande do que a uma falta de interesse por parte de regentes. No segundo semestre, peças de Scriabin integrarão apresentações da Osesp e recitais de convidados em 14 ocasiões.

    Numa bela definição, o pianista e escritor russo Konstantin Gaymar disse que Scriabin "passou pelo mundo como um meteoro, iluminando com uma luz estranha o horizonte musical de sua época". Felizmente, edições críticas, numerosas gravações e a execução constante de suas obras para piano permitem que sua arte prossiga viva e luminosa.

    GIULIO DRAGHI, 55, é pianista e leciona na Escola de Música da UFRJ.

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