• Ilustríssima

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    Chega ao Brasil o relato censurado de um prisioneiro de Guantánamo

    PATRÍCIA CAMPOS MELLO

    24/05/2015 02h01

    RESUMO A "Ilustríssima" antecipa trecho de "O Diário de Guantánamo", que será lançado pela Companhia das Letras no final de junho. Relato de um prisioneiro que ainda permanece atrás das grades, o livro (publicado com as marcas da censura americana), narra a rotina infernal a que são submetidos os detentos.

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    "Eles estão morando nos trópicos, são bem alimentados e têm tudo o que poderiam desejar; não há nenhuma nação no mundo que trate pessoas determinadas a matar americanos do jeito que tratamos essa gente."

    Essas são palavras do então vice-presidente americano Dick Cheney, em 23 de junho de 2005, referindo-se à prisão de Guantánamo, na base militar que os EUA detêm na baía de mesmo nome, em Cuba.

    "O Diário de Guantánamo" incinera todas as tentativas de maquiar o que aconteceu dentro de uma prisão que torturou centenas de pessoas e mantém várias delas encarceradas até hoje, sem acusação formal ou julgamento. Em 466 páginas, o mauritano Mohamedou Ould Slahi, o prisioneiro 760, mostra em detalhes excruciantes a rotina de torturas que viveu.

    Shane T.McCoy - 28.jun.04/AP
    Supostos membros do Taleban e da Al Qaeda presos em Guantánamo
    Supostos membros do Taleban e da Al Qaeda presos em Guantánamo

    O livro, que sai no Brasil pela Companhia das Letras no fim do mês que vem, é o primeiro relato de um prisioneiro que ainda está trancafiado em Guantánamo.

    Slahi escreveu à mão, em sua cela no Campo Echo, e passou o manuscrito para seus advogados. Escreveu em inglês, sua quarta língua, que aprendeu na prisão.

    Ele terminou o trabalho em 2005, mas o manuscrito ficou "sob revisão" do governo americano por mais de seis anos até ser liberado para publicação. Mesmo assim, cheio de trechos censurados –o livro foi editado com todas as 2.600 tarjas pretas dos censores.

    "Só escrevi aquilo que experimentei, que vi e que ouvi pessoalmente", afirma no livro o prisioneiro. "Tentei não exagerar nem atenuar. Tentei ser tão imparcial quanto possível, com o governo dos Estados Unidos, com meus irmãos e comigo mesmo."

    O suplício de Slahi começou há 14 anos, quando deixou sua casa em Nuakchott, capital da Mauritânia, e foi até o quartel da polícia nacional dirigindo o próprio carro, para prestar esclarecimentos. Os policiais mauritanos garantiram que ele voltaria logo.

    De lá, foi levado por agentes americanos para uma prisão na Jordânia, onde ficou por sete meses e meio e foi torturado. Depois foi conduzido a um centro de detenção em Bagram, no Afeganistão. Slahi chegou à base de Guantánamo no dia 5 de agosto de 2002. Continua lá, sem nenhuma acusação formal nem perspectiva de um dia ser julgado ou solto.

    AL QAEDA

    Slahi, de uma família numerosa, ganhou aos 18 anos uma bolsa para cursar engenharia elétrica na Alemanha. Nos anos 90, interrompeu seus estudos para se juntar aos mujahidin no Afeganistão, que lutavam para derrubar o governo comunista, com apoio dos EUA. Na época, foi treinado pela Al Qaeda. Mas ele afirma ter cortado todos os laços com a facção muitos anos antes dos atentados de 11 de Setembro.

    Após o Afeganistão, regressou à Alemanha, onde terminou seus estudos e começou a trabalhar. De lá, foi para o Canadá tentar a vida.

    Depois do 11 de Setembro, Slahi foi detido, acusado de envolvimento em um complô para pôr uma bomba no aeroporto de Los Angeles. Nada foi provado –e ele voltou para a Mauritânia.

    Como diz um interrogador no livro: "Tem cara de cachorro, andar de cachorro, cheiro de cachorro, late como cachorro, deve ser um cachorro". Além de ter treinado com a Al Qaeda nos anos 90, Slahi tinha um primo distante que era conselheiro espiritual de Osama bin Laden –difícil mesmo convencer os americanos de que ele não era um cachorro.

    No meio do livro, ele lembra uma lenda popular de seu país, a história de um homem que tinha fobia de galos e quase ficava louco quando via um. Na história, um psiquiatra pergunta ao homem por que tem tanto medo de galos. "O galo pensa que eu sou milho", responde ele. Ao ouvir do médico que não é milho, mas "um homem muito grande", o paciente retruca: "Eu sei disso, doutor. Mas o galo não sabe. Seu trabalho é ir até ele e convencê"'lo de que eu não sou milho". O homem não se cura, uma vez que falar com um galo é tarefa impossível. "Há anos venho tentando convencer o governo dos EUA de que eu não sou milho", escreve Slahi.

    Na prisão, ele foi submetido a todo tipo de tortura: em isolamento durante anos, era obrigado a ficar de pé horas seguidas, em posições dolorosas; era espancado repetidamente e depois tinha a roupa "recheada" de gelo para eliminar as marcas; era obrigado a tomar litros de água por horas, incessantemente, e proibido de dormir; ficava em celas com ar-condicionado no máximo e rock pesado a todo volume, por dias; ficou anos sem poder trocar cartas com a família e sem receber visitas da Cruz Vermelha.

    "A censura tem sido, desde o início, parte integrante das operações pós"'11 de Setembro dos EUA. Isso tem sido proposital, não por um, mas por dois motivos: primeiro, para abrir espaço aos maus"'tratos contra prisioneiros, e depois para ocultar que tais maus"'tratos tenham ocorrido", diz Larry Siems, escritor e ativista de direitos humanos que editou o livro.

    Siems não sabe se Slahi aprovou o resultado final, porque nunca conseguiu falar com o prisioneiro ou se encontrar com ele, apesar de repetidos pedidos ao governo americano. Os lucros da edição estão sendo depositados em um fundo, parte do qual foi empregado para pagar a educação de um sobrinho do prisioneiro, na Mauritânia.

    O editor pesquisou toda a documentação sobre prisioneiros e métodos "avançados" de interrogatório –e, segundo ele, a história de Slahi é corroborada por esses registros. Todas as acusações contra ele se apoiam em confissões obtidas depois de incessantes sessões de tortura.

    No livro, o prisioneiro afirma ter feito várias confissões falsas para acabar com o tormento. Questionado se estava falando a verdade, Slahi disse a um interrogador: "Para mim tanto faz, desde que você esteja satisfeito; se você quiser comprar, eu estou vendendo".

    Para o o escritor britânico John le Carré, o relato é "uma visão do inferno, muito além de Orwell, além de Kafka".

    CONTA-GOTAS

    Desde que assumiu a Presidência, em 2009, Barack Obama quer acabar com Guantánamo. Mas o Congresso, influenciado por conservadores, não admite a transferência de detentos para prisões nos EUA. O presidente tenta então fechar a prisão a conta-gotas, transferindo alguns prisioneiros para outros países. Dos 779 originais, restam 122.

    No governo George W. Bush, os EUA tentavam ativamente embelezar o que se passava em Gitmo, como a prisão é apelidada pelos militares. Na primeira vez que lá estive, em 2008, participei de um "tour" de relações públicas. Os jornalistas eram convidados para que a administração pudesse mostrar que as coisas tinham mudado e não havia mais os abusos do começo.

    Obviamente, ninguém mencionava que a maioria dos presos estava lá sem acusação formal e sem direito a julgamento. E que muitos deles haviam sido entregues por afegãos e paquistaneses, em troca de recompensas de US$ 5 mil por cabeça.

    Um livro como "O Diário de Guantánamo" garante que essa enorme mancha na reputação dos EUA não seja apagada tão facilmente. E que as críticas não cessem antes de que a prisão seja fechada.

    *

    CRONOLOGIA

    jan.2000
    Após 12 anos estudando e trabalhando entre Alemanha e Canadá, o mauritano Mohamedou Ould Slahi decide voltar a seu país. A pedido dos EUA, é detido duas vezes no caminho e interrogado sob suspeita de integrar o Complô do Milênio, plano para fazer explodir o aeroporto de Los Angeles. É libertado em 19 de fevereiro

    29.set.2001
    Mohamedou, que vive com sua família e trabalha como engenheiro elétrico em Nuakchott, é detido e mantido preso por duas semanas pelas autoridades da Mauritânia e novamente interrogado por agentes do FBI sobre o complô. As autoridades da Mauritânia afirmam publicamente sua inocência e é libertado

    20.nov.2001
    É convocado pela polícia para novos interrogatórios. Vai à delegacia dirigindo seu próprio carro

    28.nov.2001
    É levado, num avião da CIA, para uma prisão em Amã, capital da Jordânia, onde é interrogado durante sete meses e meio pelos serviços de inteligência locais

    19.jul.2002
    É levado, acorrentado em outro avião da CIA, para a base aérea militar dos EUA em Bagram, no Afeganistão. Os eventos relatados no livro começam com esta cena

    4. ago. 2002
    É levado para Guantánamo

    2003/2004
    Americanos submetem Mohamedou a um "plano especial de interrogatório" aprovado pessoalmente pelo secretário de Defesa à época, Donald Rumsfeld. A tortura a que seria submetido incluiria meses de extremo isolamento; humilhações físicas, psicológicas e sexuais; ameaças de morte; ameaças a sua família; e um sequestro e rendição simulados

    3.mar.2005
    Mohamedou escreve à mão uma petição por ordem judicial de habeas corpus. No verão, em sua solitária, Mohamedou redige à mão as 466 páginas que originariam "O Diário de Guantánamo"

    12.jun.2008
    A Suprema Corte dos EUA decide que os presos em Guantánamo têm direito de contestar sua detenção por meio de habeas corpus

    ago/dez.2009
    O juiz de Tribunal Distrital dos Estados Unidos James Robertson ouve a petição de habeas corpus de Mohamedou

    22.mar.2010
    O juiz Robertson aceita a petição de habeas corpus e ordena que Mohamedou seja libertado

    26.mar.2010
    A administração Obama entra com recurso contra a decisão. O caso segue pendente e Mohamedou continua preso em Guantánamo

    PATRÍCIA CAMPOS MELLO, 40, é repórter especial da Folha e esteve duas vezes em Guantánamo.

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