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    Leia trecho de "Euforia", de Lily King, inspirado em Margaret Mead

    LILY KING
    tradução ADRIANA LISBOA
    ilustração ELISA VON RANDOW

    31/05/2015 02h02

    SOBRE O TEXTO Baseado em um breve período da vida da antropóloga norte-americana Margaret Mead (1901-78), "Euforia", do qual se extraiu este trecho e que sai pela Globo em julho, foi considerado um dos melhores livros do ano passado pelo jornal "The New York Times". No romance, o triângulo amoroso entre os pesquisadores Nell Stone, seu marido, Schuyler Fenwick, ou Fen, e Bankson se desenha contra o pano de fundo de um árduo trabalho de campo na Nova Guiné.

    *

    Ela sonhava com bebês mortos, escreveu em seu livro de pano de casca de árvore. Bebês em chamas. Bebês presos em árvores entrelaçadas. Bebês cobertos de formigas. Deitada em sua cama, contava o número de bebês mortos que tinha visto nos últimos dois anos. O menino anapa tinha sido o primeiro, cortado do ventre de sua mãe morta para que não os assombrasse. A menina Minalana, quase um ano de idade, picada por uma aranha-de-costas-vermelhas. Com os mumbanyos, muitas vezes não havia cerimônia para a morte de uma criança. Tropeçava-se nelas, semienterradas ou presas entre os juncos do rio. Qualquer bebê que fosse inconveniente, ou que se acreditasse ser de outro homem. E um homem podia evitar o tabu pós-parto de seis meses sem relações sexuais livrando-se do bebê. Com os anapas houvera cinco, dezessete com os mumbanyos, e agora Sali. Vinte e três bebês mortos. Vinte e quatro se ela contasse o seu próprio bebê, um grumo escuro envolto em folha de bananeira e enterrado debaixo de uma árvore que ela nunca mais veria.

    Ouviu-os debaixo da casa, esperando por ela. A risadinha da filha de nove anos de Sema e o choramingo de seu irmãozinho, provavelmente querendo mais da cana que a mãe balançava sobre a cabeça. Ela ouviu as palavras para "comer", "doce" e o nome que eles lhe haviam dado, Nell-Nell.

    Elisa Von Randow

    Surpreendia-a que ainda viessem. Eles não tinham atribuído a morte do bebê de Sali à sua presença no momento do nascimento. Ainda não, pelo menos. Quando ela visitou Sali na noite anterior, Sali descansara a cabeça em seu ombro por um longo tempo. Seu filho havia sido enterrado dois dias antes, numa clareira a meia hora dali. Sali o levou, seu corpo pequenino pintado de barro vermelho, o rosto de branco, o peito diminuto decorado com conchas. Numa das mãos colocaram um pedaço de bolo de sagu, na outra uma flauta em miniatura, para crianças. Seu pai cavou uma cova rasa. Pouco antes de Sali colocá-lo ali, ela apertou algumas gotas de leite de seu peito duro e cheio para os lábios pintados, e Nell desejou tanto que aqueles lábios se movessem, mas eles não se moveram, e em seguida o cobriram de solo arenoso marrom.

    Fen entrou no mosquiteiro com uma xícara de café para ela. Ele se sentou na cama e ela se levantou para pegar a xícara.

    – Obrigada.

    Fen se sentou de lado para ela, esmagou um gorgulho azul claro com o sapato, ficou olhando para o pano que cobria a janela. Tinha uma cabeça pequena, considerando-se o seu comprimento e circunferência. Fazia seus olhos e seus ombros parecerem maiores do que eram de fato. Sua barba crescia depressa, os pelos escuros. Ele tinha se barbeado na noite anterior, mas já tinha começado a crescer, e não o azul escuro que aparecia depois de algumas horas, como uma nuvem de tempestade, mas pelos mesmo, brotando dois ou três por poro. Mulheres, em todos os lugares, costumavam achá-lo atraente. Ela o achara bonito no início, naquele barco no oceano Índico.

    Ele sabia que Nell tinha chorado e não olhava para ela.

    – Eu só queria ver uma criança ficar viva.

    – Eu sei – disse ele, mas não tocou nela.

    Debaixo da casa, eles tinham começado a bater varas nos apoios.

    – Aonde você vai hoje? – ela perguntou.

    – Vou ajudar com a canoa.

    Trabalhar na canoa, o que tinha feito nos últimos cinco dias, significava escavar as entranhas de uma enorme árvore de fruta-pão para que oito homens pudessem viajar dentro dela. Isso significava mais um dia sem fazer anotações, mais um dia sem conseguir reunir dados.

    – Luro vai a Parambai hoje, para ajudar a resolver a briga sobre o preço da noiva de Mwroni.

    – Quem?

    – Mwroni. O primo de Sali.

    – Eu vou ajudar com a canoa, Nell.

    – Nós simplesmente não fazemos ideia de como eles negociam...

    – Não é minha culpa você não estar grávida.

    A mentira contida nessas palavras ficou pairando entre eles.

    – Eu continuo fazendo a minha parte – disse Fen.

    Seriam sete meses agora, ela pensou. Ele também sabia.

    Por trás da tela, Nell ouviu Bani preparar o café da manhã de Fen enquanto cantava. Ela não conseguia entender a letra. Canções sempre eram a última coisa. Muitas vezes, eram um encadeamento de nomes, uma linhagem de antepassados, sem pausas entre as palavras. Madatulopanara-ratelambanokanitwogo-mrainountwuatniwran, ele cantava, a voz aguda, e com ternura. Ele às vezes era tão sério que ficava difícil lembrar que era apenas um menino.

    Bani tinha dito a Nell que ele não nascera tam. Era um yesan, roubado pelos tam num ataque em retaliação pelo sequestro de uma menina tam por quem um yesan estava apaixonado. Ele achava que tinha menos de dois anos de idade quando isso aconteceu. Ela perguntou quem o criara, e Bani disse que muitas pessoas. Ela perguntou quem era sua família ali, e ele falou que era ela e Fen.

    – Você vê a sua mãe? – ela quis saber.

    – Às vezes. Se eu for com as mulheres ao mercado. Ela é muito magra.

    Nell não tinha entendido a palavra "tinu", magra, até ele encolher a barriga e apertar os braços junto ao corpo. Ele tinha cicatrizes de iniciação do ombro ao pulso e nas costas, calombos que eles criavam infectando deliberadamente os cortes.

    – O que você sente quando a vê?

    – Eu me sinto feliz por não ser magro e feio como ela.

    – E ela? O que ela sente?

    – Ela sente que as nossas mulheres tam cobram muito caro pelos peixes. É o que ela diz todas as vezes.

    LILY KING, 51, é escritora americana. Seu quarto romance, "Euforia", foi finalista do prêmio do National Book Critics Circle.

    ADRIANA LISBOA, 45, escritora e tradutora, é autora de, entre outros, "Sinfonia em Branco" (Alfaguara), vencedor do Prêmio José Saramago.

    ELISA VON RANDOW, 41, é ilustradora.

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