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    Peça "Plano sobre Queda" confunde real e representação

    LUIZ FERNANDO RAMOS

    12/07/2015 02h03

    Narrativa errante. "Plano sobre Queda", em cartaz no Sesc Consolação até 15/7, é um espetáculo que alcança um equilíbrio inusitado entre a banalidade do cotidiano e as experiências mais radicais com a forma dramática. A partir de um tema singelo –um suposto triângulo amoroso mal resolvido– propõe uma complexidade de tramas tentativas, que se tecem e se desmancham sem chegar ao conforto de uma solução apaziguadora.

    O texto de Emanuel Aragão, enriquecido pela memória e a inspiração dos atores, que claramente colaboraram na sua construção, é de fato um jogo aberto com diversas e sutis camadas, em que a noção de verossimilhança é testada nos seus limites. De fato, a própria ideia de um teatro documentário, que o autor chegou a abraçar em seus primeiros trabalhos, é superada ou reproposta.

    O que importa nessa história de três pessoas normais que se cruzam e se estranham não são os fatos, nem a autenticidade dos depoimentos, mas a impossibilidade de se enfeixá-los em um arco fechado. Em um momento do espetáculo, um recurso simples de enunciação do autor, frases projetadas em paralelo à ação e fala dos personagens, propõe ao público um sem número de possibilidades não só de desenlace como de constituição mesma daquelas vidas em exame.

    Outro recurso não menos elementar, mas com um efeito retórico extraordinário, é o de fazer algumas cenas de grande dramaticidade serem antecipadas, como se aparecessem em latência, apenas insinuadas. Isso pode ocorrer diretamente, em falas dirigidas ao público, ou indiretamente em um misto de diálogo e solilóquio, em que os personagens oscilam trocas entre si com reflexões dirigidas ao público.

    Em todos os casos chega-se a uma situação ambígua. Evidentemente aquilo é uma representação plena de intencionalidade. Mas, ao mesmo tempo, na medida em que os fios narrativos se dissolvem e se esfiapam, já não se está diante de uma representação dramática pura, e nem tampouco podemos nos convencer de que aquilo seja uma extração límpida da realidade.

    Nem ficção nem não ficção. Talvez jogo especulativo com ações humanas, o que até converge com o que se pode reconhecer como drama, mas também não satisfaz as exigências mínimas do gênero.

    Esse potencial desmanche programado sem solução de continuidade só é possível pelo desempenho das atrizes, Liliane Rovaris e Camila Márdila, e do ator Breno Nina, que comparecem com seus próprios demônios e idiossincrasias para compor essa instabilidade de percurso, sem nunca deixar-se acomodar numa máscara.

    Também fundamental para o resultado é a direção de Miwa Yanagizawa, que compra o projeto do dramaturgo e o viabiliza cenicamente, alternando momentos de sobriedade e economia de recursos com outros de alta voltagem emocional. Miwa, também atriz, vem de trabalhos importantes com Jeferson Miranda, no Rio, e com os irmãos Guimarães, em Brasília, em que já era parceira de Liliane Rovaris e Emanuel Aragão.

    Estamos, pois, falando de uma tribo rodada, que sem enfeixar-se em um grupo específico, vem realizando trabalhos sérios e desenvolvendo sua própria linguagem nessa fronteira sutil entre a vida real e a representação dramática.

    O pulo do gato, que parece estar sendo dado agora, tem a ver com o abandono de ilusões anteriores quanto a perseguir uma autenticidade quimérica. Quer dizer, sempre que se encena algo há representação e o que importa, então, é, assumindo-se a inevitabilidade da mimese, como se fazer isso. O drama tradicional parte de uma convenção milenar, já testada e aprovada. A graça ou o risco, que é bem mais raro, é inventar um jeito distinto de apresentar o fado humano.

    Em "Plano sobre Queda", no final, sem que haja um fim conclusivo, o espectador tem uma sensação vaga de ter experimentado algo novo e vivo.

    LUIZ FERNANDO RAMOS, 58, professor de história e teoria do teatro do departamento de artes cênicas da ECA-USP, é autor de "Mimesis Performativa: A Margem de Invenção Possível" (Annablume).

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