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    Um carrapato na sapatilha do coreógrafo Rodrigo Pederneiras

    GABRIEL PEDERNEIRAS

    09/08/2015 02h03

    Lisboa/Londres, 2000

    O palco, as luzes, o linóleo, araras repletas de figurinos, montanhas de sapatilhas e cenários sempre existiram para mim. Quando nasci, em 1981, meu pai –Rodrigo Pederneiras– ainda dançava; ele assumiria, naquele ano, a posição de coreógrafo residente da companhia que havia fundado junto com os irmãos, o Grupo Corpo.

    Minha mãe, Cristina Castilho, foi bailarina da companhia até 1995. Então, não me lembro de um dia ter descoberto os refletores ou as coxias; eram para mim como a pracinha é para outras crianças. Sempre andei com a trupe, desde bebê, convivendo com os bailarinos e acompanhando o dia a dia de ensaios e montagens.

    Aos sete anos, com o início a escola, minha vida de repente se tornou igual à dos outros meninos –tirando uma ou outra viagem em feriados junto com o Corpo, dali até os 18 anos virei espectador. Fiz vestibular para publicidade e propaganda, mas não alimentava nenhum interesse profissional por essa área. Mas também jamais quis ser bailarino; essa fagulha não me incendiou.

    Arquivo Pessoal
    Gabriel com o pai, Rodrigo Pederneiras, em 1983 e em 2000, em Londres
    Gabriel com o pai, Rodrigo Pederneiras, em 1983 e em 2000, em Londres

    Tinha acabado meu primeiro semestre na faculdade quando as férias de julho coincidiram com uma turnê pela Europa. Eu tinha 18 anos, estava sem namorada e nunca mais havia viajado para fora do país. Meu pai quis me levar, bancando umas férias para mim –oba, vamos nessa! Sem desconfiar do terremoto que me aguardava em terras lusas, embarquei na viagem. Seguiam ainda meus tios Pedro e Paulo, diretores técnico e artístico do Corpo. A companhia levava para Lisboa e Londres os balés "Parabelo" e "Benguelê".

    A turma toda ia para o teatro, e eu comecei a ir junto. E aí, naqueles primeiros dias, aconteceu uma verdadeira epifania na minha alma adolescente. Pela primeira vez enxerguei e presenciei– o trabalho de montagem daqueles balés que eu via da plateia. Meus tios e os técnicos Virgilio D'Angelo e Stefan Bottcher eram os caras. Aquilo foi a revelação. Fiquei emocionado.

    Ali, acabou a minha viagem de farra e começou uma outra viagem. Comecei a carregar caminhão, descarregar cenário. Eu nem sabia o que fazer, mas ficava por ali. Chegando a Londres, me enfiei direto no teatro –o Sadler's Wells.

    Os poucos passeios que fiz foram com meu pai, feliz por me mostrar recantos dessas capitais europeias. Inesquecível rodar com ele, só nós dois, pelo Chiado, o Mosteiro dos Jerônimos, a Alfama, e depois pela Trafalgar Square, Hyde Park. Meu pai se divertia refazendo os caminhos por onde passara comigo ainda muito criança.

    Ele queria que eu fosse jantar depois do espetáculo, fosse aos museus com ele, mas o guri aqui se jogava era no trabalho da estiva. Nossos técnicos espetaculares trocando experiências com os artistas dos bastidores do Centro Cultural Belém e do Sadler's Wells! Quem não ia querer essa vida?

    Na volta, passei a ir todos os dias para a sede do Grupo Corpo, pedindo serviços por lá. Chateei todo mundo, pai, tios e equipe, pedindo uma função no corpo técnico. Eu parecia um carrapato. Meu pai só respondia: "Vai estudar, se forma e aí a gente conversa". Meus tios, idem. Cheguei a cursar o segundo semestre da faculdade, sem a menor convicção. Ninguém me queria no Corpo, mas eles iam ter que me engolir.

    Até que na turnê brasileira de 2001 ganhei a licença para acompanhar o grupo e trabalhar nos bastidores, sem qualquer remuneração. O serviço era pesado e até agora não sei se a intenção do trio era me desanimar.

    Se era, não deu certo.

    Em seguida, fui para a Alemanha, quando apresentamos "Bach" e "O Corpo", sempre estagiando –eu era "o último da cadeia alimentar", como diziam meus tios. Eles talvez pensassem que eu queria a bagunça e as viagens, mas eu só olhava para os palcos mais importantes do mundo e seus papas e cardeais da técnica. Sem falar nos meus tios, claro: eu continuava no pé deles o tempo todo.

    Meu pai estava ficando alucinado, mantinha a conversa do diploma, mas no fundo estava orgulhoso e dando força. Nossos passeios pelas cidades onde o Grupo se apresentava viraram uma tradição. Esses momentos eram de nós dois, quando ele me levava aos lugares mais interessantes de Paris, Londres, Madri... Fora os porres que a gente tomava juntos. As histórias hilárias de cada bagunça pós-espetáculo. É um privilégio viver assim.

    Em 2013, tive a grande honra de passar a assinar a luz do espetáculo que estreava, "Triz", junto com meu tio Paulo. Agora, neste ano, o dos 40 anos do grupo, criei com ele a luz dos dois espetáculos novos.

    Meu pai tem uma mania engraçada. Só assiste aos balés nas estreias, e permanece nos bastidores a partir daí. Quando meu filho Pedro, hoje com oito anos, nasceu, ele passou a tomar conta dele enquanto todos estávamos com o circo em cena. Agora, tenho começado a levar Pedro nas nossas turnês. Já passei por Luxemburgo e Londres com ele, vamos a Lyon em breve. Procuro levar meu filho exatamente aos mesmos lugares a que meu pai me levou. Apresento cada local usando as mesmas palavras. E ele ama. Como não amar?

    GABRIEL PEDERNEIRAS, 33, é coordenador da equipe técnica do Grupo Corpo e assina a iluminação dos espetáculos com Paulo Pederneiras.

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