Com curadoria de Hecilda Fadel, Marcelo Campos, Nataraj Trinta e Paulo Herkenhoff, "Tarsila e Mulheres Modernas no Rio" fica em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) até o dia 22/11. Reunindo mais de cem artistas, essa é uma das mostras mais intrigantes do ano, por vários motivos.
Além de obras importantes e algumas pouco vistas, a principal questão não é, para usar a palavra da moda, "empoderar" as mulheres (a historiografia brasileira foi omissa com elas, transmitindo um caráter de lateralidade às suas produções), mas significativamente apontar o desenvolvimento de uma prática moderna no país antes dos compromissos estéticos reconhecidos pela história.
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"Mulher de Cabelos Verdes" (1915-16), obra de Anita Malfatti |
São obras que apontam para um signo moderno, seja no uso inédito no país de técnicas ou de cores e formas, seja no jogo entre luz e sombra que reproduzia distorções no plano, num período em que o conservadorismo era dominante no sistema de arte, a ponto ver tais inovações como erros. Algumas alas criam, pelas divisões estabelecidas nas salas, um diálogo entre temas conexos, enquanto outras dedicam espaços mais substanciais a certas obras ou artistas.
É o caso de Tarsila do Amaral e de Maria Martins, que impelem o moderno no país e concomitantemente embaralham referências das vanguardas artísticas –notadamente o expressionismo e o surrealismo– com um olhar muito próprio sobre a cor e a forma locais.
A mostra se abre com a discussão sobre divisão espacial e social que o muxarabi provocou no Brasil. Enquanto a mulher branca estava presa em casa praticando seus afazeres domésticos e desejando a exterioridade, a negra ambiguamente era "livre", ao menos para circular pela cidade. É o espaço para as obras de Debret.
Na mesma ala, estão pinturas do início do século 20 que, cada uma a seu modo, fugiam da técnica e do olhar neoclássico em direção a um ainda incipiente método que se aproximava do impressionismo e que atinge maturidade na obra de Georgina de Albuquerque.
A pintura passava a ser uma forma de abandonar a reclusão do lar e, assim, nascia uma documentação sobre o cotidiano, também influenciada pela literatura realista.
Em pouco tempo, uma liberdade mais ampla da mulher é conquistada –e também exibida no MAR– por meio de campos de criação poética como dança (destaque para Luz del Fuego), moda, música e teatro (incluindo o de revista).
Uma caricatura de garçons de Nair de Teffé, a moderna e ácida mulher do presidente Hermes da Fonseca, mostra o quanto o humor era uma qualidade explorada como crítica social e espaço de criação. Próximas estão algumas obras que antecipariam a Semana de 1922 e que demonstram o vigor e a maturidade de artistas que guiaram o senso moderno. Chama a atenção "Mulher de Cabelos Verdes" (1915/16), de Anita Malfatti, por um traço com fortes inspirações de Cézanne. Todo o seu espaço obedece ao sentido de uma natureza geometrizante.
Nas salas seguintes, pinturas equivocadamente tidas como naïf pelo meio mais pobre da crítica, como as de Djanira e Elisa Martins da Silveira, estão ao lado de obras de matriz geométrica que são consagradas como o paradigma do moderno no país. Todas saem fortalecidas por essa aproximação.
Fechando a exposição, a sala representando distintas fases de Tarsila reforça seu pioneirismo na arte. Destaco "Natureza-Morta com Relógios" (1923), uma pintura de qualidades cubistas, e portanto ilusionistas, que funde figura e fundo a ponto de não podermos dissociar um do outro.
Além disso –e como se não bastasse para um país cuja produção de tendência cubista ainda era uma incógnita– os objetos dispostos sobre a mesa se atravessam magicamente uns sobre os outros, criando uma relação de planos, sombras e luzes pouco vista até então na pintura brasileira.
Um ótimo desfecho para uma exposição seminal.
FELIPE SCOVINO, 37, é professor da Escola de Belas Artes da UFRJ e crítico de arte.