RESUMO Apaixonado por viagens, hábito que chegou a ser ridicularizado pelos súditos, dom Pedro 2º visitou duas vezes o Oriente Médio. Livro de pesquisador brasileiro radicado no Líbano, a ser lançado nesta semana, joga nova luz sobre os périplos do monarca na região, ao recuperar registros originais da imprensa local.
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional do Brasil | ||
Dom Pedro 2º sobre camelo em sua primeira viagem ao Egito (1871) |
Em 11 de novembro de 1876, um dom Pedro 2º cinquentão escreveu a um amigo informando-lhe que sua viagem, até então, corria "bem". Depois de navegar pela Grécia, o imperador iniciava sua segunda visita ao Oriente Médio, aportando em Beirute. "A partir de hoje começa um mundo novo. O Líbano ergue-se diante de mim com seus cimos nevados, seu aspecto severo, como convém a essa sentinela da Terra Santa."
O novo mundo descrito por dom Pedro 2º em suas cadernetas abarcava os territórios hoje definidos pelas fronteiras de Líbano, Síria, Israel, Cisjordânia, Egito e Sudão. Era uma aventura em direção inversa daquela que, poucos anos depois, uma massa libanesa faria, rumo ao Brasil –a imigração vinda dessa região teria um de seus principais episódios durante os anos 1880, quando ocorreram severas crises no Império Otomano.
Em "As Viagens de Dom Pedro 2º: Oriente Médio e África do Norte, 1871 e 1876" [Benvirá, 408 págs., R$ 54,90], o autor, Roberto Khatlab, descreve em detalhe as duas viagens do monarca ao Oriente Médio. Pesquisador brasileiro radicado no Líbano, ele visita o Brasil nesta semana, para uma série de eventos de lançamento da obra –a começar, na quinta (20), no Museu Imperial, em Petrópolis.
No livro, uma das primeiras publicações a analisar de forma extensiva esse episódio da vida do imperador, Khatlab sugere que, entre outras consequências dos périplos de dom Pedro 2º, se inclua um incentivo ao interesse árabe pelo Brasil, em parte devido à cobertura da imprensa local –que, na avaliação do autor, pode ter levado indivíduos a emigrar. Nas ruas de Damasco, o imperador constataria: "Eles, os árabes, querem emigrar para o Brasil".
O livro reproduz algumas das notícias de jornais da época, reunidas pelo pesquisador durante suas viagens pela região. Reportagens anunciavam, então, a visita de um curioso imperador americano e apresentavam a seus leitores o exótico reino de que ele vinha.
"Até ali, não se sabia muito sobre o Brasil", diz Khatlab em entrevista à Folha em Beirute. "Descobriram que era um país extenso e de muitas riquezas."
Segundo o jornal "Thamarat al-Funun" (produto das artes), ainda haveria tesouros à espera de quem os tomasse para si. "Esse reino é irrigado por vários rios e tem muitas montanhas", registra uma reportagem publicada em novembro de 1876. "Mas seus habitantes não o exploram, e por isso ele é menos rico que outros reinos."
"BRIMO"
Aluno de língua árabe, imerso em seus exercícios de tradução dos contos das "Mil e Uma Noites", o imperador foi recebido como "brimo" no Oriente Médio –seu nome, Pedro de Alcântara, provavelmente empurrava sobrancelhas para cima, já que tem raiz no termo árabe "al-kantara", que dá nome aos arcos de pedra típicos da arquitetura local.
Os diários de viagem de dom Pedro 2º, hoje arquivados no Museu Imperial, já foram publicados e citados em obras de referência nos estudos desse período. O principal aporte da obra de Khatlab reside na contextualização, a partir de um material complementar, das descrições feitas pelo imperador.
O pesquisador leu em árabe os jornais da época, dia a dia, à procura de menções a dom Pedro 2º e encontrou, por exemplo, as reportagens de Abdel Kader Kabbani, que anunciou a visita do monarca desde antes da chegada da comitiva em Constantinopla.
Nascido no Paraná, Khatlab mora há três décadas em Beirute, onde dirige um centro de estudos e coordena um projeto de arquivo da imigração libanesa na América Latina. Ele trabalhou no livro por sete anos, período em que viajou pela região para reunir documentos.
Do esforço em busca de registros veio, por exemplo, a assinatura deixada por dom Pedro 2º em um livro de visitas na Hospedaria Austríaca de Jerusalém –onde há ainda hoje, diz Khatlab, um retrato do imperador. O dia da firma coincidia com a data de seu aniversário, 2 de dezembro. Antes de entrar na cidade sagrada, o nobre viajante havia dormido do lado de fora dos muros, em uma barraca.
A Folha percorreu alguns cenários descritos nos diários do imperador durante as semanas em que leu o manuscrito de Khatlab. Em uma trilha pelo vale por onde escorre o Nahr al-Kalb (rio do cão), por exemplo, a descrição mal-humorada do monarca parece atual: "Comecei a subir uma terrível calçada cheia de pedras soltas, e trepando rochedos como cabrito fui ver os primeiros baixos- relevos esculpidos no penhasco. Copiei-os: são assírios e num deles, muito bem conservado, notam-se feições, barba encanotilhada, mitra, e vestuário de um rei. A mão direita está levantada e perto dela há sinais simbólicos".
A reportagem visitou também as ruínas de Baalbek, onde dom Pedro 2º teve pouca sorte com o tempo. "Choveu bastante de tarde", ele escreveu, mas a entrada, "à luz de fogaréus e lanternas atravessando por longa abóbada de grandes pedras, foi triunfal". Menos triunfo houve durante a noite em que o monarca teve de se proteger do vento por um cobertor "ralo" e uma manta que "facilmente caía para um lado", enquanto os travesseiros lhe "fugiam da cabeça".
OBSTÁCULO
Na opinião de Maurício Ferreira, diretor do Museu Imperial, a lacuna nos estudos relativos a essas viagens do imperador tem a ver com um obstáculo linguístico: alguns papéis disponíveis sobre os eventos encontram-se apenas em árabe. Diversos dos textos estudados por Khatlab para a obra já estavam catalogados, mas ainda sem tradução. "O trabalho dele vai nos ajudar a oferecer esses documentos a outros especialistas", diz Ferreira.
A base para os estudos das viagens do imperador são as 44 cadernetas que ele preencheu durante décadas, além de uma coleção de correspondências –por exemplo, as cartas enviadas à condessa de Barral. O diário de dom Pedro 2º foi, segundo Ferreira, publicado na íntegra em 1989, mas a edição encontra-se esgotada –há projetos em curso para imprimi-lo outra vez, possivelmente em partes.
Atualmente, o Museu Imperial oferece em seu site trechos da viagem do monarca aos Estados Unidos, programando as passagens no calendário para os mesmos dias em que foram escritas em 1876.
Mas a aventura imperial ao Oriente Médio foi bastante diversa daquela aos Estados Unidos e à Europa. "Era mais uma viagem de fascinação, de encanto. Foi estonteante para ele, que era interessado pela história e pelas obras da Antiguidade", diz Ferreira.
À época da viagem, o imperador não contava com a boa vontade dos súditos. Com a imagem chamuscada pela Guerra do Paraguai (1864-70), mais longa e cruenta do que se havia esperado, o monarca foi criticado por suas andanças fora do país.
"Em vez de ficar com a imagem de monarca civilizado, ele acabou virando um monarca da guerra. Não é um acidente que ele viaje", diz à Folha Lilia Moritz Schwarcz, autora de "As Barbas do Imperador" (Companhia das Letras, 1998, esgotado). "Era uma tentativa de sair de cena, além de conhecer uma realidade que ele só conhecia pelos livros."
Na ausência de dom Pedro 2º, Isabel tornou-se regente aos 24 anos pela primeira vez. O imperador, por sua vez, foi ridicularizado pelo que se entendeu como uma obsessão por estar em movimento.
As perambulações de dom Pedro 2º estão relacionadas, também, à tentativa de iluminar a sua imagem. Uma vontade de ser conhecido como um "monarca emancipado pela cultura", nas palavras de Schwarcz.
Nos relatos escritos pelo imperador durante qualquer uma de suas viagens, abundam comentários e referências cultas; mas é no Oriente Médio que Pedro 2º se apresenta como uma espécie de orientalista e, às margens do Nilo, de egiptólogo. Há nos diários diversos comentários sobre a história da região e mostras de um conhecimento aparentemente extenso de sua geografia e de seus costumes. Ele anotou detalhes variados, como a produção de açúcar no Egito, por exemplo, ou o tamanho dos trilhos do trem no Sudão.
"Não são anotações de um turista", diz Khatlab, cujo livro supõe que o imperador tenha lido os documentos da missão científica levada por Napoleão Bonaparte ao Egito, no final do século 18, e estava interessado especialmente nas experiências botânicas francesas ali, que talvez pudessem ser reproduzidas em território brasileiro.
SÁBIO
Essa projeção de si como um imperador sábio parece especialmente evidente nos abundantes comentários linguísticos. Dom Pedro 2º registrou, por exemplo, trechos de suas traduções do hebraico e do árabe, apesar de não haver consenso entre historiadores a respeito de quanto ele realmente dominava essas duas línguas aparentadas –que, ainda hoje, com material e métodos didáticos sofisticados, custam esforços heroicos a seus alunos.
Khatlab inclui, entre os anexos de seu livro, a reprodução de textos curtos escritos pelo imperador nos dois idiomas semíticos.
O árabe em particular, segundo Khatlab, foi inicialmente ensinado ao monarca por Gustavo Schreiner, embaixador da Áustria no Brasil, que o acompanhou como intérprete à primeira viagem ao Egito. Dom Pedro 2º também estudou com o filólogo alemão Christian Seybold –que dedicou sua tradução de um conto das "Mil e Uma Noites" ao imperador.
De Beirute ao Cairo, em longo trecho montado em uma égua branca, dom Pedro 2º visitou diversos dos grandes monumentos da região. Esteve no vale que separa Líbano e Síria, que hoje abriga uma pequena comunidade brasileira, e nas ruas de Damasco, onde não se esqueceu de citar a Bíblia e o Alcorão. A viagem encerrou-se no Egito, de onde escreveu as suas últimas cartas sobre a região.
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Ao que sugerem suas próprias anotações, ele tinha planos de voltar ao Oriente Médio uma terceira vez. Prejudicado pela saúde precária, o plano ficou inconcluso. Dom Pedro 2º morreu no exílio, em Paris, em 1891.
Entre os vestígios que o monarca deixou naquelas terras orientais, provavelmente o mais inesperado seja a homenagem que lhe prestam em Alexandria, no Egito, onde ainda hoje é evocado na igreja dedicada a Pedro de Alcântara, seu patrono. De acordo com Khatlab, nesse templo erguido pelo cônsul honorário do Brasil no século 19, as missas são rezadas até hoje em memória do imperador.
DIOGO BERCITO, 27, é jornalista e assina os blogs Orientalíssimo e Mundialíssimo no site da Folha.