No começo do ano, após colher prêmios nos festivais de Sundance e Berlim, "Que Horas Ela Volta?" foi resenhado, neste mesmo espaço, por Pedro Butcher.
Na ocasião, o crítico comparou o longa de Anna Muylaert a "Casa Grande", de Fellipe Barbosa. São, de fato, filmes comparáveis no que tange à temática. Em ambos, como fica bem claro no título do longa de estreia de Barbosa, trata-se da relação entre o mundo dos patrões e o dos empregados e de quanto ainda guarda de colonial essa relação.
Os títulos dão também uma chave para entender as diferenças entre os dois filmes –e a principal delas reside no ponto de vista.
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Regina Casé e Michel Joelsas em cena de "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert |
Um dos méritos de "Casa Grande" é a adoção do ponto de vista dos patrões. Isso não equivale a defender a perspectiva senhorial, mas a abordar a causa com conhecimento. O resultado é um filme muito honesto sobre o convívio e o conflito entre classes sociais.
"Que Horas Ela Volta?" é a pergunta feita à empregada doméstica Val pelo filho dos patrões, Fabinho, na primeira sequência do filme. Dita à beira de uma piscina do Morumbi, a frase arrasta consigo uma gama de assuntos que nós, espectadores de classe média urbana brasileira, conhecemos.
A mãe que trabalha fora deixa o filho pequeno aos cuidados de outra mãe, que, para assumir esse lugar, não cuida dos próprios filhos. Esse aspecto resume a perversidade dos laços entre patrões e domésticas no Brasil –que, no caso particular retratado no filme, se abalam com a chegada a São Paulo de Jéssica, a filha de Val.
Vinda do Nordeste fortalecido pós-Lula para prestar vestibular na USP, ela fará questão de colocar o pé na porta do lar em que trabalha e mora sua mãe, questionando o suposto, pelo qual se rege Val, de que certas coisas –como nunca entrar na piscina dos patrões– o subalterno "já nasce sabendo".
A força do filme poderia vir de explorar o que a plateia esclarecida, pela mesma lógica, "já nasce sabendo". Reconhecer sua classe na tela deveria causar vergonha.
Mas a vileza da patroa (quase ia escrevendo "madrasta") interpretada por Karine Teles não se presta a esse fim. O incômodo que causam as mesquinharias conhecidas da classe média –como separar alas, utensílios e alimentos para os empregados– não dura muito tempo. Porque a plateia, se chegou a se remexer na cadeira, logo ganha a oportunidade de rir.
Ao colocar a talentosa Regina Casé como uma figura tão adorável quanto simplória, sobre a qual recai o lado cômico do filme, estabelece-se com o público um elo condescendente. Em vez de se identificar nos aspectos canhestros da família de patrões, a plateia reconhece em Val a empregada que experimenta, às escondidas, os cremes da patroa ou a que passa perfume demais para passear na folga.
O que incomoda o público parece algo que acontece sempre alhures, e não dentro de sua casa. A empatia com Val nasce pelo risível; o asco pelos patrões, de sua baixeza. O desenho dos personagens se achata pelo maniqueísmo.
Curiosamente, o longa tem sido louvado como libertário. Deve convir à assistência acreditar que a protagonista entrar numa piscina quase vazia, que, ainda assim, lhe seria vetada, seja um ato de rebeldia –talvez de profundidade semelhante à de sua culpa.
Motivada pelas atitudes da filha, Val terá uma iluminação. Fosse o filme menos próximo de uma comédia televisiva e mais de uma tragédia grega, poderíamos dizer que ela passa por uma anagnórise: assume o papel que, desde há tempos, já lhe era reservado –e que o título em inglês, "The Second Mother", faz reverberar de forma quiçá não prevista pelos produtores.
"Que Horas Ela Volta?" se mostra, até em seu desenlace, um filme bastante mais conservador do que, em suas claras boas intenções, desejaria ser.
FRANCESCA ANGIOLILLO, 43, é editora-adjunta da "Ilustríssima".