São Paulo, 1954
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Ilustríssima
Wednesday, 17-Apr-2024 18:51:35 -03Camadas de esquecimento na Oca
FERNANDO LEMOS
27/09/2015 02h03
Quarto centenário de São Paulo, 1954: desde dezembro do ano anterior, celebravam-se, no parque Ibirapuera, vários eventos culturais comemorativos.
No pavilhão da Bienal, a constelação de nomes reunia, entre tantos outros, Gropius e os trabalhos de sua Bauhaus, Miguel Torga, Paul Klee, Almada Negreiros e uma sala dedicada a Picasso, com 51 obras de todas suas fases e a "Guernica", que só Cícero Dias conseguiu fazer viajar, obtendo do amigo espanhol autorização para trazê-la do exílio em Nova York –o quadro monumental veio com abraços para Niemeyer, o idealizador daqueles espaços em que se desenrolava a 2ª Bienal de Arte de São Paulo, que, não por acaso, ficou conhecida como a "Bienal da Guernica".
Eram portugueses não só os fogos de artifício mas também os curadores gerais Agostinho Silva e Jaime Cortesão –apesar de terem estado eles entre os primeiros intelectuais exilados pela ditadura salazarista, o governo de Portugal juntou-se à comunidade lusa para custear seu trabalho.
O roteiro dos eventos comemorativos foi elaborado por Cortesão, Darcy Ribeiro, Ernani Silva Bruno, Mário Neme e Hélio Damante, ao lado de uma equipe de artistas plásticos.
Pela primeira vez cruzando o oceano rumo ao Brasil que a inspirara, a grande sensação histórica era a célebre Carta de Pero Vaz de Caminha, que eu mesmo coloquei em uma vitrina especial. Fato de primeira grandeza e, depois, de esquecimento –para aqui voltou na comemoração dos 500 anos como se viesse pela primeira vez.
O Secretariado Nacional de Informação, um departamento de demagogia política e propaganda jornalística mentalizado por António Ferro, convidou para vir de Lisboa o decorador Manuel Lapa, especializado nos certames oficiais, para a instalação dinâmica da exposição, com seis meses de antecedência.
Lapa aceitou, mas alegou que, nada conhecendo do Brasil, queria que o acompanhasse um seu conhecido, eu mesmo –já morando no Rio de Janeiro, imediatamente me instalei no Ibirapuera. Começava a nascer assim o espaço que levava o nome de Oca, ou "casa", em tupi, e que traria uma grande exposição contando episódios da história do país.
O cenógrafo plantou divisórias referentes a várias áreas específicas da história. Eram biombos de madeira, de 5 metros x 2 metros, e autorizou-me a convidar para pintá-los artistas brasileiros: Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Arnaldo Pedroso D'Horta, Clóvis Graciano, o ceramista Rossi e um retratista, Eugenio Resende.
Foi montada uma equipe de 50 operários –nela tivemos a chance de acomodar exilados clandestinos da Espanha. No porão executamos um laboratório de fotografia autossuficiente, para realizar fotomontagens. Ele foi chefiado por João Macedo, que trouxemos de Paris, onde estudava cinema.
Fez-se também uma cozinha, e o cuidado de seu abastecimento ficou com J. Matos, um ex-boxeador então à deriva.
Coube-me o privilégio de pintar na entrada da Oca um painel de 15 metros x 5 metros, sobre a cidade que nascera selvagem e, com formas abstratas, ia evoluindo para tornar-se civilizada. A capital paulista contava então com apenas 3 milhões de habitantes.
Arquivo Pessoal Lemos diante de seu painel para a exposição do 4º centenário de São Paulo, em 1954, em foto na revista "Colóquio" Ali ficou o painel por 20 anos, sobrevivendo à retirada geral. Teve a companhia ilustre de uma extraordinária mostra sobre o barroco italiano. Até que, por ordem de Ciccillo Matarazzo, o painel foi destruído sem que ninguém me avisasse. O Ministério da Aeronáutica havia solicitado o espaço para instalar ali o seu museu.
Recentemente, a imprensa paulista redescobriu os murais escondidos em sua casa no Ibirapuera.
Faço aqui lembrar que, com esforço, salvam-se as assinaturas importantes dos artistas; não da mesma forma as obras em si, feitas com materiais que eram os normalmente empregados nessas mostras efêmeras, de pouca durabilidade, caros de reanimar.
De tudo tenho saudades. Será que é tarde para esquecer ou cedo para rememorar-nos?
Nota: Três dos painéis mencionados, pintados por Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Manuel Lapa, e uma parte do mural redescoberto em julho deste ano estão em exibição até 18/10 na mostra "Modernidades Sobrepostas", na Oca.
FERNANDO LEMOS, 89, é artista plástico, designer e fotógrafo português radicado no Brasil desde 1953. O documentário de Guilherme Coelho sobre Lemos, de 2006, está na programação do canal Arte 1 e será exibido neste domingo (27), às 18h.
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