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    Por que não pensamos na África do Norte como parte da África

    IMAM AMRANI
    DO GUARDIAN

    02/10/2015 19h39

    Quando um artigo do "Guardian" afirmou que Chigozie Obioma era "o único escritor africano" pré-selecionado para a disputa do Booker Prize 2015, seu autor claramente parecia ter esquecido de que há vida ao norte do Saara. Afortunadamente, a escritora Laila Lalami, nascida no Marrocos e um das pré-selecionadas para disputar o prêmio, não demorou a reavivar-lhe a memória, usando o Twitter para escrever "sou africana". "É uma identidade que muitas vezes me é negada mas na qual sempre insistirei."

    Conheço bem a frustração de Lalami. A cada vez que declaro minha etnia, me vejo forçada a recordar que "africano negro" é aparentemente a única categoria de africano que existe. Por ser ao mesmo tempo argelina e britânica, constantemente me vejo tendo de explicar por que me identifico como europeia e africana – como se eu estivesse "escolhendo" ser africana, e não porque isso é simplesmente um fato.

    Na política e na academia, os países norte-africanos são comumente agrupados com o Oriente Médio, sob o acrônimo Mena (Middle East North Africa, em inglês, ou Oriente Médio e Norte da África). Em conferências sobre "questões africanas" a que compareci, Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito muitas vezes tinham representação apenas simbólica, se tanto.

    Mas a identidade não pode ser simplesmente reduzida à equação "os povos que falam árabe são povos árabes". Ainda existem comunidades espalhadas pelo Magreb que falam berbere ou "amazigh", e um dialeto chamado "darija", carregado de expressões espanholas e francesas. Além disso, ser árabe não é alternativa a ser africano, ou mesmo negro. Os mauritanos e os sudaneses podem se identificar como as três coisas ao mesmo tempo.

    O argumento religioso também não é irrebatível. O islã é a religião dominante em porções do leste da África e no Sahel, com comunidades notavelmente grandes na Tanzânia, Quênia, Nigéria, Senegal, Etiópia e Eritreia. Talvez, então, tudo se resuma à cor. Será que ser africano é ser negro? E, se for, que tom de negro seria o correto? Os sudaneses do sul, com sua pigmentação escura, rica e bela, são mais africanos que seus vizinhos ao norte, de pele mais clara? É evidente que uma categorização baseada em raça é redutora demais e ignora a grande diversidade de nações, culturas e etnias do continente.

    Isso nos deixa a questão da cultura. Em uma festa, um nigeriano me fez muitas perguntas sobre a Argélia: "É conservadora como a Arábia Saudita?", ele perguntou. "Não", respondi. "É conservadora como a Nigéria".

    Quer seja no futebol, na música ou cinema, os argelinos têm mais em comum com os nigerianos do que com os sauditas. O Magic System, lenda do "coupé-decalé" marfinense, uniu forças a Cheb Khaled e 113, pesos pesados do rai, e a artistas menos conhecidos do Magreb. Durante a Copa das Nações Africanas, multidões se aglomeravam em torno dos televisores em todo o continente para assistir a suas seleções nacionais, em um evento que une todos os cantos da África.

    A experiência da migração também unifica o continente. Nos "banlieues", os subúrbios pobres da França, imigrantes das antigas colônias africanas do país – ao norte e ao sul do Saara – compartilham da mesma superlotação e da mesma sensação de isolamento e discriminação. Os árabes que dirigem carros esporte ou fazem compras na avenidas dos Champs Elysées serão mais provavelmente dos países do Golfo Pérsico do que do Magreb.

    Certamente é possível debater os esforços dos norte-africanos para se distanciarem da "África negra". Isso tem tanto a ver com fontes de influência e poder (depois da independência, países como o Egito e a Argélia buscaram no Oriente Médio seu modelo de nação islâmica, ou na Europa, ao norte, parceiros para alianças econômicas) quanto com o racismo que existe no Reino Unido como em toda parte do mundo.

    Talvez a cola que mais conecte a África do Norte ao resto do continente seja a da história colonial. As tropas coloniais francesas incluíam soldados da Argélia, Senegal, Mali, Burkina Fasso, Benin, Chade, Guiné, Costa do Marfim, Níger e República do Congo. Esses africanos combateram lado a lado na Segunda Guerra Mundial, e traços dessa experiência continuam presentes nas memórias coletivas desses países. Os britânicos usaram soldados do Egito bem como muitos de outras antigas colônias, entre as quais a Nigéria, a África do Sul e o Quênia.

    Em 1962, África do Sul e a África do Norte estavam ambas lutando contra o colonialismo e o apartheid quando Nelson Mandela foi ao Marrocos para receber treinamento militar da Frente Nacional de Libertação argelina. Em 1969, Argel sediou o Festival da Cultura Pan-Africana. Historicamente, as nações da África compartilharam as mesmas lutas.

    É claro que a África do Norte se beneficia da conexão com o Oriente Médio, tanto em termos de negócios quanto de desenvolvimento. A Arábia Saudita é um dos cinco maiores parceiros de exportação e importação do Egito, mas esse relacionamento não deveria ser exclusivo. Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito compartilham, com o resto da África, não só um passado colonial mas um continente físico. Ainda que identidade seja em larga medida subjetiva, algumas coisas são irrefutáveis, e que a África do Norte é parte da África é uma delas.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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