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    Análise

    Aos cem, Houaiss se espantaria com amadorismo cultural

    FELIPE FORTUNA

    15/10/2015 13h00

    Num país culturalmente mais organizado do que o Brasil, o centenário de um intelectual como Antônio Houaiss seria celebrado como se deve: por meio da publicação de ao menos um livro que recordasse e discutisse as principais ideias do homenageado, desde a filologia à crítica literária; desde a tradução à diplomacia e à política, recordando-se que o homenageado foi presidente da Academia Brasileira de Letras (1995-96) e Ministro da Cultura (1992-93).

    Para tratar de um intelectual altamente erudito, mas com atração pelo debate, poderiam ser organizados seminários e mesas-redondas sobre os muitos aspectos presentes em sua obra: principalmente, sobre o estado atual da língua portuguesa, já que o maior dicionário do país, o Houaiss, é também resultado de uma percepção política de que persiste no Brasil um estado de esvaziamento cultural –como quero comentar adiante.

    Se fosse britânico, Antônio Houaiss mereceria artigos e ensaios que o aproximariam de Samuel Johnson (1709-84) -e pelas razões mais óbvias: como lexicógrafo acostumado a rotinas longas de trabalho durante muitos anos; por seu interesse pela crítica literária e, em especial, pela poesia; como ensaísta eminente e, em muitas ocasiões, como um agudo moralista do seu tempo.

    Americo Vermelho/Folhapress
    Antonio Houaiss em retrato de 1995
    Antonio Houaiss em retrato de 1995

    Tivesse nascido na França, o elogio a Antônio Houaiss poderia inserir o professor na tradição de um Louis de Jaucourt (1704-79), um dos mais prolíficos enciclopedistas do Iluminismo. E não apenas pela vastidão da cultura de ambos, mas pelo vigor com os verbetes "consciência", "coragem", "escravidão", "imprensa", "guerra", "justiça", "pátria", "viagem" foram redigidos pelo autor francês para a "Enciclopédia"; e recordar como cada um daqueles verbetes era caro ao filólogo brasileiro, que teria dado uma acepção nova a cada um.

    Todos esses verbetes, evocativos em si mesmos, serviriam de abertura para um comentário biográfico sobre o autor centenário, capaz de transitar, no seu itinerário enciclopédico, de observações sobre a cerveja à tradução de "Ulysses", de James Joyce; da defesa do acordo ortográfico aos modelos de edições críticas de obras literárias.

    Tudo isso caberia explicar no Brasil atual sobre esse filho de libaneses maronitas nascido em Copacabana em 15 de outubro de 1915. Enfrentando os reveses financeiros de sua família, seu primeiro diploma foi o de "perito-contador" e seu primeiro destino profissional seria o comércio. Porém as aulas e o convívio com estudiosos como Mattoso Camara Jr., Antenor Nascentes e Clóvis Monteiro logo o atraíram para o estudo profundo da língua portuguesa e, inevitavelmente, para a filologia e a linguística.

    LÍNGUA COMUM

    No seu caso, a reflexão sobre o idioma manteve-se associada a uma fortíssima reflexão política, que, quando devidamente analisada, desvenda tanto a sua defesa, já como diplomata, do processo de descolonização na África quanto a promoção da Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa e a necessidade de uma "língua comum".

    O tópico dessa "língua comum" é sabidamente controvertido, mas mereceu do estudioso brasileiro uma análise magistral, como se pode ler no longo ensaio intitulado "O Português no Brasil" (1985): "Trata-se de saber se há uma língua brasileira provinda da língua portuguesa. Noutros termos, não se resolve essa questão com meros rótulos: chamando a língua que se fala como língua comum no Brasil de idioma nacional não se está senão usando uma expressão substitutiva: mas 'idioma nacional' quer dizer 'língua brasileira' ou 'língua portuguesa' tornada língua comum e oficial do Brasil?".

    Ao final, a visão de Antônio Houaiss é pessimista –ainda que o autor saliente que apenas "na aparência": os esforços para o empreendimento de uma língua de cultura na lusofonia (e não apenas no Brasil) são fragmentários e sempre dependentes de iniciativas individuais, já que faltam condições políticas e materiais para a formação de um colegiado ou de grupos de trabalhos.

    Ailton de Freitas - 9.jun.1993/Folhapress
    Itamar Franco (sentado), e o então ministro da Cultura, Antônio Houaiss (em pé), em solenidade de instalação do Conselho Nacional de Política Cultural no Palácio do Planalto, em Brasília, em 1993
    Itamar Franco (sentado), e o então ministro da Cultura, Antônio Houaiss (em pé), em solenidade de instalação do Conselho Nacional de Política Cultural no Palácio do Planalto, em Brasília, em 1993

    Crítico persistente das "burocraciazinhas e seus projetinhos ou projetitos ou projetozinhos ou projetozitos" como escreve ricamente no citado "O Português do Brasil", Antônio Houaiss passou uma vida intelectual a acusar, a lamentar e a denunciar o também por ele chamado "esvaziamento cultural" do Brasil.

    Uma entrevista extensa ao jornal "Correio da Manhã", publicada em 27 de agosto de 1971, foi reimpressa em "Estudos Vários sobre Palavras, Livros e Autores" (1979) –seguramente porque o entrevistado considerou que nela se poderia encontrar um punhado das suas preocupações.

    Estampada no dia da sua posse na ABL, e no auge do período ditatorial brasileiro, a entrevista é excepcionalmente grande no tamanho e na variedade dos temas. Nela, surge não o estudioso especializado nos meandros da prosódia e da metrificação poética, mas o intelectual engajado, uma faceta adicional que foi, afinal, intensamente celebrada por amigos e admiradores que nem sempre liam os seus livros.

    RETROCESSO

    Nos anos 70, Antônio Houaiss considerava que o cinema brasileiro já tivera "um momento muito mais interessante que agora" –e a principal razão do fenômeno, a seu ver, era o de que a mensagem precisava ser despistada. O mesmo estaria acontecendo com a literatura. Por isso mesmo, "o desinteresse do leitor está aumentando" e, por uma extensão permitida a partir do mesmo raciocínio, a audiência dos filmes nacionais também decaíra. O entrevistado diagnosticava, ao final, um retrocesso na cultura do Brasil –pela "ação castradora ou limitadora" imposta pelas circunstâncias.

    Um dos assuntos tratados na entrevista de 1971 –desgraçadamente atual– é o da violência. Contra a percepção propagada de que existe uma sociedade brasileira integrada, harmônica e generosa (lembre-se do "jingle" da época: "90 milhões em ação"), Antônio Houaiss comenta que "a nossa História não idealizada revela que somos um país plantado sobre a violência". Violência, ele ressalta, que está no passado de luta permanente; e violência permanente no cotidiano das grandes massas da população, uma "violência implícita, calada", projetada nas misérias físicas e morais da periferização, da favelização, das formas variadas de exclusão que comprometem a saúde, a educação, a infraestrutura.

    Por isso, acrescenta ele, aparecerem na jovem sociedade brasileira sintomas de uma sociedade já velha e estagnada, na qual nenhum progresso, seja rápido ou menos rápido, parece capaz de modificar estruturalmente a condição de desenvolvimento com amplas falhas. Os êxitos são isolados –e a integração eficiente à dimensão global nunca acontece.

    O que poderia pensar Antônio Houaiss sobre "esvaziamento cultural" se observasse a situação atual –na qual, sem nem sequer o entrave de ditadura política, o número de jornais diminuiu drasticamente, no Brasil e em outros países? Na qual a crítica literária e, em seguida, os suplementos literários despareceram? O mercado pede informações sobre informática, automóveis e decoração –e os textos jornalísticos mal disfarçam o cumprimento de uma diretriz fundamentada no consumo.

    Em "Aspectos da Crítica Literária Entre Nós", de "Crítica Avulsa" (1960), o intelectual reclama da existência de uma crítica voltada apenas para o método –e não para a obra. E reclama mais ainda da inexistência de edições críticas, que poderiam resolver problemas nos textos dos nossos maiores escritores, entre eles Machado de Assis e Augusto dos Anjos.

    Uma discussão sobre o assunto foi possível na imprensa brasileira dos anos 60 –em artigos copiosos de especialistas no assunto, o que parece agora impossível de acontecer. Deu-se, portanto, o esvaziamento ainda maior do que já era esvaziamento; e esse fenômeno negativo explica muito: explica até mesmo por que o centenário de um intelectual lúcido, especulativo e contundente como Antônio Houaiss possa merecer apenas escassas referências e alguma homenagem intramuros, o que não deixa de dar razão aos alertas trazidos por ele mesmo, o polímata, sobre o contexto cultural ainda tão incipiente em que estamos inseridos.

    FELIPE FORTUNA, 52, é poeta, ensaísta e diplomata. Publicou recentemente "A Mesma Coisa" e "O Mundo à Solta", ambos de poemas, pela Topbooks.

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