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    A política externa de tucanos e petistas

    MATIAS SPEKTOR

    25/10/2015 02h04

    RESUMO O articulista entra no debate sobre semelhanças e diferenças de governos tucanos e petistas para abordar a questão externa. PSDB e PT divergem sobre o conceito de globalização e sobre o papel da política externa brasileira nesse contexto. No entanto, ambos convergem em muitos aspectos, nem sempre os mais elogiáveis.

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    A crise que golpeia o PT inaugurou uma nova temporada de reflexão sobre o futuro do PSDB.

    Nestas páginas, Sergio Fausto (2/8) convocou o tucanato a ocupar o vácuo que se abre à esquerda. Celso Barros (13/9) descartou a manobra como irrealista para uma agremiação de direita. Carlos Pereira e Samuel Pessôa (11/10) criticaram a distinção entre esquerda e direita como melhor forma de caracterizar a disputa entre PT e PSDB, pois os dois partidos apostaram juntos no projeto de estabilidade econômica com inclusão social que é marca registrada da Nova República.

    Este artigo direciona o debate para o tema da política externa. Na área internacional, PT e PSDB enfrentaram o desafio comum de adaptar o Brasil do atraso e da desigualdade à era da globalização. Usaram para isso estilos distintos, mas atuaram com mais semelhanças do que parece à primeira vista.

    A política externa virou um dos principais campos de batalha entre PT e PSDB. Poucas políticas públicas são tão polarizadas e controversas. Os petistas enxergam no governo Lula a diplomacia mais arrojada. Com sua política externa ativista, ele teria elevado a posição do Brasil à de grande potência emergente. Segundo essa visão, FHC representaria o exato oposto: a capitulação de uma elite entreguista à hegemonia dos Estados Unidos. A cena que esse grupo gosta de reprisar é a do último chanceler tucano, Celso Lafer, tirando os sapatos para uma revista de segurança em aeroportos norte-americanos.

    Do outro lado do ringue, encontram-se os tucanos, para os quais o presidente-sociólogo teria normalizado as relações com o mundo, tirando o Brasil do isolamento acumulado nos anos de ditadura militar e de atraso econômico. Para eles, a diplomacia petista seria uma função da vaidade prepotente de Lula e sua equipe. Em ninho tucano, a cena em reprise é a de Lula em Teerã, punho no ar, desafiando as grandes potências num abraço com o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad.

    Essas distinções são atrativas por sua simplicidade maniqueísta: há mocinhos e há bandidos. Sem espaço para a ambiguidade, porém, elas são equivocadas.

    Em se tratando da posição do Brasil no mundo, qual é a diferença entre PT e PSDB?

    GLOBALIZAÇÃO

    A clivagem fundamental que divide tucanos e petistas a respeito do sistema internacional é simples: ao passo que os primeiros concebem a política externa como instrumento de adaptação à globalização, os segundos imaginam a diplomacia como instrumento de resistência.

    Isso ocorre porque os dois partidos têm diagnósticos opostos sobre o significado da globalização –o fluxo de capital, ideias e pessoas numa economia internacional integrada.

    Para os tucanos, a globalização é uma força inexorável. "Queiramos ou não", disse FHC ao chegar ao Planalto, em 1995, "a globalização é uma nova ordem internacional. O mundo pode ser dividido entre as regiões ou países que participam do processo de globalização e usufruem seus frutos e aqueles que não participam". Ou o Brasil se adapta a esse novo mundo, ou se autocondena ao atraso.

    Quando chegou ao poder, FHC entendeu que o Brasil era fraco demais para resistir ao que chamava de "ventos do mundo". O sistema internacional não lhe oferecia espaço de manobra.

    Para os petistas, entretanto, a globalização não é um fato inescapável da realidade, mas um projeto político talhado pelas grandes potências do Atlântico Norte. Assim, a globalização pode (e deve) ser resistida e negociada. Ninguém pode fazer isso melhor que grandes países em desenvolvimento, que têm capacidade de arrancar concessões dos mais poderosos em troca de sua adesão.

    Lula pôde agir assim porque chegou ao Planalto com um país estabilizado e em franca ascensão. O sistema internacional do PT a partir de 2003 abria ao Brasil brechas antes inimagináveis: do desastre da intervenção americana no Iraque à ascensão da China, no mundo daquela época havia jogo novo para o país.

    Essas diferenças levaram o Planalto de tucanos e petistas a elaborar receitas alternativas.

    Para os tucanos, se o Brasil quiser participar da globalização precisará de "credenciais de boa conduta internacional". Foi isso que a diplomacia de FHC buscou em áreas como direitos humanos, não proliferação nuclear, meio ambiente e comércio internacional, assinando compromissos externos que o regime militar antes rejeitara de forma sumária.

    O objetivo não era mudar o mundo, mas utilizar normas internacionais como alavanca para reformar um país ainda marcado pelo penoso entulho autoritário acumulado desde a era Vargas e pela história de hiperinflação.

    Na concepção petista, o Brasil deveria explorar as rachaduras do projeto político da globalização, que eram evidentes nos protestos de Seattle (1999) e foram escancaradas quando o governo americano invadiu o Iraque sem autorização das Nações Unidas (2003). Para o núcleo pensante do PT, existia uma demanda mundial por vozes alternativas, como sugere o lema: "Outro mundo é possível".

    Assim, FHC rodou o planeta para amarrar o Brasil a novas regras internacionais que permitissem ao país embarcar num novo ciclo de desenvolvimento capitalista. Lula manteve essa política, mas adicionou a ela uma ambição reformista.

    O ativismo internacional do PT começou com visitas de altíssimo perfil a Cuba, Irã, Líbia e Síria, além de numerosos périplos pela África e pela América Latina. Em seguida, Lula foi central na criação dos Brics, do Ibsa (acrônimo em inglês para o grupo formado por Índia, Brasil e África do Sul) e na formação do G20.

    O PT optou por um estilo negociador maximalista na Rodada Doha, nos embates pela Alca e na tentativa de reformar o Conselho de Segurança da ONU. Patrocinou no Haiti a maior mobilização de tropas brasileiras desde a Segunda Guerra Mundial e criou iniciativas inéditas para o Oriente Médio.

    As diferenças entre PT e PSDB são, portanto, reais. Mas é crucial não exagerá-las.

    NORMAS

    FHC aderiu às normas do Ocidente liberal de maneira lenta, parcial e, na maioria das vezes, negociada. Não houve no Brasil do PSDB uma fuga em direção ao neoliberalismo como na Argentina de Menem, a Venezuela de Pérez ou o México de Salinas.

    O governo tucano empurrou a Alca com a barriga e patrocinou a expansão do Mercosul. Na OMC, FHC patrocinou a política revisionista de quebrar patentes, transformando o papel das grandes farmacêuticas no mundo. A estratégia de aproximar o Brasil de Chávez foi criada pelo PSDB, assim como o foi a decisão de proteger o regime autoritário de Alberto Fujimori no Peru.

    O discurso brasileiro mais incendiário que um presidente brasileiro já fez em relação à hegemonia americana não foi de Lula, mas de FHC. "A globalização reduz a liberdade dos países", disse o tucano. E alertou: "Esse capitalismo especulativo pode danificar o próprio centro do sistema".

    Já Lula adotou uma política externa revisionista, mas na maioria das vezes avançou com cautela.

    Em vez de denunciar a dívida brasileira com o FMI como ilegítima, pagou-a. Em vez de chocar-se com os desmandos do governo Bush, aproximou-se da Casa Branca como nenhum outro presidente brasileiro. Quando Brasília propôs um Conselho de Defesa para a Unasul, o ministro da Defesa do governo do PT não começou seu périplo de consultas pelas capitais sul-americanas, mas por Washington. E, nas apostas mais arriscadas da diplomacia petista –a rodada Doha e a Declaração de Teerã–, Lula tentou uma conciliação com os americanos até o último minuto.

    Em política externa, ao longo desses 20 anos, tucanos e petistas tiveram muito em comum.

    Ambos apostaram na construção de coalizões regionais, concebendo o Mercosul como instrumento para resistir à integração hemisférica proposta pelos Estados Unidos. Ambos imaginaram a integração regional como oportunidade de negócios para a indústria de Defesa e para construtoras brasileiras abastecidas a crédito barato do BNDES. Juntos, PT e PSDB rejeitaram as demandas dos países vizinhos por instituições regionais densas, preferindo compromissos minimalistas que permitissem ao Brasil reagir de modo unilateral quando fosse útil ou necessário.

    Petistas e tucanos também reduziram ao máximo o conflito com os Estados Unidos, buscando apoio da Casa Branca ao mesmo tempo que evitavam fazer o jogo de Washington na América do Sul. Ambos os partidos, quando no poder, se recusaram a pressionar o chavismo na Venezuela.

    Petistas e tucanos também evitaram abrir o comércio brasileiro na marra. Mantiveram as negociações comerciais em fogo brando, sem ameaçar os interesses protecionistas de uma parte influente da indústria nacional, mesmo quando isso privilegiasse poucos em detrimento da maioria.

    Em temas como narcotráfico e mudança do clima, PT e PSDB optaram por compromissos internacionais minimalistas. Não usaram a política externa para forçar a reforma das polícias militares, para barrar o crescimento do narcotráfico, para disciplinar o agronegócio desmatador ou para chacoalhar um Estado que ainda pratica crimes sistemáticos contra os direitos de sua própria população. Contra esses interesses enquistados, não houve mobilização diplomática significativa.

    POÇO

    PT e PSDB operaram em política externa para adaptar o Brasil a um mundo muito mais interdependente. No processo, produziram respostas diferentes, mas beberam de um poço comum. Em nenhum momento compraram uma briga para valer contra os interesses que mantêm bolsões de atraso em nossa sociedade.

    O que aprendemos nesses 20 anos de diplomacia de PT e PSDB é que os conceitos de esquerda e direita –ao menos em política externa– não são necessariamente valores em oposição. Em nossa experiência histórica, a direita adaptou o Brasil à globalização, enquanto a esquerda buscou condicionar o processo num momento em que o Brasil parecia forte o suficiente para fazê-lo. Para além das diferenças brutais de estilo, a mudança ocorreu na margem.

    O resultado desse experimento foi parcial. Quando se trata de política externa, a luta do progresso contra o atraso ainda está longe de ser ganha.

    MATIAS SPEKTOR, 38, é doutor pela Universidade de Oxford e ensina relações internacionais na FGV.

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