O Festival Internacional de Cinema de Marrakech chega aos 15 anos este ano. Em uma vida humana, isso significaria estar a um passo de ser adulto, e exposto a toda espécie de sentimentos e ansiedades que já não poderiam ser definidos como "inocentes".
Mesmo se considerarmos que o principal festival de cinema da África do Norte está entrando na adolescência, 2015 se provou um ano difícil. Depois dos ataques em Paris, algumas das celebridades convidadas cancelaram sua participação (entre as quais o cineasta e membro do júri Thomas Vinterberg). Francis Ford Coppola, o presidente do júri, e Bill Murray, convidado de honra para a noite de abertura, vieram, ambos armados de palavras sobre paz e compreensão. Já os demais de nós éramos admitidos diariamente passando por medidas de segurança severas. Buscas em bolsas, revistas pessoais, táxis submetidos a inspeções em busca de bombas. E longas filas para passar pelos detectores de metais. Grupos de convidados que estavam chegando para a festa na noite de abertura se sentiam, quase literalmente, como camelos passando pelo buraco de uma agulha.
Foi heroico que o festival tenha de fato acontecido. E ocasionalmente, foi heroico para nós estarmos lá. Não é fácil ouvir as considerações religiosas e místicas de Bill Murray, o superastro ranzinza de Hollywood. "Somos todos manifestações de Deus...", ele proferiu. Coppola falou mais racionalmente, sobre o legado de arte, cultura e civilização dos árabes do século 13, em certa medida traído por algumas porções do islamismo moderno, antes de também discorrer sobre Deus. "Se você conhece o Corão, as primeiras palavras são, se bem me lembro, 'em nome de Deus, o mais gracioso e o mais piedoso..."
Depois das salvas iniciais de retórica de tom salvacionista, pudemos começar a assistir filmes. Mesmo quanto a isso, 2015 continuou a ser 2015. Havia uma película vermelha, por assim dizer, recobrindo os filmes mesmos: uma sensação física, crua, dos conflitos que correm do lado de fora e afetam as imagens do lado de dentro. Filmes pequenos, modestos em qualquer outro momento, sobre violência, conflitos ou divisões raciais e culturais subitamente passam a despertar nossas atenções, a agitar nossas antenas.
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Cena do brasileiro "Boi Neon", de Gabriel Mascaro |
Dois filmes de suspense cujos personagens centrais são muçulmanos, "Braqueurs", da França, e "Very Big Shot", do Líbano, atraíram intensa atenção na audiência. As tramas nada têm de extraordinário: comércio de drogas, traições, tiroteios. Mas hoje há uma ponta a mais de tensão em cada confronto entre etnias. E um viva surgiu dos espectadores locais quando a última tomada do filme francês ocupou a tela, para mostrar os pequenos criminosos que sobrevivem e servem como "heróis" à trama chegando em segurança à sua pátria no Marrocos. Não há coisa alguma de errado na euforia. Mas essa resposta da audiência, de nós contra eles, África contra Europa, mostrou intensidade um tanto alarmante.
"Family Film", de Olmo Omerzu, veio da República Tcheca e não mostra qualquer conteúdo étnico ou interétnico. No entanto, essa história sobre uma família dividida e uma aparente tragédia –o filme de que mais gostei no festival– não deixava de oferecer alcance emocional surpreendente. Será porque a situação dos pais que irresponsavelmente permitem que os filhos tirem férias muito longe de casa, e depois recebem a notícia de que eles estão desaparecidos, presumivelmente mortos, fala às emoções de perda e deflagra o alarme repentino de calamidade ao qual nos tornamos especialmente sensíveis neste momento?
O melhor dos demais filmes exibidos nas telas de Marrakech era o amenamente escandaloso "Boi Neon". Algumas audiências já tinham se irritado com o conteúdo sexual mostrado em tela. Durante "Braqueurs" uma mulher saiu da sala resmungando em árabe depois de uma cena de nudez. Mas o diretor brasileiro Gabriel Mascaro oferece a perfeita panaceia, ou assim se poderia afirmar, para a ansiedade mundial quanto ao terrorismo. É um filme sobre fazer amor em lugar de fazer a guerra. Difícil pensar em qualquer forma de morticínio durante as cenas carnais polimorfas e irrestritas protagonizadas pelos caminhoneiros de rodeio que servem de personagens ao filme.
Se você não ficou de queixo caído ao ver um garanhão bem dotado recebendo um trato que o deixa bem perto do clímax (para obter seu precioso sêmen), com certeza arregalará os olhos –por susto e interesse– diante das proezas eróticas do herói, burrinho mas sedutor, sua namorada promíscua, e uma vendedora de perfume, grávida de muitos meses, que passa pela história. Uma longa cena final que mostra uma cópula entre dois desses personagens vai além da pornografia e conduz a uma inocência insana, como que anterior à queda. E isso, mais a petulância tragicômica, dá força a todo o filme.
Mesmo com bons filmes, e mesmo com os discursos desafiadores, o momento poderia parecer precário para a realização de um evento cinematográfico em um país muçulmano. Mas Sarim Fassi Fihri, vice-presidente do festival, insistiu em conversa comigo que Marrakech 2015 jamais esteve em dúvida como evento.
"A verdade é que nosso primeiro festival aconteceu em 2001, duas semanas depois dos eventos do 11 de setembro. Mesmo então, não cancelamos. O rei em pessoa afirmou que devíamos manter o festival. A segurança é considerável este ano, mas em parte isso acontece para reassegurar os participantes. A verdadeira segurança está na inteligência, em prevenir aquilo que pode acontecer antes que aconteça."
"Respeito as pessoas que preferiram não vir por motivos de família e outras razões. Mas hoje, infelizmente, o medo está em toda parte. Não só nos países árabes mas em Paris, Madri, Londres..." Ele também insiste em que os atos do islamismo militante não envenenarão a cultura e cinema muçulmanos. "Veja o que disse o Sr. Coppola, o presidente de nosso júri. Ele conhece o verdadeiro Islã e sua história, e isso não é representado por pessoas como aquelas."
Procurei Coppola mesmo, na antiquada terra das maravilhas muçulmana do Hotel La Mamounia (seus passados hóspedes incluem Winston Churchill, Franklin Roosevelt e Alfred Hitchcock). Apesar das invocações bem intencionadas do Corão perguntei ao cineasta se o problema não estava exatamente em Deus e na religião.
"Sem dúvida. Foi Voltaire, acho, que disse que 'pessoas que acreditam em absurdos cometem atrocidades'. Meu amor por Deus é mais o amor por um espírito de criação. Estamos cercados de beleza e criatividade. Assim, é isso que Deus representa para mim, e o que tento expressar para os meus filhos. São as religiões que são órgãos de poder –elas é que são o problema."
Será que a arte, o cinema ou o mundo da mídia são capazes de ajudar? "Tudo que é preciso fazer" –o cineasta com jeitão de urso, vestindo uma camisa cor de pêssego, parece repentinamente entusiasmado, "e com isso seria fácil derrotá-los, é fechar a CNN. Fechar a NBC e a Fox News. É disso que vivem, da publicidade. Se você deseja matar uma planta daninha, você não deixa que o sol chegue a ela. É evidente que seria possível derrotar o Estado Islâmico militarmente. Mas é difícil derrotá-los de todo quando eles têm assessores de imprensa tão bons!"
Para concluir, ele retorna à "graça e piedade" do Corão. "O quanto essas pessoas são graciosas? O quanto são piedosas? Decerto serão julgadas com rigor pelo Deus em que acreditam, não?"
Em Marrakech, você não sente apenas estar na encruzilhada do planeta, mas na encruzilhada dos séculos e das sensibilidades. Um grupo de participantes foi levado de avião a Ouarzazate, à sua cidade velha em meio às rochas, no sopé dos Montes Atlas; e aos estúdios locais de cinema. As montanhas do deserto contemplam uma vasta fortaleza de papelão e cola. A deslumbrante construção é o maior cenário permanente de cinema do planeta; construído para "Cruzada", de Ridley Scott, ele foi reciclado e hoje é usado para "Game of Thrones".
De volta a Marrakech, tecnologia audiovisual de ponta é empregada para criar os eventos do tapete vermelho –um caleidoscópio de telas e alto-falantes onde quer que você olhe ou se acomode, no Palais des Congrés ou suas imediações, enquanto uma oficina conduzida pelo cineasta sul-coreano Park Chan-wook ("Oldboy") viaja 60 anos ao passado para invocar o cálice sagrado de sua vida cinéfila e o filme que deflagrou e inspirou sua carreira.
"Um Corpo que Cai", de Hitchcock. O que mais poderia ser? Só isso ou "Cidadão Kane". Se você ama Hitchcock, o maior dos artistas do cinema (segundo minha opinião, e a mais recente pesquisa da revista "Sight & Sound"), decerto Marrakech o enfeitiçará. É uma cidade que oferece mistério em cada viela. É como um cubo mágico disfarçado de cidade. Que cores e formas a próxima curva poderá nos revelar? Ontem descobri, aliás, graças a uma dica de um taxista, o restaurante em que James Stewart e Doris Day jantaram, e encontraram seus inimigos, em "O Homem que Sabia Demais" (1956), de Hitchcock, seu filme anterior a "Um Corpo que Cai". Mágica!
O homem com certeza deve ter sabido demais. E esse demais se chama Marrakech. É uma cidade onde tudo é demais. A grandeza de espírito que a anima é, por si, um repúdio à malevolência e às negações dos falsos profetas do Islã, dos matadores mal definidos como mártires.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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