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    Como Heidegger, pensador do fenômeno, migrou para o oculto

    ZELJKO LOPARIC

    03/01/2016 02h01

    RESUMO Texto do professor titular de filosofia da Unicamp analisa segunda fase do pensador alemão (1889-1976) a partir de "Contribuições à Filosofia: do Acontecimento Apropriador". Com a obra, filósofo se afasta do estudo das coisas, em suas propriedades ou em sua essência, e passa a buscar o não objetificável, o indizível.

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    O filósofo Martin Heidegger em foto colorizada de 1959
    O filósofo Martin Heidegger em foto colorizada de 1959

    Lançado recentemente pela editora Via Verita, na tradução de Marco Casanova, "Contribuições à Filosofia: do Acontecimento Apropriador" [504 págs.,R$ 87], de Martin Heidegger, assinala o ponto de partida dos caminhos da segunda fase do pensamento do filósofo alemão, iniciados em 1936 e percorridos até a sua morte, em 1976.

    O percurso é demarcado pelas tentativas empreendidas por Heidegger, retomadas repetida e insistentemente ao longo desses 40 anos, de dizer de maneira simples a "verdade do ser".

    Aqui, a verdade não é entendida como correção de juízos que versam sobre esses ou aqueles objetos -excelência do discurso racional almejada pela metafísica e pela ciência- nem como automanifestação das coisas na sua luminosidade própria -na sua essência, sua "entitude"-, que é o assunto central da fenomenologia de Husserl, bem como de Heidegger na sua primeira fase.

    Apoiando-se nas palavras de Hölderlin e nos ecos dos dizeres de certos pré-socráticos selecionados, Heidegger se propõe a falar do acontecer do "desocultamento" que se oculta, ao mesmo tempo que se estabelece como o aí, o aberto, a clareira, o espaço-tempo, no qual todas as coisas são abrigadas e se tornam visíveis antes mesmo de poderem ser formatadas em uma entitude, expostas em juízos corretos e transformadas em meros objetos.

    O que move Heidegger na busca desse acontecer e desse lugar pré-judicativo, se não inefável? A experiência de que o acontecer incandescente do desocultamento que "vibra", que vai e vem, no qual emergem todas as coisas, foi empalidecendo cada vez mais ao longo da história da metafísica, acabando por apagar-se na época da técnica, fase atual terminal dessa história que constitui o Ocidente, mas não é compreendida pelo homem ocidental.

    Embora mais próxima do homem do que tudo o mais, a origem desse incandescer foi completamente soterrada. Daí o propósito declarado do segundo Heidegger de renunciar a falar das propriedades das coisas e de suas relações, como fazem as ciências, ou da essência das coisas, assunto da metafísica.

    Livrando-se da condição de um sujeito confrontado com objetos, ele busca o desocultamento na sua origem retraída, no seu auto-ocultamento, e se coloca de prontidão para servir de guardião e vigilante desse acontecer, que não pode ser alcançado nem dito, mas que, não obstante -esse é o pressentimento que o anima-, é o fundamento de todo alcançar e de todo dizer cotidiano, científico, metafísico ou poético.

    LUME DO SER

    A edição alemã de "Contribuições" foi publicada em 1989, centenário do nascimento de Heidegger, como volume 65 de suas obras obras completas, parte da seção três dessa coleção monumental de 102 volumes, iniciada no ano da morte do autor.

    Os textos dessa seção são ensaios e esboços inéditos, só compreensíveis, diz Heidegger, por alguns poucos, raros e solitários, que não são mais "animais racionais", -definidos na sua entitude pelas propriedades biológicas (animalidade) e antropológicas (racionalidade)-, mas seres sem entitude, sem definição, deslocados das coisas e de si, despidos de qualquer essência por um "golpe do ser"; homens que não contam mais com a "luz natural" dos seus olhos, mas que se abrem ao lume do ser.

    Como caracterizar melhor essa virada no pensamento de Heidegger? E por que o autor de "Ser e Tempo" (1927), arauto consagrado da fenomenologia -ciência da essência das coisas manifestas por si mesmas e em si mesmas- tornou-se pensador do oculto, do não objetificável, mesmo do não dizível, e que, paradoxalmente, erige obras ao oculto, desocultando-o dessa maneira?

    A partir dos anos 1930, Heidegger começa a ter sérias dúvidas sobre o poder do ser, no homem e do homem, de servir de abertura para a manifestação de tudo o que há, e acaba abandonando essa abordagem, ao mesmo tempo fenomenológica e antropológica (centrada no estudo do existir humano), da pergunta pelo ser.

    Suas dúvidas foram despertadas por várias considerações, em particular pela leitura, em 1930, do artigo "Mobilização Total" e, em 1932, do livro "O Trabalhador", ambos de Ernst Jünger. O autor sustenta que o mundo de hoje é tomado por um processo "vulcânico" de objetificação tecnológica dos entes no seu todo, que devasta todas as essências; destino metafísico que cai sobre o homem ocidental não sendo redutível a um modo de ser dos entes intramundanos, que fosse projetado, relançado, "deixado ser" no "Dasein", o ser-o-aí humano individual.

    Sendo assim, o ponto de partida antropológico do Heidegger de "Ser e Tempo" ficou abalado.

    Em lugar de aprofundar a sua antropologia, refazer a sua teoria da objetificação, incluindo considerações sobre a radicalização tecnológica da objetificação e, nessa base, repensar os perigos da técnica, Heidegger deu uma viravolta radical: parou de olhar para o ser em termos da compreensão, pelo homem, do sentido do ser e entregou-se às tentativas de pensar o homem a partir da relação do ser ao homem, mais precisamente, da possível interpelação do homem pela "verdade do ser", sendo a verdade concebida a partir de palavra grega "a-letheia" -
    des-ocultamento.

    ACONTECER

    O objetivo da sua "aletologia" era, como vimos, achar palavras para dizer a verdade do ser como um acontecer autônomo, independente do homem, mas ao qual o homem necessita pertencer para se livrar da objetificação tecnológica e ser ele mesmo; acontecimento para o qual o homem é convocado, pelo qual é apropriado, desde o início da história ocidental na Grécia antiga, quando o ente se fez nomear como "a-lethes", "desocultado", mas do qual, no entanto, é afastado pelo próprio ser, "des-apropriado" por ele, caindo assim sob o poder da técnica e tornando-se um indigente.

    A saga heideggeriana da verdade do ser e do salvamento dos perigos da técnica pela apropriação do homem pelo ser impõe exigências que muitos, acredito eu, não estariam prontos a atender.

    Seria preciso deixar de lado a linguagem teórica, a lógica e a matemática; o conhecimento científico da natureza; o estudo científico da natureza humana com suas dimensões de animalidade, de integração e de socialidade (a cargo da biologia, antropologia, psicologia, incluindo a psicanálise, e sociologia); a filosofia (a semântica, a epistemologia, a filosofia da linguagem); aspectos abstratos da cultura (a moral da lei, os direitos, a experiência cultural) -a não ser aquela relacionada aos monumentos ao desocultamento, nomeadamente a poesia de Hölderlin.

    Pede-se, para falar a linguagem do primeiro Heidegger, virar as costas ao ser-no-mundo do ser humano em meio aos entes com os outros. Muito mais radical que o cinismo de Diógenes de Sínope, a contracultura heideggeriana só encontra paralelos na cultura mundial em posições declaradamente místicas, como a dos gnósticos e dos taoístas (Chuang Tzu).

    Muitos poderão ver nesse "pressentimento" de Heidegger, sem qualquer ancoradouro factual, apenas um recurso não justificado aos versos iniciais do hino "Patmos" de Hölderlin: "Próximo está/ e difícil de alcançar o Deus. Onde, contudo, há perigo/ também cresce o que salva".

    Outros talvez acrescentem que haveria boas razões para pensar que os perigos da técnica decorrem das dificuldades ambientais e objetivas dos humanos de chegarem ao mundo e nele se manterem; dificuldades para as quais Heidegger não atentou em "Ser e Tempo", ainda que, a partir de 1930, tenha percebido algumas delas e tentado delas escapar pelo caminho adivinhado no verão de 1936.

    Os mais críticos suspeitariam que a convocação de lidarmos com a técnica, atendendo a um chamamento do ser -que nos imporia o sacrifício de todas as relações ambientais e objetais do cotidiano e o fim da pesquisa científica e filosófica-, não seria fundada num ditame que viria do além-ente, mas, antes, seria fruto de elaborações hesitantes, ao mesmo tempo temerosas e exaltadas, sempre inconclusivas, de um pensador que se autodefine como "uma grande criança, que faz grandes perguntas", isto é, perguntas sem resposta possível.

    Não posso deixar de mencionar um notável achado de Casanova: a tradução de "Seyn" -grafia antiga do termo "Sein", encontrada em Hölderlin- por "seer" -grafia antiga do termo "ser". Pode ser instrutivo observar que "seer" vem da palavra latina "sedere"-estar sentado, ficar na posição ereta, que é uma conquista de base somática ("animal") do bebê humano quando bem cuidado no colo da mãe-, sem relação com o presenciar extático do desocultamento, acontecer pensado a partir da etimologia da palavra grega "aletheia".

    Conclui-se que, se a "linguagem fala", como diz Heidegger, ela fala de tudo, inclusive do ser, em cada língua natural com uma voz diferente, não havendo esperança de uma composição harmônica dessas vozes. A tentativa do Heidegger tardio de ver na linguagem natural a "casa do ser" não é, portanto, problemática apenas por privilegiar línguas naturais particulares: o grego e o alemão.

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