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    Um santo negócio: os escândalos financeiros do Vaticano, em 'Avareza'

    EMILIANO FITTIPALDI
    tradução LUIS REYES GIL
    ilustração ESTELA SOKOL

    20/03/2016 02h04

    RESUMO Jornalista explica os passos de uma canonização e expõe os excessos dos custos implicados no processo; fazer um santo pode custar o equivalente de R$ 2 milhões. Este texto é um extrato de "Avareza", livro-reportagem sobre os bastidores das finanças do Vaticano, a sair pela editora Planeta no começo de abril.

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    Até outubro de 2013, na conta do IOR [Instituto para as Obras de Religião] destinada à canonização da beata Francisca Ana de los Dolores, uma congregada espanhola de Palma de Mallorca depositou a bela soma de € 482.693 [quase R$ 2 milhões, considerando a cotação do euro em R$ 4,13].

    Essa montanha de dinheiro necessária para santificar Francisca não é uma exceção. De 2007 a 2013, as missionárias de Santo Antônio Maria Claret, na verdade, investiram para a beatificação da madre Leonia Milito, somando o dinheiro da congregação aos donativos dos fiéis, cerca de € 116 mil. Mas a maior parte disso acabou em fundos de investimento.

    Estela Sokol

    "A soma depositada é aparentemente elevada porque ainda não pagamos e completamos a 'positio' [volume que reúne a informação necessária para o processo de beatificação] e o futuro suposto milagre", assim justificavam, em carta endereçada ao prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, a irmã Lidia e irmã Teresa. "A instituição está também empenhada em pequenos gestos para que o trabalho de beatificação de nossa mãe fundadora não sofra por causa da manutenção econômica."

    Os fluxos de dinheiro em torno da beata espanhola e da madre Leonia não foram os únicos que preocuparam o cardeal Giuseppe Versaldi: em 16 de janeiro de 2014, o então chefe da Prefeitura dos Negócios Econômicos na realidade pegou papel e caneta e intimou o postulador dos carmelitas descalços, Ildefonso Moriones, tendo em vista a presença de "transações em dinheiro não condizentes com a finalidade da causa e seu normal desenvolvimento", e buscando "imediata adequação das contas, a exclusiva utilização dos recursos e uma substancial moderação na utilização do dinheiro em caixa".

    Ao ver o relatório interno que lhe foi enviado pela Prefeitura dos Negócios Econômicos, Francisco compreendeu que os rumores que havia anos circulavam sobre a "fábrica de santos" não eram boatos maliciosos. O papa já nutria algumas suspeitas e, por isso, no verão de 2013 requisitara à Cosea [responsável pela análise das contas do Vaticano] e ao ministério, na época dirigido por Versaldi, uma investigação aprofundada para esclarecer custos e contas das causas de beatificação e canonização geridas pela Congregação para as Causas do Santos.

    Após alguns meses, quando vieram à tona os resultados da investigação, viu com os próprios olhos que a realidade superava qualquer fantasia. Custos malucos, advogados que administravam o dinheiro de causas das quais eram "postuladores" por meio de suas contas privadas no IOR, fundos para as chamadas "causas pobres" reduzidas ao mínimo.

    Acima de tudo, Francisco compreendeu que a fábrica da santidade que Sisto 5º desejava em 1588 não só trabalha hoje a pleno vapor como parece inspirar-se no aforismo do poeta latino Juvenal, segundo o qual "a reputação depende apenas do dinheiro que se tem no cofre": é um fato que, para os santos "in pectore", com boas ações sobre a Terra, será bem mais fácil se entender com o divino, na comparação com os colegas que tenham patrocinadores menos ricos e lobby menos influente para impulsioná-los rumo à almejada auréola.

    Em 2005, o cardeal José Saraiva Martins, à época prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, no livro-entrevista "Come si Fa Un Santo" [como se faz um santo], explicou que os custos da canonização, entre despesas da Congregação, reembolsos aos estudiosos, pesquisa, volumes e impressão, chegam em média a um teto de € 14 mil. Entre as centenas de documentos consultados por este que escreve, o certo é que a cifra em muitíssimos casos é bem mais alta e que, para um êxito rápido e positivo da causa, o peso do dinheiro e a influência das camarilhas é enorme.

    DIVINDADE

    A estrada para alcançar a santidade não é simples e prevê regras burocráticas rígidas e complexas. A história registra que antigamente o papa podia canonizar um mártir por decisão sua ou até mesmo após a simples aclamação popular, mas no final do século 16 o papa Sisto 5º estabeleceu critérios específicos para o reconhecimento da divindade, de modo a evitar abusos e excessos, e decidiu que um novo organismo, rebatizado por João Paulo 2º de Congregação para as Causas dos Santos, iria cuidar do percurso até a beatitude por meio de um processo baseado no direito canônico.

    Hoje quem quer que faça parte do "povo de Deus" pode pedir a abertura de um procedimento (em geral, quem faz o pedido são parentes, amigos e, principalmente, as ordens religiosas às quais o aspirante pertencia); obviamente isso ocorre somente após a morte do candidato. São eles os "atores" da causa, que têm também a tarefa de encarregar um postulador, uma espécie de advogado defensor que instruirá e perorará a causa.

    A primeira parte do processo é chamada de "diocesana", e não pode seguir adiante sem a autorização do bispo competente, geralmente o do território onde o candidato faleceu. Com o processo iniciado, o examinado ascende à condição de "servo de Deus", e sua vida e suas obras são apreciadas por meio de uma investigação do postulador.

    Se, após testemunhos, pesquisas e entrevistas forem descobertos supostos eventos milagrosos, a causa entrará na sua segunda fase, a romana, e será posicionada no Vaticano. É nos escritórios da Congregação, a dois passos da praça São Pedro, que o postulador deverá depositar sua "positio", isto é, o relatório final sobre o candidato, que será analisado pelo promotor de Justiça, o magistrado da Congregação que deverá dar seu aval às virtudes do beato aspirante e à veracidade do milagre apresentado na "positio".

    O prodígio que é debatido no processo é quase sempre uma suposta cura de um doente, considerada cientificamente inexplicável, que é então discutida por uma comissão de sete médicos (que podem ser crentes ou não e é, atualmente, presidida pelo professor Patrizio Polisca, ex-médico pessoal de Bento 16), convocada sempre pela Congregação.

    No final, um congresso teológico formado por nove especialistas é quem sanciona se o servo de Deus pode se tornar beato, mas a proclamação final cabe exclusivamente ao pontífice. Se os atores, mais tarde, quiserem dar prosseguimento ao caminho do eleito em direção a uma nova promoção celeste, o postulador deverá demonstrar em um novo processo canônico que o candidato realizou outro milagre após a beatificação, e que merece tornar-se santo.

    Este, em uma síntese extrema, é o procedimento padrão. O que os manuais vaticanos não dizem, no entanto, é que aqueles que quiserem tentar elevar um ser querido às honras dos altares terão de gastar muito dinheiro. Cada causa tem sua história, e os custos são variáveis: a cifra final depende dos honorários do postulador, das dificuldades e do tempo necessário para avaliar a documentação, de eventuais pesquisas de aprofundamento e viagens para coleta de informações. Mas, a julgar pelos documentos de centenas de práticas do período que vai de 2008 a 2015, em geral estamos falando em dezenas e, com frequência, de centenas de milhares de euros.

    Mesmo a lista das despesas fixas é impressionante: desde as taxas e direitos a serem pagos à Santa Sé até os custos das traduções (no final, a 'positio' deve ser entregue toda em latim), das consultorias de teólogos e estudiosos às perícias médicas, decretos (sobre o martírio ou sobre o milagre), despesas para o congresso dos teólogos e dinheiro para a organização da cerimônia de beatificação e canonização –apenas para o dia de beatificação do filósofo Antonio Rosmini, segundo um folheto distribuído em 2003 pelo então postulador da causa, foram gastos € 375 mil.

    Até agora, ninguém tinha ideia das proporções do negócio, mas no passado foram muitos –incluindo altos expoentes católicos– os que criticaram o excesso de santificações e que torceram o nariz diante da inflação de abençoados imposta por João Paulo 2º, que durante os 27 anos de seu pontificado proclamou 1.338 beatos e 482 santos, quase um quarto de todos aqueles canonizados nos cinco séculos precedentes.

    Por certo, essa proliferação –interrompida com o advento de Bento 16, que impôs ritmos mais tradicionais, pedindo, por meio de uma nota dirigida aos bispos, maior rigor na abertura da fase diocesana do processo– deveu-se a uma escolha teológica específica de Karol Wojtyla, desejoso de fazer ver à comunidade dos católicos que qualquer um, com as obras e o martírio, pode aspirar a se tornar santo.

    Mas é um fato que o boom (atualmente há cerca de 3.000 causas em estoque) acarretou também vertiginoso aumento dos preços.

    A abertura da investigação sugerida pelo papa Francisco tinha dois objetivos principais: avaliar a real dimensão do negócio e verificar eventuais movimentações financeiras inadequadas.

    Muito mais que os escritórios vaticanos da congregação, são na realidade os postuladores os verdadeiros caixas de cada causa individual; às vezes monsenhores, às vezes advogados leigos (diplomados na escola vaticana preposta, o "studium") que –depois de terem recebido a procuração por parte de pessoas físicas, congregações ou ordens religiosas– recolhem o dinheiro depositado pelos atores em uma conta corrente, aberta para esse propósito no IOR.

    São sempre os postuladores que administram, ao longo dos anos em que se estende a causa, todos os fundos e os bens destinados ao futuro beato e que saldam as contas com os escritórios vaticanos e os consultores externos.

    Assim, a partir de 2013, na tentativa de limpar o instituto e de implementar as novas diretrizes antilavagem de dinheiro, a Prefeitura dos Negócios Econômicos ordenou que todos os postuladores titulares de contas no IOR enviassem à Congregação toda movimentação financeira que efetuassem.

    No final do processo, Bergoglio decidiu que o andamento das coisas era inaceitável e que devia mudar o mais rápido possível. Convocou Angelo Amato, atual prefeito da Congregação e cardeal considerado próximo de Tarcisio Bertone [secretário de Estado de Bento 16], pedindo esclarecimentos sobre as cifras enlouquecidas indicadas pelo relatório. Depois ordenou à Cosea e à Prefeitura que providenciassem o bloqueio temporário das contas IOR dos postuladores até que fossem analisadas cada entrada e cada saída de dinheiro.

    O exame das pastas foi concluído apenas em 2015. Ao examinar a papelada, a impressão é a de que as surpresas na linha de montagem da fábrica de santos não vão terminar nunca.

    PRÍNCIPE

    No Vaticano circula um ditado: "Se você quer virar santo, tem que passar pelo escritório do advogado Ambrosi". Mais do que um dito espirituoso, é um dado factual. Há quase 40 anos Andrea Ambrosi é o príncipe inquestionável dos postuladores vaticanos, um profissional reservado, capaz de fazer beatificar dezenas e dezenas de frades e mártires, sacerdotes e freiras, leigos e religiosos, imperadores e cardeais.

    Ainda hoje, há centenas de casos em aberto, que estão sendo instruídos pelo advogado romano, com um correspondente número de contas no IOR geridas diretamente por ele. Os postuladores leigos são muitos, mas alguns deles –como Ambrosi e a advogada Silvia Correale– são mais requisitados que os outros, talvez por serem mais competentes e ágeis, capazes de levar as causas a termo em menos tempo.

    [...]

    Analisando as dezenas de causas administradas por Ambrosi, são realmente muitas as de seis cifras. Principalmente quando se trata de aspirantes norte-americanos, parece não haver preocupação com despesas. Para o processo de beatificação do padre Patrick Peyton, irlandês que se mudou ainda jovem para Indiana e era devoto de Maria e do Rosário, entre 2011 e 2013, os honorários do postulador superaram os € 76 mil. Foram ainda mais altos os do padre Emil Kapaun, capelão militar morto na Guerra da Coreia, cuja conta mostra entradas de € 266 mil e € 138 mil de saídas.

    No mesmo período, Ambrosi arrecadou também na Europa, dos atores que queriam tornar santo o médico alemão Heinrich Hahn (as saídas contabilizadas sempre no mesmo intervalo chegaram a € 75.952); da causa para o missionário esloveno nascido no fim do século 18 Friderik Baraga, primeiro bispo da diocese de Marquette em Michigan (custos que saltaram para € 95 mil, todos pagos pela igreja local graças a doações e financiamentos); daquela para o Servo de Deus Engelmar Unzeitig, cujas saídas, entre 2008 e 2013, chegaram a € 82 mil; e, por fim, da canonização de Clelia Merloni, dos apóstolos do Sagrado Coração de Jesus.

    Nesse último caso, por dois anos de trabalho Ambrosi recebeu honorários que superaram os € 100 mil. "Um trabalho muito complexo, que exigiu intensa colaboração do pessoal do meu escritório e das freiras atrizes da causa", esclareceu o advogado em uma nota enviada ao Vaticano.

    Mas, surpresa, o advogado especialista em encontrar milagres escreveu em 5 de setembro de 2013 uma carta ao amigo cardeal Amato, explicando-lhe que não teria como enviar as movimentações completas de dezenas e dezenas de práticas.

    Como assim? Ambrosi revela que, até alguns meses antes, os fundos de todas as causas das quais era postulador confluíam em suas contas pessoais (conjuntas com a mulher), que depois eram desmembradas a fim de consignar a cada causa sua própria conta. No que dizia respeito aos anos anteriores, Ambrosi invocou o direito à privacidade: os extratos bancários revelariam não só as movimentações das causas postuladas mas também as entradas e saídas de sua família. O cardeal Amato, ao que parece, não teve o que objetar. No Vaticano, a privacidade é sagrada.

    Estela Sokol

    ANTINAZISTA

    O arcebispo de Paderborn, para poder beatificar o padre antinazista Franz Stock, em cinco anos gastou € 208 mil, grande parte deles com o escritório Ambrosi, que também nesse caso é o postulador.

    Dessa vez, muitas despesas foram feitas nos Estados Unidos, em San Francisco, onde em 1998, por intercessão de Stock, um homem teria sido curado de um câncer.

    "Em San Francisco foi difícil encontrar os argumentos justos para convencer os médicos envolvidos no caso a colaborarem e especialmente a se apresentarem em tribunal para depor... Foi muito complexo encontrar a conexão entre a visão da França e da Alemanha em tempos de guerra: lembro que Franz Stock, alemão, passou os anos mais profícuos do seu apostolado na França", declara por escrito o advogado para justificar, uma vez mais, "cifras que à primeira vista poderiam parecer elevadas".

    O príncipe dos postuladores tem uma atividade decididamente próspera. Entre dezembro de 2012 e janeiro de 2013, algumas irmãs carmelitas da Pensilvânia pagaram-lhe € 31 mil para iniciar a causa de Therese Lindenberg e, dois meses depois, ele recebeu outros € 25,5 mil da associação União de Oração para a Paz entre os Povos, em homenagem a Carlos 1º d'Áustria, o último imperador Habsburgo, tornado beato em 2004, e que seus fãs querem ver santo o mais rápido possível. As faturas de Ambrosi dizem respeito a uma "consultoria com um bispo de Santa Fé" (€ 6.000) e "consultorias exigidas pelo tribunal eclesiástico" (€ 18 mil), enquanto as viagens do advogado e de um assistente aos Estados Unidos para a pesquisa do milagre foram arredondadas para € 10 mil.

    [...]

    FAVORITO

    Para ver santificados os fundadores e antecessores mais ilustres, monsenhores, bispos e fraternidades entregam sua alma e se dispõem a despejar rios de dinheiro em Roma e na fábrica vaticana. Para as comunidades católicas, saber que um favorito seu está sentado ao lado do Senhor é motivo de uma fé renovada e de orgulho local, e as diversas igrejas, há séculos, não deixam escapar essas preciosas oportunidades, investindo na causa o seu patrimônio e as doações que conseguem recolher de seus fiéis.

    Não estranha que uma das causas de canonização mais custosas tenha sido a que, desde 1996, procura levar à beatitude o padre Michael McGivney, fundador da associação católica mais rica e poderosa do mundo, a dos Cavaleiros de Colombo. É um lobby extremamente influente, composto por 1,8 milhão de inscritos, dedicado à beneficência (US$ 170 milhões [ou cerca de R$ 619 milhões, considerando o dólar a R$ 3,64] circularam pelo mundo apenas em 2014), ao voluntariado e ao negócio das apólices de seguro de vida.

    No último balanço publicado, as apólices subscritas superaram os 2 milhões, para um valor total que chegou à hiperbólica cifra de US$ 99 bilhões, enquanto os ativos investidos diretamente pelos Cavaleiros em fundos e ações alcançou US$ 21 bilhões. Caso praticamente único desde o início da crise econômica de 2008, os Cavaleiros conseguiram aumentar seu giro de negócios em 41%.

    Para o atual chefe dos Cavaleiros, Carl A. Anderson, cavaleiro supremo da ordem e ex-membro do IOR, o dinheiro investido na beatificação de McGivney é provavelmente irrisório, mas, sem dúvida, as cifras que Ambrosi teve de apresentar à Prefeitura dos Negócios Econômicos e à Cosea são impressionantes: € 6.000 para "consultas médicas", € 27 mil "para uma viagem de trabalho do postulador com seu assistente-intérprete" realizada em 2009, outros € 13 mil para uma viagem às Filipinas para a pesquisa de um milagre do venerável McGivney, € 61 mil "para o trabalho desenvolvido no processo diocesano em Manila". Taxas vaticanas, "positio" e decretos, por fim, fizeram com que a causa superasse até agora os € 233 mil de despesas.

    O Vaticano sempre negou que os custos da fábrica de santos fossem altos, destacando que eventuais excessos não seriam por certo em gastos com a Santa Sé. "Uma coisa segura é que não é a Congregação que determina as despesas", argumentou o ex-prefeito José Saraiva Martins no "Osservatore Romano". "Só intervém de modo indireto. O postulador da causa é que atua como 'caixa', é quem recolhe o dinheiro necessário e paga as contas. A Congregação apenas coloca em contato os diversos atores do processo, nada mais."

    PERMISSÃO

    Na realidade, porém, é o Vaticano que nomeia todos os postuladores, sejam eles eclesiásticos (que, à parte o reembolso das despesas, com frequência não cobram um euro sequer) ou leigos, e é sempre a Congregação que organiza os cursos obrigatórios dos quais os postuladores devem participar. Em suma, a permissão oficial para entrar no circuito das santificações é dada pela Igreja.

    Além disso, até a investigação promovida por Francisco, o controle dos custos foi mínimo. E pouca atenção tem sido dada aos possíveis conflitos de interesses no negócio da tipografia, um dos itens mais caros de toda causa.

    A única empresa que tem o monopólio da impressão dos documentos a serem depositados junto à Congregação para as Causas dos Santos é a Nova Res SRL, localizada na piazza di Porta Maggiore, cuja participação acionária majoritária está nas mãos da família do advogado Ambrosi –que, segundo os dados da Câmera de Comércio de Roma, obteve da Nova Res, apenas em 2013, ganhos de € 621 mil.

    Os auditores empossados por Francisco chamaram a atenção também para outras movimentações contábeis, como as da causa de beatificação de Theophilo Matulio (o novo postulador declarou à Congregação "não possuir informações detalhadas sobre despesas" do seu predecessor), as da conta IOR da postulação geral da Ordem dos Mínimos (cuja conta era usada também para empréstimos "ad personam") e as dos investimentos financeiros de congregações colombianas de Medellín que transitaram por contas destinadas, em tese, aos servos de Deus.

    "No que se refere às práticas recebidas pela postuladora Silvia Correale, assinala-se que, na sua generalidade, as causas em questão resultam particularmente carentes de justificativas e de descrições, tanto para os itens de entrada quanto para os de saída", explicou Versaldi ao prefeito da Congregação, Amato, solicitando ainda "a documentação relativa à saída de um catering de € 10 mil" necessário para a beatificação de François Nguyên van Thuán; destacando "as excessivas movimentações em dinheiro vivo" efetuadas pelo postulador Paolo Vilotta para a canonização de Isabel Cristina Campos; e pedindo "mais detalhes, em particular sobre os itens de saída" para a beatificação de Eduardo Francisco Pironio.

    "Na realidade, não se faz presente um balanço que possa de algum modo dar ideia do emprego dos recursos à disposição de tal causa, que, embora definida como 'paupérrima' pela postulação, em definitivo não parece tão pobre assim." Mas o papa e seus homens lamentam a ausência de notas fiscais que comprovem as despesas e o trabalho desenvolvido pelos postuladores, médicos, tradutores e especialistas diversos.

    "Esta Congregação constata que, no passado, não era habitual pedir notas fiscais nem recibos e que, portanto, uma documentação completa mostra-se impossível de rastrear", admitiu Amato em uma carta a Versaldi.

    No final da investigação, Bergoglio decidiu tentar remediar. Pediu a todos os postuladores que ficassem sujeitos a uma tarifação única de referência, tanto para a fase diocesana (elaborada pelo próprio Colégio de Postuladores) quanto para a fase romana, de modo a conseguir "maior sentido de sobriedade e equidade, e que não haja disparidade entre as diversas causas", como anunciou no início de 2014 o prefeito Amato, que Francisco manteve até agora no cargo.

    Os críticos, dentro dos muros leoninos, temem que a tarifação possa ser facilmente driblada e que a solução prevista não consiga mudar de fato o mecanismo perverso da fábrica. Veremos. Por enquanto, o príncipe dos postuladores deverá ser mais perspicaz ao definir as parcelas; mesmo porque, como afirmou Amato em uma carta privada a Versaldi, "julgou-se oportuno chamar a atenção do advogado Andrea para a imprescindível exigência de rever seus honorários, assim como para os custos das causas, à luz das disposições do departamento que se seguirão, e de ater-se rigorosamente, no futuro, às normas vigentes".

    EMILIANO FITTIPALDI, 41, é repórter da "L'Espresso", revista do jornal italiano "La Repubblica".

    LUIS REYES GIL, 66, espanhol, é tradutor de inglês, catalão, espanhol e italiano.

    ESTELA SOKOL, 35, é artista plástica.

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    Papa cria nova norma para canonizações

    No começo do mês o papa Francisco impôs novas regras para a responsabilização financeira nos processos de canonização. As novas normas são uma decorrência da investigação citada no texto publicado acima, durante a qual ficou patente a laxidão dos gastos na "fábrica de santos".

    Além de prever controle externo das contas bancárias do Vaticano criadas para assuntos de canonização, a nova norma também determina o acompanhamento constante do orçamento e da contabilidade relativa às doações feitas para as causas de pretendentes a santo, a fim de garantir que esses fundos sejam empregados corretamente nos processos.

    O documento assinado pelo papa em 4 de março revoga o anterior, firmado por João Paulo 2º em 1983. Batizado de "Rescriptum ex Audientia Sanctissimi", tem caráter "experimental" e validade de três anos. Ele cria ainda um Fundo de Solidariedade, que deve ser utilizado para apoiar as causas de candidatos a santo mais pobres.

    Enquanto, porém, investigações propelidas por livros como "Avareza" motivam mudanças na Santa Sé, corre no Vaticano processo contra o autor do livro, Emiliano Fittipaldi, repórter da revista "L'Espresso", e outras quatro pessoas, entre as quais o também jornalista Gianluigi Nuzzi, que escreveu vários títulos sobre a Igreja.

    Apelidado Vatileaks 2, o julgamento foi interrompido na semana passada porque uma das acusadas de ter vazado documentos confidenciais aos jornalistas, Francesca Chaouqui, que está grávida, recebeu ordens médicas de repouso.

    Fittipaldi classificou o processo como "farsesco" em entrevista ao "La Repubblica". Ele diz que não é acusado de ter feito ameaças para obter informações, mas de fazer perguntas –"isto é, meu trabalho".

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