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    Teórico do cinema Jean-Louis Comolli fala sobre o mundo das telas de celular

    ÚRSULA PASSOS
    DE SÃO PAULO

    30/09/2016 02h35

    Cineasta, teórico e crítico de cinema, o francês Jean-Louis Comolli participa nesta sexta (30) da programação do encontro DocSP. Ele ministra uma "masterclass" ao longo do dia e, a partir das 20h, apresenta e discute seu filme "Cinema Documental, Fragmentos de uma História", de 2014. O evento é gratuito e acontece em São Paulo, na Unibes Cultural.

    Aos 75 anos, Comolli é um dos mais importantes teóricos do cinema contemporâneo, especialmente do documentário. Ele foi crítico da revista "Cahiers du Cinéma" entre os anos 1960 e 70, na qual ocupou o cargo de editor-chefe entre 1966 e 1971. Autor de diversos ensaios e de dezenas de filmes, como "La Cecilia" (1976), ele influenciou a discussão crítica sobre o teoria do dispositivo cinematográfico e, numa chave marxista-estruturalista, busca pensar o lugar do espectador e o cinema como instrumento de uma ideologia do capitalismo.

    Comolli falou à Folha, em entrevista por e-mail de Paris, antes de vir ao Brasil, sobre a perda de importância da crítica de cinema, sobre as fronteiras entre ficção e documentário e sobre o mundo novo no qual vivemos, dominado pelas telas de celulares.

    *

    Folha - Como o sr. avalia a crítica de cinema hoje? Ela vem ganhando ou perdendo importância? E espaço?

    Ainda mais do que o cinema, a crítica de cinema está submetida às condições objetivas que regem cada sociedade. Considerando que a lógica do capitalismo neoliberal visa, desde há muito tempo, diminuir a importância da dimensão crítica no espaço público, que é também o espaço de mercantilização, os filmes difundidos pelo mercado escolhem a publicidade contra a crítica. Colocamos então a crítica de lado tanto quanto possível; ela perde espaço na mídia impressa, mas ganha na internet. Trata-se, portanto, de transformar a crítica em publicidade quando ela é favorável e de sufocá-la quando é negativa.

    Ainda assim, no papel ou na internet, a crítica é indispensável à criação. É chocante perceber as diferenças de qualidade e de nível de análise entre a crítica de cinema e a crítica literária e de artes plásticas. A crítica de cinema, pelo menos na França, se mantém, em grande parte, ignorante da história do cinema, falta a ela referências culturais, continua incapaz de situar o cinema que é feito hoje no conjunto dos fatos artísticos do mesmo momento histórico, é incapaz de pensar o cinema como um "fato social total" que questiona toda a organização da sociedade e sua posição no movimento de enfatização do visível que está em curso.

    Tudo isso se agravou consideravelmente desde os anos 60 e desde a destituição do cinema como "arte política maior" em benefício da televisão, que é, para começar, um instrumento de poder político e econômico. Parece-me difícil restituir à crítica de cinema uma maior importância uma vez que a importância do cinema está cada vez mais na distração.

    Podemos dizer que há uma diferença entre a crítica de cinema de ficção e a crítica de cinema documentário?

    Documentário e ficção são os dois estados fundamentais do cinema. A maioria dos filmes de cinema documentário apresentam personagens e contam histórias (como os de Jean Rouch, Pierre Perrault, Eduardo Coutinho), como os do cinema de ficção que, por sua vez, comportam sempre uma dimensão documental (os lugares, os corpos, a luz etc.). Godard diz que seu filme "O Desprezo" "é um documentário sobre o corpo de Brigitte Bardot".

    Na verdade, ficção e documentário são duas faces da mesma moeda: o cinema. A oposição não é entre ficção e documentário, ambos cinematográficos, mas entre cinema e jornalismo, o mundo da informação, que funciona segundo regras e valores diferentes dos do cinema, no qual não há nenhuma obrigação de objetividade.

    Podemos dizer que todos os seres de linguagem (nós) comportam a ficção vivendo em meio à realidade. A linguagem é o cadinho da ficção. Todo ser de linguagem, que ele seja ou não filmado, porta histórias, a de seus pais, avós, a de sua cidade ou de sua região, a de seus amigos, ou seja, histórias nascidas de laços sociais. E são tais laços que o trabalho destruidor do capital tenta dissolver e é por isso que nossas ficções se reduziram e se tornam cada vez mais medíocres.

    O enfraquecimento geral da crítica cinematográfica e sua submissão à política de distribuição de grandes empresas faz com que ela se interesse muito pouco ao cinema dito documentário, que está pouco presente nas teles e que vive numa espécie de clandestinidade (salvo exceções). É uma pena, porque é na análise do cinema dito documentário que se pode ver funcionar melhor os parâmetros fundamentais da operação cinematográfica. No documentário, prática e teoria se relacionam de maneira mais legível que nos filmes de ficção.

    Ainda é possível fazer uma distinção clara entre esses dois cinema, o de ficção e o documentário?

    Cada vez menos. A ficção cinematográfica é assombrada pelo real. Por que? Porque a facticidade da ficção cinematográfica se aproxima cada vez mais das falsidades do espetáculo, que afasta da realidade tudo o que ele faz ver. O discurso documentário e o da ficção são muito próximos, com a única diferença da intervenção dos atores. Todo e qualquer homem ou mulher é um ator (sem ser ator profissional), mantém uma relação subjetiva com a câmera, com a máquina cinematográfica, que dá grande profundidade à sua presença filmada. O ator de ficções no cinema é treinado para reprimir ou negar a presença da câmera, da máquina, da equipe.

    Para o "ator" do documentário, o cinema está presente, perceptível, concreto, para o ator de ficções trata-se, ao contrário, de agir como se não houvesse aparelho cinematográfico. A ficção não é apenas histórias contadas, verdadeiras ou falsas, é o artifício repetido de uma negação do artifício cinematográfico. Lembrando que todo cinema é artificial, já que os filmes não crescem em árvores.

    Existe autoria nos chamados webdocumentários interativos?

    O webdocumantário pertence, apesar de seu nome, ao mundo da informação, é jornalismo ilustrado e materialmente interativo. Não apenas o cinema não é materialmente interativo (somente o é imaginariamente) como também o lugar do espectador de cinema deve ser totalmente fora da possibilidade de ação. São os atores que agem na tela, e não o espectador na sala de cinema.

    O espectador se projeta na situação, na ação, na cabeça dos personagens e no corpo dos atores, mas ele continua parado em seu lugar, mais ou menos imóvel, mudo, aberto apenas pelos sentidos da visão e da audição. O dispositivo cinematográfico é assim desde os irmãos Lumière. Tornar o espectador ativo é fazê-lo sair da sala de cinema e fazê-lo entrar em uma sala de vídeo game, onde ele pode ter telas com webdocumentários.

    No cinema, sempre o espectador é um coautor imaginário: eu sonho fazer parte do filme ao qual eu assisto e cada espectador sonha "seu" filme. Essa é a interatividade do cinema, desde o começo do século 20. A parte que cabe ao espectador é acima de tudo imaginária, ela tem a ver com o fora de campo, o espectador faz parte do fora de campo, uma vez que a sala está mergulhada no escuro.

    O público tem dado mais atenção ao documentário no cinema e na televisão?

    Não existe "atenção" na tela pequena: um interesse disperso no máximo. A imagem é menor que nós e sabemos que a instituição televisiva é sempre guiada por um poder. A televisão nos olha mais do que nós a olhamos. No cinema, pelo tamanho da tela (somos anões diante de gigantes), pela importância do fora de campo (não existe fora de campo na televisão, ou melhor, ele não passa do espaço familiar que está ao redor da pequena tela), existe um fenômeno de exaltação do olhar e da escuta que faz com que sejamos mais atentos aos significados icônicos e verbais, pela força das coisas.

    A possibilidade de fazer filmes com celulares pode mudar a linguagem do documentário?

    Sim, claro. Hoje as máquinas de gravar imagens do mundo estão em todas as mãos, ou quase. Assim encontramos a lógica fundadora dos Lumière: dar o mundo a ver por meio de uma tela. Há um cinema de máquinas pequenas que não é apenas um cinema como aparelho de visão, um cinema para ver, mas um cinema para gravar o que é visto, e então poder revê-lo. Essa é a definição do cinema: rever, porque na primeira vez não vemos, ou não vemos bem. Para ver o mundo é preciso enquadrá-lo e repeti-lo no quadro.

    Eu acho que a generalização desses aparelhos de bolso é um passo na generalização do espetáculo e na substituição do mundo visível por um mundo enquadrado que faça sentido estreitando pelo quadro o campo de visão ordinário. É um fato antropológico novo. O mundo das telas é um "novo mundo".

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