RESUMO A primeira integral da obra de Ernesto Nazareth (1863-1934) é um lançamento ao qual fazia jus há muito o compositor e pianista, tão importante para a história musical brasileira. A tarefa foi levada a cabo pela pianista Maria Teresa Madeira, que interpreta muito bem o autor, deixando ver suas intenções e influências.
Instituto Moreira Salles | ||
Ernesto Nazareth em 1910 |
O lançamento da primeira integral da obra de Ernesto Nazareth (1863-1934), esforço empreendido pela pianista Maria Teresa Madeira, é daqueles eventos que fazem a gente oscilar entre a alegria e o pasmo. É uma beleza poder ouvir todo o Nazareth, mas como é possível que isso só esteja ocorrendo agora, mais de oito décadas após a sua morte? Afinal, já vai longe o ano de 1922, quando o compositor Luciano Gallet (1893-1931) teve que chamar a polícia para dobrar os recalcitrantes e garantir que composições de nosso mais ilustre pianeiro pudessem ser tocadas no venerando Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro.
Não apenas pela importância, mas por sua qualidade intrínseca, a obra de Nazareth já devia ser um daqueles clichês pisados e repisados por todos, inspiradamente relidos por profissionais e amadoristicamente massacrados por diletantes.
Dos dois lados da fronteira entre popular e erudito problematizada e tornada tênue por ele, chorões e pianistas de concerto efetivamente têm executado alguns de seus mais célebres "tangos brasileiros", como "Brejeiro", "Bambino" e "Odeon". Só agora, porém, podemos começar a ter a real dimensão de sua produção e de seu legado.
O caráter tardio desse registro pode se explicar pelo vagar no processo de organização da produção do compositor. Para se ter uma ideia, o primeiro catálogo completo de Nazareth só foi elaborado em razão de uma mostra que a Biblioteca Nacional promoveu para festejar seu centenário, em 1963.
Dito isso, muito tempo ainda passaria antes de se ter acesso pleno a suas partituras. O conjunto só seria publicado na íntegra cinco décadas mais tarde, em 2011, pela Água Forte Edições Musicais, em uma caixa com seis alentados volumes, sob a organização de Thiago Cury e Cacá Machado.
Antes, só era possível encontrar algumas composições de Nazareth. Hoje, além da edição em livro, toda a música do compositor pode ser descoberta em dois sites: ernestonazareth.com.br e ernestonazareth150anos.com.br.
TODAS AS PEÇAS
Graças, então, ao esforço relativamente recente dos pesquisadores e à obtenção do Prêmio Funarte de Música Brasileira, em 2012, Madeira conseguiu materializar o sonho de registrar cada uma das 215 peças de Nazareth [Laranjeiras Records, R$ 210].
Elas estão distribuídas em 12 CDs, em ordem cronológica, desde a polca-lundu "Você Bem Sabe!" (1877) até a valsa lenta "Resignação" (1930). Há muitas pérolas e curiosidades ligadas a episódios históricos, como a polca "Gentes! O Imposto Pegou?" (1890, alusiva à Revolta do Vintém) e a "Marcha Heroica dos 18 do Forte" (1922).
A pianista deu-se ao trabalho, inclusive, de reconstituir algumas obras incompletas, como a música dramática "De Tarde" (1920), o hino infantil "Fraternidade" (1919) e duas partituras sem título, de datação incerta. E, obviamente, não faltam "hits" como "Apanhei-te, Cavaquinho", "Ouro sobre Azul" e "Ameno Resedá".
Poucos autores brasileiros escreveram para o teclado com tamanha intimidade, verve e excelência quanto Nazareth. Se o que mais chama atenção externamente é a síncope quase onipresente, não se devem negligenciar fatores que vão além da pesquisa rítmica, como a linguagem harmônica e as texturas. Sua produção reflete uma vida de pianeiro –ou seja, trabalhador braçal do piano– que possuía talento e aspiração a ser pianista de concerto.
No caldo cultural do século 19 que tornou possível a projeção de Nazareth, o instrumento de teclas era protagonista da vida musical –algo que se foi perdendo no século 20, com a difusão dos meios de reprodução elétricos (e eletrônicos) de gravação. Não por acaso, já em 1856 o escritor Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-79) chamava o Rio de "cidade dos pianos".
O autor de "Odeon" atuou numa época em que rádios e gramofones ainda eram raridade e luxo. A música era essencialmente música "ao vivo" –fosse em casa, fosse como acompanhamento para os filmes mudos, fosse em salas de espera, fosse nas lojas de venda de partituras, em que os pianeiros executavam para os clientes as peças disponíveis.
MINIATURAS
Fã do pianista-compositor polonês Fryderyk Chopin (1810-49), em cujos segredos iniciou-se nas oito aulas que teve com Charles Lucien Lambert (1828-96), norte-americano negro de Nova Orleans, Nazareth não foi autor de sonatas ou grandes painéis em muitos movimentos.
Seu talento floresceu essencialmente em miniaturas, dedicando-se a gêneros como a polca, a valsa (que considerava a parte mais "nobre" de sua produção, e para a qual geralmente reserva seus momentos de maior efusão lírica) e, sobretudo, o "tango brasileiro" –a denominação "respeitável" que revestia obras bastante diferentes do tango argentino, na verdade muito similares ao sincopado maxixe, tido na época como "baixo", "lascivo" e "selvagem".
Cindido entre o "pianeiro" e o "pianista", o "popular" e o "erudito", o "baixo" e o "respeitável", Nazareth vivia dilemas tanto de aceitação externa quanto de autoconfiança. O compositor Francisco Mignone (1897-1986) contava que, ao conhecer o pianista Arthur Rubinstein (1887-1982), que estabeleceu paradigmas de excelência na interpretação de Chopin, Nazareth não quis executar obras de sua autoria, e sim do compositor polonês.
Outra anedota descreve-o em prantos em meio a um recital de outra consagrada pianista, Guiomar Novaes (1894-1979), lamentando não ter podido estudar na Europa e dizendo que gostaria de ter sido como ela.
Devido à falta de recursos, Nazareth não estudou na Europa, não desfrutou da carreira de concertista internacional de Novaes e teve um fim trágico –foi encontrado afogado numa pequena represa da Colônia Juliano Moreira, manicômio do Rio, onde fora internado.
ERUDITOS
Gravado, em seu tempo, pelo "rei da voz" Francisco Alves, teve o talento reconhecido por compositores do quilate de Gallet e Henrique Oswald (1852-1931), e por Mário de Andrade, que não hesitou em classificá-lo de genial.
Certamente teria se sentido vingado ao verificar, ainda que de forma lenta, grandes pianistas "eruditos" se darem conta do valor de sua obra e a inserirem em seus programas. Vale a pena destacar o pioneirismo de Eudóxia de Barros, o brilho extrovertido de Roberto Szidon (1941-2011), o refinamento de Maria José Carrasqueira e, mais recentemente, o cuidado de Marcelo Bratke e Clélia Iruzun.
Nesse quesito, os quatro discos que Arthur Moreira Lima, então no auge da forma e da popularidade, dedicou-lhe entre 1975 e 1984 talvez possam ser considerados um ponto de virada na recepção às peças dele.
Faltava, contudo, uma apreciação conjunta, como a agora feita com apuro e afeto por Maria Teresa Madeira, cujo pianismo encanta especialmente pela "ginga", pelo senso de estilo e pela identificação com o universo musical do compositor. Vê-se que ela está profundamente mergulhada no imaginário de Nazareth e apta não apenas a fazer a mediação entre os diversos mundos presentes em sua obra como a revelar suas influências e anseios.
Assim, Madeira pode ser tão convincente em foxtrotes como "If I Am not Mistaken" e "Delightfulness" quanto nos itens de declarada inspiração chopiniana, como o romance sem palavras "Adieu" (1898), o "Noturno" (1920), o "Improviso" (1922) e a ambiciosa e virtuosística "Polonesa" (1907). São peças que revelam um Nazareth ainda mais rico, cosmopolita, complexo e multifacetado do que o que até então se conhecia, perfilado "de corpo inteiro" por uma intérprete obstinada e sensível.
IRINEU FRANCO PERPETUO, 45, é jornalista e tradutor, autor de "Alma Brasileira" (Livro Falante).