RESUMO Volume recém-lançado apresenta linhas de força da teoria do irlandês Edmund Burke (1729-97), que via na organização de partidos um pilar da vida política, defendia os direitos dos habitantes das colônias britânicas e desaprovava os contornos abstratos da cartilha de liberdades brandida pela Revolução Francesa.
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Brasileiros no século 21 leem o livro de um intelectual americano do século 20 sobre um político irlandês do século 18. Há um fio condutor aí a se desvendar. Ler "Edmund Burke: Redescobrindo um Gênio" [É Realizações, 576 págs., R$ 99,90], de Russell Kirk, publicado originalmente em 1967 e recém-lançado no país, é estar consciente dessas três camadas.
No centro está o pensamento e a vida de Edmund Burke, irlandês que teve papel de destaque no Parlamento (na época, a Irlanda pertencia ao Reino Unido). Ao contrário do que o grosso volume faz parecer, não se trata de uma biografia exaustiva. A obra traduzida é relativamente curta e vem antecedida por um ensaio introdutório do editor da edição brasileira, Alex Catharino, e seguida de cinco ensaios sobre o pensamento de Burke e suas ramificações no Brasil e no resto do mundo.
Kirk buscou retratar a filosofia política de Burke a partir das causas que o moveram: o fortalecimento do partido como agente central da vida política, a relação da Inglaterra com as colônias, a situação dos católicos na Irlanda, a tentativa de impeachment do diretor da Companhia das Índias Orientais, e, por fim, a reação à Revolução Francesa e à ascensão do jacobinismo.
No centro de sua concepção política estava a necessidade da prudência: a ação do Estado deve levar em conta particularidades locais e buscar construir em cima do que já existe. Jamais destruir o imperfeito existente em nome da perfeição, que sempre se revela inatingível. Tudo que se desvia radicalmente das lições sedimentadas pela história deve ser tratado com cautela, pois "raiva e frenesi destruirão em meia hora mais do que a prudência, a deliberação e a presciência podem erigir em cem anos."
Tanto o indivíduo solitário quanto a massa volúvel são maus guias para os rumos de uma sociedade. "O indivíduo é tolo; a multidão, no momento, é tola quando age sem ponderar; mas a espécie é sábia e, quando se lhe dá tempo, como espécie quase sempre age corretamente." Por isso mesmo, sua atuação visava consolidar o partido –o grupo de pessoas unidas por uma visão comum– como agente da vida política, em oposição aos indivíduos notáveis e ao absolutismo monárquico. Era o melhor antídoto contra demagogos e fanáticos. De maneira geral, queria um governo cada vez menos arbitrário e mais pautado por regras e costumes.
COLÔNIAS
Sem entrar em pormenores, quando se voltava para a Irlanda, a América e a Índia, Burke lutava pelo reconhecimento dos direitos de populações que, de maneiras diferentes, estavam submetidas ao jugo inglês. Sua defesa se dava antes de tudo com base em uma teoria do direito natural, um leque de prerrogativas que o poder jamais deve usurpar de nenhum homem.
E não parava aí. Dando um passo além, apontava que o despotismo podia gerar uma reação ainda mais violenta e com potenciais desastrosos para a ordem social. Foi mais ou menos o que ocorreu na França em 1789, e o grande escrito de Burke sobre a Revolução, as "Reflexões sobre a Revolução na França", selou em definitivo sua reputação como o pai de uma corrente do pensamento político: o conservadorismo.
A rejeição que Burke nutria pelos ideais revolucionários era antes de tudo filosófica. A concepção de direitos abstratos (liberdades ilimitadas e a-históricas), pelos quais os revolucionários franceses diziam lutar, era, para Burke, uma aberração.
Não que ele fosse contra direitos individuais. Pelo contrário: era, como vimos, seu defensor aguerrido. Acreditava, contudo, que a liberdade só podia existir dentro de um contexto histórico determinado. Destruídos os vínculos do costume que unem as pessoas de diferentes classes, restam apenas indivíduos guiados pelo autointeresse mais egoísta e pelo terror diante da violência estatal.
Burke já não simpatizara com a maneira abstrata como os direitos naturais haviam sido consagrados na Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, ainda que enxergasse mérito na causa. Os Direitos Universais do Homem, por sua vez, e a violência generalizada perpetrada em nome deles, causavam-lhe horror. Burke foi, assim, uma espécie de anti-Rousseau: acreditava no poder da sociedade humana de instilar nos homens bons sentimentos e virtudes, e de construir espaços de sociabilidade e liberdade, rejeitando qualquer esquema que depositasse grandes esperanças na vontade da multidão.
Em quase todos os casos, esteve do lado perdedor. Mesmo assim, suas posições e seus discursos dariam frutos no longo prazo. Sua visão terminou por legar ao mundo muito do que seria a política nos círculos de língua inglesa nos séculos subsequentes e, em particular, o pensamento conservador (termo que Burke não utilizava).
HERDEIROS
Enquanto Burke estava sempre preocupado em resolver problemas concretos da política de seu tempo, o conservadorismo que hoje em dia o toma por patriarca tem nele principalmente uma arma intelectual contra perigos ideológicos. É o movimento operado por Russell Kirk, que via no comunismo e na ameaça soviética os herdeiros, no século 20, da "doutrina armada" que fora o jacobinismo.
Kirk não é um leitor imparcial. Atribui a seu biografado, por exemplo, uma visão religiosa de que ele parece carecer. A roupagem espiritual genérica que Burke dava a sua defesa dos direitos naturais (o vínculo dos homens com a divindade), bastante ecumênica para um mundo no qual a denominação religiosa ainda era um critério definidor, é um dos temas favoritos de Kirk, que chega a falar numa origem religiosa de seu pensamento. Aí já vemos o intelectual público americano falar mais alto do que o biógrafo imparcial.
Kirk tinha, talvez por seu catolicismo militante, uma visão muito pessimista sobre o mundo em que vivia. A esse respeito, ele escreve o seguinte: "Existimos [...] no 'mundo antagonista' do século 20 de loucura, discórdia, vício, confusão e vão pesar que Burke contrastou com a justa ordem civil da sociedade fundada em uma liderança conscienciosa e nas instituições consagradas pelo uso". E olha que isso se refere não ao Rio de Janeiro em 2016, mas aos Estados Unidos nos anos 1960.
No Brasil do século 21, o pessimismo também é grande. O resgate de Russell Kirk (e, em consequência, de Burke) se dá em meio à formação de um pensamento conservador para se opor à dominância da esquerda em nossa vida intelectual (Catharino fala, na introdução, em "mazelas ideológicas preponderantes em nosso universo acadêmico") bem como ao que seria a superficialidade do pensamento liberal, preso à teoria econômica e a uma visão simplória da sociedade.
Cada público tem o Burke que deseja. Sua reinterpretação variada nas mãos de figuras públicas acaba ilustrando o que é talvez o grande problema no coração do bom pensamento conservador: uma maleabilidade tal que cobre, potencialmente, todas as posições.
Em ensaio muito interessante presente no volume, "O Caleidoscópio Conservador: Presença de Burke no Brasil", o pesquisador Christian Lynch mostra como figuras públicas brasileiras ao longo do século 19 leram e usaram Burke. Para José de Alencar, a manutenção do regime escravocrata encontra formulações e justificativas burkeanas. Para Joaquim Nabuco, as mesmas ideias se prestam à defesa da abolição.
Seja como for, é preciso notar o contraste entre a tradição conservadora que Burke representa e o que passa pelo nome de conservadorismo na política brasileira: o saudosismo com a ditadura, o reacionarismo enraivecido com mudanças sociais e culturais.
Alguma familiaridade com Burke pode permitir, mais do que respostas prontas, um engajamento mais inteligente com a ordem social. Coisa que, a bem da verdade, também não faria mal a intelectuais de esquerda e a liberais.
Respeito aos direitos de todos, pragmatismo em oposição a princípios inflexíveis, reforma das instituições existentes em oposição ao ímpeto revolucionário. Em um Brasil no qual a corrupção nos faz rejeitar com violência qualquer partido político e sonhar com o fogo implacável de justiça que nos limpe da corja de corruptos, dar uma atenção a Burke e aos efeitos que esse mesmo sonho teve em seus dias não é má ideia.
JOEL PINHEIRO DA FONSECA, 31, é economista, mestre em filosofia e escreve para o site spotniks.com.