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    Aos 70 anos, Jorge Salomão, poeta e frasista, não pega feitiço

    CLAUDIO LEAL

    21/01/2017 23h35

    RESUMO Poeta, ator, letrista, performer e sobretudo escorpiano, Jorge Salomão, irmão de Waly, foi um dos agitadores que alimentaram o folclore do desbunde carioca. Hoje, depois de lançar livro e de ser tema de uma mostra de poesia visual, zomba da nostalgia dos amigos e mostra-se afiado em outro papel, o de frasista.

    Claudio Leal/Folhapress
    O poeta e artista visual Jorge Salomão em sua casa, no Rio
    O poeta e artista visual Jorge Salomão em sua casa, no Rio

    As janelas estão abertas. No bairro de Santa Teresa, o poeta e performer Jorge Salomão tranca a porta de sua casa e caminha num mundo de quadros, fotos, livros e relíquias pessoais, todos eles dispersos no chão, nas paredes, na porta da geladeira e no armário da cozinha, onde pregou um retrato de Brigitte Bardot, riscando um balãozinho de "Ah!" no canto da boca da diva francesa.

    "Eu moro sozinho há anos", diz Salomão. "Meus amores são flamboyants, esparramados, circulam pelo mundo. Não gosto mais de casamento."

    Três dias antes de completar 70 anos, ele se esquiva dos papos nostálgicos e dos pesados tiroteios que infernizam um morro vizinho, ao longo da tarde carioca. Sentado, mas com a vivacidade ainda em pé, afirma que não se vê em geração nenhuma. "Minha geração é a do frescor, do pensamento mais aberto. Setenta anos são aquela coroa na cabeça. A mim não interessa isso. Gosto da alegria das coisas. Minha geração é a mais nova que pintar."

    Em novembro, o aniversário motivou a coletânea "Alguns Poemas e + Alguns" (Rubra Editora) e a exposição de poesia visual "No Meio de Tudo Isso", no Oi Futuro Ipanema, com curadoria de Alberto Saraiva.

    Prefaciado por Italo Moriconi e apresentado por Antonio Cicero, seu sétimo livro é aberto com um autorretrato: "eu não sou um poeta/ sou um malabarista/ e dos piores que existem/ quando vou andar no arame/ logo caio no chão".

    "É que Jorge é um poeta-malabarista: um malabarista enquanto poeta e um poeta enquanto malabarista", define Cicero na orelha. Baiano de Jequié, o escritor pegou a estrada para Salvador pouco depois do irmão, o poeta Waly Salomão (1943-2003), no início dos anos 60. Estudante de filosofia, teatro e ciências sociais, Jorge encenaria as peças "A Alma Boa de Setsuan", de Bertolt Brecht, e "O Macaco da Vizinha", de Joaquim Manuel de Macedo.

    Mudou-se da Bahia para o Rio no final de 1968. Era um salto para o desbunde pós-AI-5, que logo seria desfraldado nas dunas da Gal ("Waly que pôs esse nome"), nascidas com o píer fincado em Ipanema para a construção de um emissário submarino, na década de 1970.

    "Olhando hoje, a contracultura é um fenômeno muito bacana. Na época, foi barra pesadíssima. Waly, eu, José Simão, Torquato Neto, Ivan Cardoso, uma turma misturada com Gal Costa, um monte de gente, começamos a fomentar a cultura do desbunde no Rio. Nós não tínhamos dinheiro pra nada, nem pra comer. Eu e Waly morávamos numa pensão vagabundérrima, de tabique [taipa], na rua Viveiros de Castro. Um quarto via o outro. Mas o Waly tinha uma alegria extraordinária", conta o poeta, que participou do grupo da revista experimental "Navilouca", em 1974. "Todo mundo queria provar drogas novas. Reunir pessoas era sempre problemático."

    ANTIDESBUNDE

    Alma de esquerda, Salomão reconhece hoje um Brasil mais conservador, com toda pinta de antidesbunde, e aplica uma estratégia contra a extrema-direita. "Ao mesmo tempo que tenta desmascarar uma realidade mais libertária, o fascismo se mostra podre. Se a gente for inteligente, quebra a conceituação fascista. Quando aparece gente com estupidez, racismo e preconceito, dou quatro jogadas de capoeira, lanço uma banana e mando a pessoa dar um passo na casca, para escorregar", explica, também aí malabarista.

    Costuma ser um frasista faiscante. Inspirado numa máxima de Salomão exclamada na casa de Caetano Veloso ("Esse Brasil é mesmo jeca total"), Gilberto Gil compôs a canção "Jeca Total", do álbum "Refazenda" (1975). Está ainda entre os Jorges citados por Caetano em "O Conteúdo". Nos anos 1980, seguiria ele próprio a vida de letrista, gravado por cantoras como Adriana Calcanhotto, Cássia Eller, Dulce Quental, Marina Lima e Zizi Possi.

    Em 2016, em entrevista ao jornal "O Globo", resumiu suas proezas libidinosas na década de 1980 de forma lapidar: "Comi meio Brasil". O tônus não se esvaiu. "Ainda tenho um corpo avaliável", gargalha. "Quando tinha menos idade, era gato, formoso, corpo tanque, em plena flor do tesão. Namorei muito, sem preconceito nenhum." E reafirma as contas: "Na verdade, comi meio Brasil mesmo. Gosto de paquerar, de falar frases gostosas tanto pra mulher quanto pra homem". Duas semanas se passam, ele dá notícias: "A outra metade do país está se animando".

    Tanta liberdade não foi trabalhada com especialistas. Salomão suspende a conversa sobre suas leituras e esclarece: "Não curto psicanálise. Chegando ao Rio, um dos maiores sustos que tomei foi ver que todo mundo ia ao analista. É uma bola de neve chata". Abriu uma exceção no fim do casamento com a videomaker Sonia Miranda. "O psicanalista começou a falar tanta idiotice que eu saí pior do que cheguei."

    IRMÃO

    A perda precoce de Waly, vítima de um tumor no intestino aos 59 anos, demorou a ser assimilada. O irmão é uma ausência em suas noites. "Waly era a pessoa mais presente em minha vida desde criança. Crescemos, as paixões ficaram aceleradas, tivemos momentos de muito ódio e de muito amor. Inevitável. Mas sempre juntos. Quando Waly foi embora, a gente estava reafirmando a amizade de novo, depois de um tempo de guerrinha", lembra. "Eu tive que segurar muitas capembas da família. Tanto que eu só fui chorar a morte de Waly quatro meses depois. Um dia senti uma energia súbita. 'O que é isso?' Saíram umas lágrimas quentes dos meus olhos. Pulavam as gotas."

    Na exposição "No Meio de Tudo Isso", a amizade com Hélio Oiticica (1937-1980) se encarnava no vídeo da performance "Call me Helium", criada em 1974 pelos irmãos Andreas e Thomas Valentin em homenagem ao artista plástico e montada somente em 2014 no Rio. Inflado com gás hélio, um balão vermelho despontou na praia de Ipanema e no Centro Cultural Correios.

    À frente das duas performances, Jorge Salomão assumiu a camisa de Oiticica, que o chamava de Blanche desde que viu o baiano imitar, na Times Square, uma cena de Estelle Parsons, a intérprete de Blanche Barrow em "Bonnie e Clyde - Uma Rajada de Balas" (1967).

    Apesar de ter iniciado uma carreira promissora como cenógrafo e diretor de shows –"Luiz Gonzaga Volta pra Curtir", de 1972, é memorável–, Salomão decidiu migrar para Nova York em 1977, bodeado com uma prisão sofrida em São Paulo quando integrava um coletivo de happenings.

    Ficou até 1984 nos Estados Unidos, onde trabalhou como barman, pintor de parede, organizador de mudanças e carregador de caixas de tomate. Oiticica era o companheiro de café na Sexta Avenida. Por mais de uma vez, Andy Warhol passou na calçada oposta, carregado de eletricidade. "Lá vem a barata descascada que você adora", anunciava o artista, ranheta. Salomão aumentava a voltagem da rua, num grito capaz de abafar o som dos carros: "Warhoooooool!".

    "Minha vida mudou em Nova York. Eu uni pontos do que eu queria, as opções melhores de linguagem e os acontecimentos de vanguarda que me interessavam", afirma o poeta.

    Seu filho com Sonia, João, 37, nasceu no Rio e continua a residir nos EUA. "Energético, intuitivo, alegre, profundo, meu pai é um alquimista de palavras, uma pessoa que vive para a arte", derrete-se João, que virou o artista plástico Pixote, autor do grafite na fachada da casa paterna bem como da capa de "Alguns Poemas e + Alguns".

    Memórias, vá lá, desde que olhando para o futuro, enfatiza Jorge Salomão, impaciente com amigos que telefonam só para lembrar dos velhos tempos. Nesses casos, é quase certo que zombará depois da ligação: "É uma senhora idosa".

    Sente-se mais interessado pelos mistérios do destino. Numa tarde de Ipanema, o poeta pega um jornal e vai direto ao signo escorpião. "Se depender das estrelas, você tem tudo para encher o bolso hoje", garantia o horóscopo. "Ave Maria!", Salomão festejou. "O dinheiro como uma armadura é triste. Mata. Ficar sem alma, sem afetividade, sem coração aberto? Não tenho dinheiro. Eu vivo de malabarismos. Ganho uma merreca aqui, outra ali, mas o essencial é viver e lutar."

    Naquele dia, cozinhou um frango com quiabo, cheio de fé, porque "quem come quiabo não pega feitiço, dizia Mãe Menininha do Gantois". O dinheiro do horóscopo não caiu do céu, mas, por sorte, ele reencontrou o texto autobiográfico "Parecer", que ficou empapado num alagamento. Passou a folha e pediu para ser lido em voz alta: "Não tenho talento para performances acadêmicas. Sou uma pessoa livre. Não pertenço e nem participo de sociedade nenhuma. Digo sociedade, ou seja, cânones que querem petrificar a vida".

    CLAUDIO LEAL, 35, é jornalista.

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