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    Trump, os nerds do 4chan e a nova direita dos Estados Unidos

    texto e ilustração DALE BERAN
    tradução CLARA ALLAIN

    19/03/2017 02h08

    RESUMO Autor explica como o 4chan, um site de nerds, tornou-se a vanguarda da extrema direita nos EUA. Argumenta que jovens desempregados e sem namoradas votam em Trump porque ele encarna a ideologia da desesperança e que a esquerda deve enxergá-los como sintoma de um problema maior, que só ela pode resolver.

    Dale Beran

    Por volta de 2005, um link estranho começou a aparecer nos relatórios de origem de audiência de minha antiga webcomic.

    Eu não entendia aquele site. Era um fórum de discussão, mas tinha um sistema de navegação obscuro. De modo contraintuitivo, era preciso clicar em "responder" para ler um tópico. Além disso, o conteúdo era uma bizarrice sem sentido.

    Caso você não tenha adivinhado, o site era o 4chan.org. Era um subproduto de um fórum de discussão que eu já conhecia, o Something Awful, uma comunidade on-line com, à época, algumas centenas de nerds que gostavam de histórias em quadrinhos, videogames e, bem, coisas de nerd.

    Diferentemente de fóruns semelhantes, o Something Awful pendia para piadas pesadas. Eu tinha uma conta no site, que usava de vez em quando para escrever sobre meus quadrinhos.

    O 4chan tinha sido criado por Christopher Poole, um usuário de 15 anos do Something Awful.

    Hoje em dia, o 4chan está no noticiário quase semanalmente.

    No início de fevereiro, houve protestos em Berkeley (Califórnia) contra palestra do apoiador mais destacado do 4chan, Milo Yiannopoulos [tido como porta-voz do movimento alt-right, direita alternativa].

    Uma semana antes, o neonazista Richard Spencer estava prestes a explicar o significado de seu broche do Pepe the Frog (o sapo Pepe), inspirado no 4chan, quando um manifestante antifascista deu um soco na sua cara.

    Em dezembro, o 4chan decidiu travar guerra contra oficinas de "faça você mesmo" [como FabLabs e TechShops] e contra os "liberal safe spaces" [espaços em que os frequentadores proíbem expressões discriminatórias].

    Como foi que chegamos a isso? O que exatamente é o 4chan? E como um site sobre animes se tornou a vanguarda da extrema direita, envolvida com movimentos fascistas, intrigas internacionais e a iconografia de Donald Trump? Como interpretar tudo isso?

    No início, o 4chan se reunia uma vez por ano em apenas um lugar: na Otakon, convenção de fãs de animes em Baltimore, perto de Washington. Como jovem nerd na Baltimore dos anos 1990, trombei com a Otakon mais ou menos do mesmo jeito que, mais tarde, trombaria com o 4chan: no começo.

    Tendo testemunhado o crescimento do 4chan, que passou de um grupo de adolescentes que caberia em uma sala a uma coalizão mundial de extremistas de direita, sinto-me na obrigação de dar alguma explicação sobre o fenômeno.

    O ANON

    A princípio, não prestei muita atenção no 4chan. Mas, por volta de 2008, quis fazer uma reportagem sobre o site. Sua base de usuários tinha aumentado muito, e era óbvio que logo se tornaria amplamente conhecido (para consternação de seus milhões de usuários, que faziam de tudo para mantê-lo secreto).

    O segredo do sucesso do 4chan (e o elemento que o distinguia de seu progenitor, o Something Awful) era o formato do fórum de discussão japonês que Poole adaptara para uso em inglês.

    As pessoas se divertiam demais, as discussões se tornavam efêmeras, cresciam loucamente em segundos e desapareciam minutos mais tarde, empurradas para o esquecimento por novos tópicos, e assim por diante, sem parar, 24 horas por dia, sete dias por semana.

    O que mais agradava era não precisar criar uma conta. O programa exibia um nome padrão para os autores de postagens que não criavam uma conta –ou seja, todos.

    Em milhões e milhões de postagens, o nome do autor era simplesmente "Anonymous" (anônimo). Os usuários começaram a chamar uns aos outros de Anonymous: "Oi, é o Anon falando aqui".

    E assim o Anonymous nasceu.

    O 4chan com frequência é apresentado como responsável por alguns dos primeiros memes mais populares, como o "rickrolling" [pegadinha na qual a pessoa acha que, clicando num link, vai ver algo de seu interesse, mas acaba assistindo ao clipe de "Never Gonna Give You Up", de Rick Astley].

    Dizer isso, porém, é dizer pouco. O 4chan inventou o meme tal como o usamos hoje.

    Termos como "win" (vitória), "epic" (épico, incrível) e "fail" (deu errado) foram criados ou popularizados ali. O próprio método de intercalar gifs e imagens com diálogos em aplicativos de mensagens é muito 4chaniano.

    Em outras palavras, o site marcou profundamente nossos comportamentos e nossas interações.

    Em 2008, escrevi ao jovem fundador do 4chan para pedir uma entrevista. Ele não respondeu.

    Então vi que o 4chan ia se reunir não em Baltimore, mas a poucas quadras de meu apartamento em Nova York –na verdade, em muitas cidades mundo afora. Seus membros planejavam manifestações contra a Igreja da Cientologia.

    O que levou esse grupo de nerds fanfarrões que se reuniam numa convenção sobre animes a protestar contra a cientologia é uma pergunta interessante.

    VALORES

    Para responder a ela, precisamos nos debruçar um pouco mais sobre o sistema de valores do 4chan.

    Para quem conhece o site, mesmo que de passagem, soa estranho dizer que tenha um sistema de valores. E, de fato, o site fez de tudo para ser niilista, para odiar, para negar, para dar de ombros e tratar tudo como brincadeira, como costumam fazer os adolescentes. É claro que isso era impossível.

    A busca pela aleatoriedade, como um teste de Rorschach, pintou um retrato exato de quem eles eram, sendo os espaços em branco preenchidos por sua identidade, seus interesses, seus gostos.

    O resultado era que o 4chan tinha uma cultura tão complexa quanto a de qualquer sociedade feita de milhões de pessoas, anônimas ou não. Havia coisas que a comunidade amava, coisas que odiava, maneiras de ser e de agir que ganhavam a aprovação ou a desaprovação do grupo.

    O site codificou seu sistema de valores em uma série de regras. Como tudo o que ele fazia, as regras foram construídas uma a uma a partir de elementos da cultura pop. A regra nº 1 nasceu da regra nº 1 do "Clube da Luta" [filme de 1999 dirigido por David Fincher]: "Não falar sobre o 4chan".

    Todas as regras tinham um quê de "O Senhor das Moscas" [livro de William Golding, de 1954], ou seja, era muito evidente que tinham sido criadas por uma sociedade anárquica e agressiva de adolescentes –ou, pelo menos, homens com mentes de garotos–, meninos-homens particularmente solitários, sem vida sexual, que, de acordo com suas próprias piadas, moravam no porão da casa de seus pais (Christopher Poole viveu no porão da casa dos pais até bem depois de o site fazer sucesso).

    Eles eram obcecados pela cultura japonesa e, naturalmente, já existia no Japão um termo para descrever pessoas como eles, "hikikomori", que significa "atraído para seu interior, ou ser confinado" –adolescentes ou adultos que se retiravam da sociedade para viver em mundos de fantasia feitos de animes, videogames e, hoje, internet.

    Vale observar aqui os temas de "Clube da Luta", filme sobre homens que recobram sua virilidade por meio de atos extremos depois de terem sido aviltados pela cultura corporativa moderna.

    Também como adolescentes, os usuários do 4chan eram profundamente sensíveis e se protegiam. Disfarçavam sua própria sensibilidade (ou seja, o medo de ficarem sozinhos para sempre) atrás de uma insensibilidade extrema.

    As regras, como tudo no site, sempre eram, em parte, brincadeira. Tudo tinha que ser feito com pelo menos um pouco de ironia.

    Era uma via de fuga, uma maneira de nunca ser obrigado a admitir para os pares que se estava de fato exprimindo algo de coração –em outras palavras, um meio de ocultar a própria vulnerabilidade.

    Não importa o que o usuário dissesse ou fizesse, sempre poderia acrescentar que tinha sido de zoeira, "for the lulz" [variante plural de lol, que indica risadas, como kkk].

    O padrão aceito era um tipo de bandeira de livre expressão libertária, em que meninos-homens isolados afirmavam seu direito de fazer ou dizer o que quer que fosse, desprezando sentimentos alheios.

    Isso, de modo geral, significava postar pornografia, suásticas, xingamentos raciais e conteúdos que se revelavam perniciosos para outras pessoas.

    Antes de sua birra com a cientologia, o 4chan reunira seus membros para promover o que chamavam de "raid" [ataque surpresa]. Os membros do site inundavam salas de bate-papo ou redes on-line por nenhum motivo específico, a não ser zoar durante seu tempo livre quase ilimitado ("for the lulz").

    Nos ataques, eles seguiam a regra nº 1 e ocultavam a existência do 4chan. O protesto contra a cientologia foi em boa medida um "raid". Eles criaram vídeos nos quais fingiam que Anonymous era uma organização sigilosa e poderosa, semelhante à Hydra dos gibis da Marvel.

    Como na época ninguém sabia o que era o Anonymous, os rapazes do 4chan podiam fazer de conta que eram qualquer coisa.

    CIENTOLOGIA

    Isso significa que o protesto continha algo sério. A parte que não era brincadeira foi um experimento sobre o poder político. O que eles poderiam fazer usando seu contingente? Poderiam destruir a cientologia? Se não, quão longe poderiam ir?

    A manhã do protesto foi um sábado de frio brutal. Eu e um amigo pegamos o metrô, sonolentos, e andamos duas estações até a Times Square. Tínhamos a vaga impressão de que alguém estava nos "trollando" (zoando).

    Então viramos a esquina da rua 46 e, para nosso espanto, centenas de pessoas gritavam diante do prédio da Igreja da Cientologia. Anônimas. Todas. Todas usavam máscaras, a maioria máscaras de Guy Fawkes, inspiradas na adaptação para o cinema que as irmãs Wachowski fizeram de uma história em quadrinhos ["V de Vingança", de Alan Moore].

    Para usar uma expressão dos quadrinhos, essa foi a "primeira aparição" da máscara na vida real.

    Entrevistei um cientologista perplexo entre as colunas de seu templo. Sua expressão era de espanto e choque. "São terroristas", insistiu, sem fazer ideia de quem eram aqueles jovens –usuários de um fórum de discussão.

    Quando o protesto terminou, um nerd vestido de Neo, personagem do filme "Matrix" (1999), num longo casaco preto, gritou: "De volta aos porões das casas de nossos pais". Todos gargalharam.

    O que chamou minha atenção foi que o 4chan não dava a mínima para a cientologia. A disputa tinha a ver com o acesso do 4chan ao "lulz" (à zoeira) na internet.

    A Igreja da Cientologia tinha retirado do ar um vídeo engraçado em que Tom Cruise fazia um discurso longo sem pé nem cabeça sobre a religião.

    O 4chan achou que a remoção prejudicou seu direito irrestrito de postar (e conservar) qualquer coisa na internet. Havia um elemento moral em seu protesto, mas era, na melhor das hipóteses, tangencial.

    O 4chan apenas queria o direito de fazer o que bem entendesse. Sempre que grandes sistemas organizados –como empresas, governos ou a cientologia– atrapalhavam esse seu "direito", o site se opunha a eles.

    O Anonymous atacou grandes empresas como PayPal e American Express não por serem grandes empresas, mas porque tinham congelado os bens de Julian Assange, um defensor da liberdade de distribuir informação na internet.

    No final de 2011, o 4chan estava exposto. Depois disso, o grupo de certo modo se fragmentou; qualquer pessoa podia hastear a bandeira do Anonymous.

    Hackers que se autodenominavam "anonymous" lutaram por agendas diferentes, algumas anticorporativas, outras verdadeiramente nobres, como ajudar a condenar os estupradores de Steubenville [caso de 2012 em que uma garota foi violentada e filmada por colegas de escola].

    Mas hacking filantrópico e anticorporativo não estava no cerne do que o 4chan fazia. O site começou e sempre girou em torno dos "lulz", de usar o computador para diversão, para passar o tempo.

    O 4chan então se espalhou por uma rede de sites e canais de IRC [para bate-papo e troca de arquivos], um dos quais era o 4chan.org.

    Não havia uma pessoa que representasse o Anonymous. Mas o grupo ainda era unido por uma cultura comum, um conjunto de valores comuns; ainda era mal definido nas bordas, mas era sólido em seu núcleo. E o que era esse núcleo duro que o definia? A mesma coisa que sempre tinha sido.

    Ainda se tratava de um grupo de "hikikomori", composto principalmente de homens jovens recolhidos no mundo virtual. Era aí que se davam todas, ou quase todas, as suas interações, sociais ou não. O mundo real, acima do porão da casa de suas mães, era o lugar onde eles não davam certo –talvez um lugar que eles não entendiam.

    Claro que essa descrição não se aplicava a todos, mas à maioria. Até havia hackers que usavam seu conhecimento no mundo virtual para fazer a diferença no mundo real, mas o cerne da cultura não tinha mudado. Era uma cultura que celebrava o fracasso. E isso ficou muito claro com a grande missão que o 4chan começou em seguida.

    GAMERGATE

    É difícil recordar o que deslanchou o GamerGate sexista no universo dos gamers] porque, como boa parte do conteúdo do 4chan, tratava-se de algo sem sentido à primeira vista. Ainda assim, houve um início.

    Em 2014, um rapaz rejeitado afirmou que tinha sido traído por sua ex-namorada. Em uma postagem de blog incoerente e constrangedora, tentou provar para a internet a suposta infidelidade. Por mero acaso, o alvo de seu texto, sua ex, era uma mulher desenvolvedora de videogames.

    O 4chan e outros homens de mentalidade semelhante à dos 4chanianos, que se sentiam injustiçados pelas mulheres, levaram adiante aquele grito de guerra.

    Não se sabe bem como, o esforço evoluiu de um interesse sinistro pela vida sexual de uma mulher em particular para uma crítica geral aos videogames.

    Os gamergaters acreditavam que os "SJWs", ou "Social Justice Warriors" [guerreiros da justiça social, termo pejorativo para os defensores do politicamente correto], estavam acrescentando elementos indesejados a seus videogames. A saber, elementos que promoviam a igualdade de gêneros.

    Estranhamente, achavam que isso acontecia não porque os criadores de videogames e a imprensa especializada tivessem interesse em criar e resenhar jogos que tratassem desses temas, mas porque supostamente haveria uma conspiração arquitetada por ativistas para modificar os videogames.

    De novo, é preciso entender esse grupo como pessoas que fracassaram no mundo real e se refugiaram no mundo virtual. São homens sem emprego, sem perspectivas na vida e, por extensão (como eles declamavam), sem namoradas.

    O único lugar onde se sentem eficientes é o mundo seguro e perfeitamente cultivado dos games em que entram. Em consequência de seu fracasso, o conceito distante e abstrato de mulheres de carne e osso provoca neles sentimentos de humilhação e rejeição.

    E, no único espaço em que eles conseguiam fugir dessa realidade, no mundo dos videogames, as mulheres (na visão deles) queriam afirmar sua presença e seu poder.

    Se parece difícil de acreditar, veja o exemplo de Milo Yiannopoulos, ex-"editor de Tecnologia" do Breitbart News, cuja palestra agendada em Berkeley desencadeou grandes protestos e tumulto.

    Yiannopoulos ganhou destaque graças ao GamerGate. Ele não foi editor de "Tecnologia" por comparar as arquiteturas de chips de placas de vídeo concorrentes. O "tec", nesse caso, é código para indicar que seu público é composto de uma população imensa de garotos patéticos que se recolheram nas comunidades na internet.

    CONTRA AS MULHERES

    A grande imprensa às vezes o descreve como "troll" para captar sua ligação vaga com o 4chan. Esse termo também é inexato. Yiannopoulos é 4chan em toda sua extensão. Afinal, o que unia esses rapazes era seu fracasso e sua impotência, (na visão deles) literalmente encarnados nas mulheres.

    Os "argumentos" confusos de Yiannopoulos contra o feminismo nem são propriamente argumentos, e sim discursos para a torcida, um jeito de fazer esses homens "desempoderados" se sentirem "empoderados" pelo descarte do símbolo de seu fracasso: a mulher.

    Como homossexual declarado, ele argumenta que os homens não precisam se interessar por mulheres; que eles podem e devem se afastar em massa do sexo feminino. Por exemplo, em um conjunto longo e incoerente de afirmações sobre o feminismo, ele diz:

    "A ascensão do feminismo coincide fatalmente com a ascensão dos videogames, da pornografia na internet e, em algum momento próximo, dos robôs sexuais. Com todas essas opções, e diante dos perigos crescentes dos relacionamentos na vida real, os homens estão simplesmente se afastando".

    Dale Beran

    Yiannopoulos inverteu a ordem dos fatos para seu público sentir-se bem. Os homens que se recolheram aos videogames e à pornografia digital agora podiam caracterizar sua fuga como uma escolha consciente, a rejeição das mulheres em nome de algo mais.

    Dito de outro modo, isso justificava um estilo de vida que antes, em seu íntimo, eles sentiam como motivo de vergonha.

    O GamerGate, enfim, era um "raid" que tinha importância, que não era simples zoeira. Essa era uma questão (além do "deixe-me fazer o que eu quiser na internet") que fazia sentido para a maioria dos usuários do 4chan.

    Os Anons iam tirar as SJWs (ou seja, as mulheres empoderadas) dos "safe spaces" deles –os videogames–, o lugar onde eles se refugiavam, mergulhando em fantasias nas quais eles assumiam o controle (ou seja, fantasias em que eles rebaixavam as mulheres).

    Seus esforços fracassaram, não tanto por falta de tentativa (se bem que por isso também), mas porque a própria campanha era fantasiosa.

    O GamerGate foi marcado pela falta de contato com a realidade dos que travaram a campanha, que não interagiam muito com a vida real, apenas com o mundo virtual escapista dos videogames, fóruns de discussão e animes.

    A campanha foi conduzida como o videogame que não era. Foram redigidas "listas de alvos", e seus inimigos (em sua maioria, mulheres que eles queriam assediar), rotulados de "warriors" (guerreiros).

    Os usuários do 4chan fizeram de conta que uma enorme quantidade de cliques de mouse e ações virtuais de alguma maneira se traduziria em recompensa concreta aparecendo em suas telas de computador, como acontece, digamos, no jogo "World of Warcraft".

    Os "gamergaters" pensavam que seu trabalho on-line traria à tona uma conspiração concreta, um conluio entre criadores de games para fomentar a agenda das "guerreiras da justiça social".

    O mundo real, porém, não se comporta como um videogame. O mundo real tem tons de cinza. Ele decepciona. O que se faz e o que se recebe como recompensa se embaralham. É mais complicado que o espaço seguro de um videogame, desenvolvido cuidadosamente para acomodar os jogadores e fazer com que se sintam –bem, o exato oposto de como eles se sentem no mundo real– eficientes.

    Era quase como se todos esses jovens descontentes estivessem à espera de uma figura que, não tendo realizado nada na vida, fazia de conta que tinha realizado tudo; alguém que, usando as ferramentas da fantasia, podia transformar sua derrota (no jargão do 4chan, "fail") em uma vitória ("win").

    TRUMP

    No livro "Factótum", de [Charles] Bukowski [publicado em 1975], o personagem principal, Hank Chinaski, termina num emprego que não é melhor que os anteriores, a não ser por um aspecto importante: o expediente acaba a tempo de ele e um colega, Manny, correrem para apostar em cavalos.

    Logo os demais trabalhadores ficam sabendo do esquema e pedem a Hank que faça apostas para eles. A princípio, Hank se recusa. Ele não teria tempo para isso. Mas Manny tem um plano diferente.

    "A gente não faz a aposta para eles, a gente fica com o dinheiro deles", diz a Hank.

    "Mas e se eles vencerem?"

    "Eles não vão vencer. Eles sempre escolhem o cavalo errado."

    Em pouco tempo, Hank e Manny estão ricos, não por trabalhar por US$ 1,25 por hora ou por fazer apostas vencedoras, mas por pegar o dinheiro dos colegas e não apostá-lo.

    Donald Trump, é claro, acumulou fortuna de forma parecida, com cassinos, cursos por correspondência e concursos, arrancando dinheiro de trabalhadores que sonham virar milionários, vendendo o brilho e o glamour do sucesso a pessoas que, na linguagem de Trump, "não têm vencido".

    Como se tivessem vencido no passado mítico que ele inventou, como se fossem vencer de novo no futuro, já que o cerne de suas promessas é "vocês vão vencer tanto que vão se cansar de vencer".

    Em outras palavras, se queremos entender os partidários de Trump, devemos enxergá-los como perdedores –pessoas que nunca apostam no cavalo certo.

    Trump é o exemplo máximo disso, o homem obcecado pelos "perdedores" e que, tudo levava a crer, entraria para a história como um dos maiores perdedores de todos os tempos –até que ele venceu.

    Nesse sentido, é mais fácil compreender a geração mais velha de apoiadores de Trump, o segmento pelo qual a imprensa mais se interessa, a chamada "classe trabalhadora branca esquecida", porque ela se enquadra no esquema de um eleitorado aos estilo dos anos 1950.

    Aos "baby boomers" [geração nascida depois da Segunda Guerra Mundial] foram feitas promessas de pensões e prosperidade, mas eles nunca receberam mais que as promessas. A narrativa é simples. Alguma coisa foi prometida aos trabalhadores, mas alguém (os políticos? A economia? O sistema?) nunca cumpriu o que prometeu.

    Mas essa versão ignora um aspecto importante. Não é que a promessa nunca tenha sido cumprida. A verdadeira história não é que o cavalo deles jamais ganhou, mas que sua aposta nunca foi feita.

    Estamos acostumados a ver todos os políticos brandindo o mesmo retrato desbotado de 65 anos atrás sempre que voltam seu olhar para o eleitorado americano.

    Mas, se colocarmos de lado essa velha fotografia, qual é a cara real do eleitorado americano? Após décadas de declínio, como mudou aquela imagem de um pequeno empresário dos anos 1950 que tem sua casa própria nos subúrbios?

    Para as gerações mais jovens, que nunca tiveram os mesmos empregos, mas apenas a mitologia dos empregos, essa parte da narrativa é clara. A América, e talvez a própria existência, é uma cascata de promessas e anúncios vazios.

    Assim, esses partidários de Trump têm uma ideologia diferente. Não um pensamento de "quando meu cavalo vai ganhar", mas um trollador e autodepreciativo "sei que meu cavalo nunca vai ganhar".

    Os eleitores mais jovens de Trump sabem que entregam o dinheiro a alguém que nunca vai fazer as apostas deles, porque, afinal, nunca houve alternativa.

    Nesse sentido, o comportamento incompetente, errático e ridículo de Trump é o pilar em que se apoiam seus partidários mais jovens.

    Essa ideia –desesperança total e desdenhosa– é encarnada numa imagem mais do que em qualquer outra, em um personagem que ficou famoso e virou herói de milhões de pessoas, a voz de uma geração. Falo de Pepe the Frog.

    SAPO

    Quando a campanha de Hillary Clinton "explicou" que Trump usou o sapo Pepe como símbolo de ódio, parecia ser apenas mais uma bizarrice do desfile de horrores que foi a eleição de 2016.

    Como tantos outros memes, Pepe nasceu nos fóruns "aleatórios" do 4chan por volta de 2007, tendo sido tirado de uma webcomic de Matt Furie para virar uma macro [imagem gerada por código].

    Por que ele foi escolhido? Sabemos que as ações do 4chan não são sem sentido, aleatórias ou vazias simplesmente por serem "trotes".

    Visto com as lentes das pessoas que primeiro postaram o Pepe on-line, ele faz muito sentido. As páginas de quadrinhos das quais o sapo foi tirado mostram-no sendo flagrado fazendo xixi com as calças totalmente abaixadas e a bunda de fora. Surpreendentemente, ele não sente vergonha disso.

    "É uma sensação boa, cara", ele diz a seu colega de quarto.

    Esse habitante do pântano, grotesco, carrancudo, de olhos sonolentos, fora de forma e fazendo xixi com as calças abaixadas porque "é uma sensação boa" é uma ideologia –uma que afirma sem pudores sua própria condição patética.

    Pepe simboliza a pessoa que abraça a condição de perdedor, que a reconhece e a aceita. É uma cultura de desesperança, de saber que "o sistema é manipulado". Mas, em vez de combater tudo isso, a resposta é fugir. Saber-se preso nessa circunstância é razão para festejar.

    Para esses rapazes, votar em Trump não é uma solução, é uma pegadinha vingativa.

    Hoje já sabemos que Trump é engraçado. Mesmo para nós esquerdistas, que ficamos horrorizados a cada passo dele, Trump é hilário.

    Rick Wilking/Reuters
    Candidatos à Presidência dos EUA, Hillary Clinton (Democrata) e Donald Trump (Republicano), durante debate em Nevada
    Candidatos à Presidência dos EUA, Hillary Clinton (Democrata) e Donald Trump (Republicano), durante debate em Nevada

    Alguém que é tão autoconfiante se revelar escandalosamente incompetente em tudo que faz é –de um ponto de vista objetivo– ouro puro para a comédia. Alguém que acusa seus inimigos das falhas que ele próprio encarna naquele exato momento é material cômico que vale ouro.

    Mas, como a esquerda percebeu após a eleição, chamar a atenção para a piada que é Trump não ajudava. Na realidade, sua natureza burlesca não parece ser uma desvantagem; pelo contrário, para seus apoiadores, é um trunfo.

    Como a ideologia de Trump, o sistema de valores do 4chan é obcecado pela competição masculina (e a subsequente humilhação quando a competição é perdida). Veja os termos que o 4chan inventou e que andam tão populares entre alunos de escola primária em todo lugar: "fail" e "win", "machos alfa" e "beta cucks" (cornos maricas).

    Esse sistema é definido por sua inocência infantil, ou seja, pela inexperiência do inventor com qualquer espécie de relacionamento amoroso na vida real. E, como Trump, esses homens ostentam suas inseguranças de modo muito visível, lançando esses insultos contra todo mundo em explosões de raiva.

    LABIRINTO

    Trump, o perdedor, o "outsider", o incompetente, a piada patética, encarna essa dualidade. Trump representa tanto o alfa quanto o beta.

    Ele é uma pessoa bem-sucedida que, como a esquerda nota com frequência, é também o oposto: um perdedor grotesco, orgulhoso do status de "outsider", mas também sensível a isso, disposto a partir para o ataque à menor provocação, obcecado por si mesmo, egoísta, negligente e tão inseguro que sente necessidade de insultar mulheres.

    Em outras palavras, parafraseando Truman Capote [no livro "Bonequinha de Luxo"], ele é alguém com o nariz apertado tão forte contra o vidro que parece ridículo. Por essa razão (por saber que não tem substância), ele precisa constantemente reafirmar seu próprio ego.

    Ou, como disse [o documentarista] Errol Morris, citando [o escritor Jorge Luis] Borges, ele é "um labirinto sem centro".

    O que a esquerda não entende, entretanto, é que nada disso é um problema para os partidários de Trump. Pelo contrário, é a razão pela qual o apoiam.

    Os eleitores de Trump votaram no vigarista, no labirinto sem centro, porque labirinto sem centro é como eles se sentem. Um labirinto sem centro é a descrição perfeita do porão da casa da mãe deles, com um terminal de computador a partir do qual mergulham numa sequência interminável de mundos de fantasia escapista.

    Os comportamentos bizarros, inconstantes, incompetentes, embaraçosos, ridículos de Trump, que a esquerda (naturalmente) enxerga como pontos fracos, são, para seus partidários, pontos fortes.

    Em outras palavras, Trump é 4chan. Trump é Pepe. Trump é abraçar a condição de perdedor. É o perdedor que ganhou, o sapinho patético com corpo grande e forte.

    Os empreendimentos de Trump representam essa fantasia: a esperança de que o homem trabalhador, contrariando as probabilidades, um dia vai enriquecer.

    Trump também representa a consciência de que isso tudo é uma mentira, uma enganação muito mais velha do que você, uma fantasia na qual podemos habitar, embora, como um videogame, ela nunca vá se tornar realidade.

    Trump encarna a aposta que, na verdade, nunca foi feita. Por isso, a esquerda deveria parar de esperar que os seguidores de Trump se frustrem quando ele deixar de cumprir suas promessas. Apoiá-lo é reconhecer o vazio da promessa.

    Em outras palavras, podemos acrescentar uma terceira categoria às duas que fazem parte da visão clássica que se tem dos partidários de Trump:

    1) Pessoas mais velhas que acreditam, ingenuamente, que Trump vai fazer a América ser grande outra vez, ou seja, levá-la de volta ao ideal dos anos 1950 evocado tanto por Trump quanto por Hillary.

    2) O 1% que sabe que essa promessa é vazia, mas também sabe que ela vai beneficiar seus interesses econômicos no curto prazo.

    3) Os membros mais jovens dos 99%, como os Anon, que também sabem que a promessa é vazia, mas apoiam Trump como expressão desafiadora de desesperança.

    GÊNERO

    No ensaio "A Tale of Two Hipsters" (um conto de dois hipsters), mencionei o livro "The Hearts of Men" (os corações dos homens), de Barbara Ehrenreich, crítica feminista que discute como os papéis de gênero amarram e controlam os homens.

    Ehrenreich descreve a nova posição inventada para os homens na América hipercapitalista do pós-guerra, na década de 1950. O salário do homem e seu apartamento de solteiro vinculavam seu potencial de renda a seu papel como sedutor de mulheres.

    Essa visão veio substituir uma ideologia anterior, mais conservadora, na qual o potencial de rendimentos do homem significava que ele tinha condições de sustentar mulher e filhos. Ehrenreich disse que esses dois esquemas ainda são as ideias que controlam o comportamento dos homens nos EUA.

    Como ela aponta, apenas os hipsters conseguiram quebrar e destruir esse esquema.

    Recorde os temas centrais do GamerGate: as mulheres representam o fracasso "beta" do Anon no capitalismo. O Anon não alcançou nem um, nem outro desses ideais: não é playboy com seu próprio apartamento de solteiro, nem é assalariado com mulher e filhos.

    Mas foi essa distância entre expectativa ideológica e realidade cruel que o criou. O Anon habita um lugar que é o extremo oposto do apartamento de solteiro: o porão da casa de sua mãe.

    Agora podemos entender por que pouco tempo atrás o 4chan declarou guerra a artistas e seus "safe spaces", procurando fechar locais de música e artes em todo o país.

    Os artistas são pessoas jovens que vivem à margem da economia, também imersos numa fantasia romântica. A diferença principal é que os artistas aprenderam formas diferentes de lidar com o problema. Em vez de residir nos porões das casas de suas mães, criaram maneiras de viver juntos em galpões, pagando pouco.

    Contrastando o 4chan com seu inimigo autoproclamado, seus antagonistas na contracultura, podemos ver que, embora eles sejam bastante semelhantes em termos demográficos, diferem na questão espinhosa da namorada.

    Os autodenominados machos "beta" do 4chan estão encurralados nessa ideologia, odiando suas contrapartes, cuja diferença crucial é uma disposição, como a dos beatniks do passado, para rejeitar a "divisão binária de gêneros" e viver como bem entendem.

    Em vez de enxergar nisso uma razão para desprezar ainda mais os Anons e sua misoginia, a esquerda deveria tomar os Anons/deploráveis como um fracasso seu, uma deformação tremenda dos argumentos da própria esquerda, que teve como resultado alienar o grupo de pessoas que mais poderia ser ajudado por suas ideias, senão o que mais poderia ser convencido.

    Para os deploráveis campanha, Hillary usou esse termo para se referir aos eleitores de Trump], cuja queixa central é de fragilidade masculina, orgulho e fracasso, negar sua identidade de homem é negar sua queixa. É um grupo que se define por sua falta de poder, por estar encurralado na derrota.

    Para aceitar o ponto de vista da esquerda, teriam que admitir que o problema central está em suas cabeças. Ou seja, o ponto de vista da esquerda de que a diferença sexual é uma ilusão é exatamente o que não querem ouvir. Eles não querem ouvir que se encurralaram nos porões das casas de suas mães.

    A esquerda faz mais do que simplesmente declarar que o ponto de vista contrário está errado: a ideia radical de o sexo/gênero ser uma ilusão nega a existência do ponto de vista dos deploráveis. Para a esquerda, uma queixa derivada da condição de ser homem é vazia e se situa fora do âmbito do que ela reconhece como sendo a verdade.

    A ironia é que a ideia radical de a diferença sexual ser ilusão visa resolver o problema dos deploráveis. Ela foi criada para libertar os oprimidos pelo conceito de diferença sexual, desfazendo-o como mera nuvem de puras ideias.

    Para esses homens destituídos de poder, é como se a esquerda lidasse com o problema deles à la Orwell: "Seu problema não existe! Problema resolvido!".

    Aqui, a noção da diferença sexual enquanto ilusão não está cumprindo a tarefa para a qual foi criada. Ironicamente, ela acaba convencendo homens alienados de que o sexo/gênero os marcou como uma espécie singular de "outsiders"/fracassados, que não podem ser aceitos nem sequer nas coalizões multiculturais que se definem pela capacidade de aceitação.

    Desse modo, o ódio virulento do 4chan aos "safe spaces" em que gêneros são fluidos, embora não seja justificado, pelo menos faz algum sentido perverso, um sentido envolto em orgulho masculino ferido.

    Hannah Arendt, em seu livro "As Origens do Totalitarismo", pontua que o resultado inevitável de uma sociedade erguida em torno do acúmulo interminável de riqueza da classe média é um homem reduzido "à condição de peça insignificante na máquina de acumular poder, livre para consolar-se, se quiser, com pensamentos sublimes a respeito do destino final dessa máquina, construída de forma a ser capaz de devorar o mundo, se simplesmente seguir a lei que lhe é inerente".

    Essa imagem do homem como peça impotente no imenso rolo compressor da sociedade que avança, gira e estraçalha todos que se põem no caminho não é nova.

    Como observaram tanto Bernie Sanders como o filósofo Slavoj Zizek depois de Sanders perder as primárias, esquerda e direita são, em certo sentido, ideias ultrapassadas.

    A nova divisão na política é entre aqueles que são favoráveis à hegemonia global atual e os que são contra. Como os heróis de Hollywood, esquerda e direita vêm competindo para se tornarem esse novo partido radical contrário ao "status quo".

    Por ora, a direita vem vencendo na Europa e nos EUA, deixando antever, como Arendt previu, que a impotência gerada por sistemas burgueses de exploração capitalista pode, de novo, implodir em totalitarismo de extrema direita.

    Ocorre que a mensagem antifeminista da direita oferece um alívio temporário ("você está agindo de modo poderoso, retirando-se para os videogames e a internet"), mas, a longo prazo, causa mais insatisfação, como quando se coça o lugar de uma picada de mosquito. A única solução que a direita tem a oferecer é "continuem a se isolar".

    Igualmente, Trump e a angústia cruel e zombadora que representa não são solução genuína para a impotência do eleitor. São apenas a solução mais próxima e fácil.

    Um adulto não emudece e fica em choque quando uma criança tem um ataque de raiva. Tampouco vemos essas explosões emocionais como destituídas de sentido.

    A esquerda não deve ficar paralisada e em choque diante dos deploráveis. Deve enxergá-los como sintoma de um problema maior, que só ela pode resolver.

    DALE BERAN, 36, escritor americano, é autor de histórias em quadrinhos. O texto aqui publicado foi originalmente veiculado na plataforma Medium.

    CLARA ALLAIN é tradutora.

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