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    Romance de Charles Dickens ganha nova edição no Brasil após 60 anos

    CHARLES DICKENS
    tradução MARILUCE FILIZOLA CARNEIRO PESSOA
    ilustração CAMILE SPROESSER

    30/04/2017 02h00

    SOBRE O TEXTO O trecho foi retirado do romance "A Vida e as Aventuras de Nicholas Nickleby" (1838-39), de Charles Dickens. O livro conta a história da família Nickleby, que chega a Londres após a morte do patriarca, profundamente endividado, e acaba às voltas com um parente rico de caráter duvidoso, empregos ultrajantes e abusos. A última edição brasileira da obra data de 1957, e a nova será lançada pela editora Amarilys em maio.

    Camila Sproesser
    Ilustração de Camila Sproesser para Ilustríssima
    Ilustração de Camila Sproesser

    – Bem, senhora – disse Ralph, impaciente –, está me dizendo que os credores tomaram conta de tudo e não restou nada para a senhora?

    – Nada – respondeu a Sra. Nickleby.

    – E que gastou o que lhe restava para vir aqui para Londres, para ver o que eu poderia fazer pela senhora? – continuou Ralph.

    – Eu tinha esperanças – titubeou a Sra. Nickleby – de que o senhor pudesse fazer alguma coisa pelos filhos de seu irmão. Foi seu último desejo que eu apelasse para o senhor em favor deles.

    – Não sei por que – resmungou Ralph, andando de um lado para o outro do cômodo –, mas quando um homem morre sem bens próprios, parece sempre achar que tem o direito de dispor dos bens dos outros. O que sua filha sabe fazer, senhora?

    – Kate foi bem educada – soluçou a Sra. Nickleby. – Diga a seu tio, meu amor, o que aprendeu de francês e em atividades extras.

    A pobrezinha ia dizer alguma coisa, quando o tio a interrompeu, muito sem cerimônia.

    – Precisamos colocá-la num internato para que trabalhe como aprendiz – disse Ralph. – Espero que não tenha sido educada com delicadeza demais para isso.

    – Não, tio – respondeu a moça chorando. – Tentarei fazer qualquer coisa que me proporcione casa e comida.

    – Bom, bom – disse Ralph, um pouco mais maleável, seja pela beleza da sobrinha, seja por sua tristeza (com esforço, podemos considerar esta última). – Você precisa tentar, e, se for duro demais, talvez trabalhos de costura ou de bordado sejam mais leves. E você, rapaz, já fez alguma coisa? (voltando-se para o sobrinho.)

    – Não – respondeu Nicholas, bruscamente.

    – Não, foi o que pensei! – disse Ralph. – Essa foi a maneira como o meu irmão educou os filhos, senhora.

    – Nicholas completou recentemente a educação que seu pobre pai pôde lhe proporcionar – respondeu a Sra. Nickleby –, e ele estava pensando em...

    – Em prepará-lo para alguma coisa, algum dia – disse Ralph. – A velha história; sempre pensando e nunca fazendo. Se o meu irmão tivesse sido um homem ativo e prudente, poderia ter deixado a senhora rica: e se tivesse preparado o filho para o mundo, como fez o meu pai, quando eu era ainda um ano e meio mais novo do que esse menino, ele estaria numa situação de poder ajudá-la, em vez de ser um peso para a senhora, e aumentar o seu infortúnio. O meu irmão era um homem imprudente, inconsequente, Sra. Nickleby, e ninguém, tenho certeza, tem mais razão de achar isso do que a senhora.

    Esse apelo deixou a viúva pensando que talvez tivesse dado melhor destino às suas mil libras, e então começou a refletir como seria bom ter esse dinheiro agora; esses pensamentos desanimadores fizeram suas lágrimas correrem mais rápido, e o excesso de infortúnios fez com que ela (sendo uma mulher bem-intencionada, mas também fraca) primeiro deplorasse sua má sorte e depois observasse, entre muitos soluços, que certamente fora escrava do pobre Nicholas, e que muitas vezes dissera a ele que deveria ter feito um casamento melhor (e na verdade ela dissera, muito frequentemente), e que ela nunca soube, enquanto ele estava vivo, como o dinheiro era aplicado, mas que se tivesse sido confiado a ela, a família poderia estar então numa melhor situação financeira; e outras lembranças amargas, comuns à maioria das mulheres casadas, quer durante o casamento, quer depois dele, ou em ambos os períodos. A Sra. Nickleby concluiu lamentando que o querido falecido nunca se dignara aceitar seus conselhos, salvo em uma ocasião; o que era uma declaração estritamente verdadeira, pois, apenas uma vez, ele agira por sugestão sua e havia, como consequência, se arruinado.

    O Sr. Ralph Nickleby ouvia isso com um meio sorriso; e quando a viúva terminou, ele calmamente retomou o assunto no ponto em que havia deixado, antes desse desabafo.

    – Está pretendendo trabalhar, rapaz? – perguntou ele, franzindo o cenho para o sobrinho.

    – Naturalmente – respondeu Nicholas com altivez.

    – Então veja aqui, rapaz – disse o tio. – Isso atraiu o meu olhar hoje pela manhã, e você pode dar graças aos céus por isso.

    Com esse preâmbulo, o Sr. Ralph Nickleby pegou um jornal em seu bolso e depois de desdobrá-lo e procurar entre os anúncios, leu como se segue:

    – "EDUCAÇÃO. – Na Academia do Sr. Wackford Squeers, Dotheboys Hall, no aprazível vilarejo de Dotheboys, próximo a Greta Bridge, em Yorkshire, jovens recebem alojamento, roupas, livros e dinheiro para pequenas despesas, têm as necessidades atendidas, são instruídos em todas as línguas, vivas e mortas, matemática, ortografia, geometria, astronomia, trigonometria, no uso de cartas geográficas, álgebra, esgrima (se solicitada), redação, aritmética, fortificação e em todos os ramos da literatura clássica. Condições: vinte guinéus per annum. Sem extraordinários, sem férias e com uma alimentação inigualável. O Sr. Squeers está na cidade e atende diariamente, das treze às catorze horas, na hospedaria Cabeça do Sarraceno, em Snow Hill. N.B. Precisa-se de um assistente qualificado. Salário anual, 5 libras. Preferencialmente, um Mestre em Ciências Humanas."

    – Aí está! – disse Ralph, dobrando o jornal de novo. – Se ele assumir essa posição, a fortuna dele estará garantida.

    – Mas ele não é um mestre – disse a Sra. Nickleby.

    – Isso – observou Ralph –, eu creio, pode ser contornado.

    – Mas o salário é tão baixo, e o lugar, tão longe, tio! – disse Kate, hesitante.

    – Não diga nada, Kate, meu amor – interferiu a Sra. Nickleby. – Seu tio sabe o que é melhor.

    – Eu insisto – repetiu Ralph, asperamente –, se ele assumir essa posição, a fortuna dele estará garantida. Se não gostar disso, então que procure um trabalho por si mesmo. Sem amigos, sem dinheiro e sem recomendação, nem conhecimento de negócio de tipo algum, deixe que encontre um emprego honesto em Londres, que dê para comprar sapatos de couro, que eu dou a ele mil libras. Pelo menos – disse o Sr. Ralph Nickleby, refreando-se –, eu daria, se tivesse.

    CAMILE SPROESSER, 31, é artista plástica

    CHARLES DICKENS (1812-1870) foi um escritor britânico. Assinou livros como "Oliver Twist" (1838), "Um Conto de Natal" (1843) e "Grandes Esperanças" (1861)

    MARILUCE FILIZOLA CARNEIRO PESSOA, 72, é tradutora

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