RESUMO Repórter lembra o Watergate, episódio em que o então presidente dos EUA Richard Nixon (1969-74) foi acuado por gravações que mostravam que ele atuara para barrar investigação do FBI. Imbróglio, que culminaria na renúncia do republicano, guarda semelhanças e diferenças com o dos áudios do presidente Michel Temer.
Mike Lien - 09.ago.1974/"The New York Times" | ||
O presidente americano Richard Nixon ao anunciar sua renúncia à presidência na Casa Branca em Washington (EUA) observado pela filha Julie Nixon Eisenhower, em 1974 |
O áudio que forçou Richard Nixon (1913-1994) a renunciar ao cargo de presidente dos Estados Unidos em 1974 ficou conhecido como "the smoking gun", a arma fumegante. Era como se o titular da Casa Branca fosse surpreendido com um revólver ainda quente na mão, logo após ter assassinado alguém. Não chegava a tanto, mas a gravação foi considerada prova conclusiva de que o republicano havia incorrido no crime de obstrução de Justiça.
Na conversa incriminadora, Nixon concorda com um plano para impedir que o FBI (a polícia federal dos EUA) continuasse investigando a invasão da sede do Partido Democrata no prédio Watergate, em Washington. A Presidência usaria como desculpa motivos de segurança nacional.
O diálogo se dá entre o então presidente e seu chefe de gabinete, H.R. Haldeman. Este sugere que o vice-diretor da CIA (a agência de inteligência) ligue para o diretor do FBI e diga: "Fique fora disso, não queremos que você prossiga [com a investigação sobre Watergate]".
Nixon não só aprova a ideia de Haldeman, dizendo "ahã", "tá bom" e "isso, ótimo" várias vezes, como acrescenta detalhes à proposta: "Diga que eles devem ligar para o FBI e falar que, pelo país, não queremos que prossigam com o caso, e ponto final".
Notoriamente paranoico, Nixon cavou a própria cova. Ele havia mandado instalar sete gravadores secretos no Salão Oval da Casa Branca, de onde despacha o presidente dos EUA. Além disso, gravava todas as conversas telefônicas. Queria tudo registrado para o caso de alguém desdizê-lo.
As medidas não paravam por aí. Depois do escândalo conhecido como Pentagon Papers, em 1971 –o vazamento para o jornal "The New York Times" de estudo confidencial do Departamento de Defesa que atestava mentiras sistemáticas do governo na Guerra do Vietnã–, Nixon montou uma equipe ultrassecreta chamada, sugestivamente, de "encanadores da Casa Branca".
A missão dos encanadores clandestinos era evitar vazamentos para a imprensa e espionar opositores e inimigos do presidente.
Quando invadiram a sede dos democratas, no dia 17 de junho de 1972, os encanadores queriam reinstalar grampos e copiar documentos do partido rival, em pleno ano de disputa pela Presidência.
Os cinco arrombadores, contudo, acabaram presos. Logo foram rastreados pagamentos que os ligavam à Casa Branca. A imprensa e o Congresso começaram a investigar. Parafraseando declaração do ministro Teori Zavascki (1948-2017) sobre a Lava Jato, puxaram uma pena e veio a galinha inteira.
TEMER
O áudio da conversa do presidente Michel Temer (PMDB) com o empresário Joesley Batista, em reunião secreta em março deste ano, não é uma "arma fumegante". Seu trecho mais polêmico, em que o peemedebista supostamente dá aval para a compra do silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), não é conclusivo.
Joesley diz: "Eu tô de bem com Eduardo".
Temer responde: "Tem que manter isso, viu?".
O presidente do Brasil é mais "mineiro" do que Nixon. Ele se vale mais de "tá bom, tá bom" e "isso" do que de frases propositivas.
Além disso, segundo consta, o peemedebista não instalou um sistema secreto de gravações no Palácio do Jaburu. A captação do áudio foi feita com um gravador amador de Joesley e está cheia de trechos inaudíveis. Por esses motivos, peritos criminais debatem se o arquivo de áudio passou por algum tipo de edição.
Como no caso que levou à derrocada do presidente dos EUA, contudo, o contexto é importante.
Durante 25 meses, Nixon e sua equipe se enlamearam tentando encobrir o arrombamento no prédio Watergate.
A certa altura do caso, um assessor deixou escapar que a Presidência gravava todas as conversas na Casa Branca, e o Congresso passou a exigir as fitas. Nixon tentou evitar que seus diálogos fossem eviscerados em praça pública.
Primeiro, sugeriu que um senador democrata, John Stennis (1901-95), fosse designado para ouvir as gravações e transcrevesse apenas o conteúdo que, na opinião dele, não oferecesse riscos à segurança nacional. O procurador especial do caso, Archibald Cox (1912-2004), não engoliu. Stennis era famoso por ter problemas de audição. Na época, a revista "Time" publicou foto do senador com a mão no ouvido e a legenda: "Precisa-se de assistência técnica".
Depois, em uma das transcrições que Nixon se dispôs a ceder ao procurador especial, haviam desaparecido 18 minutos e meio. A secretária do presidente, Rose Mary Woods, disse que, sem querer, apagara um pedaço da fita. Para mostrar como o erro fora cometido, fez uma foto na qual atendia a um telefonema ao mesmo tempo em que pisava no pedal que acionava as gravações.
Rápidos, comentaristas apelidaram a pose insólita de "alongamento de Rose Mary". Até hoje o conteúdo daqueles 18 minutos e meio motiva especulações.
EXPLETIVO
Em abril de 1974, após meses de tergiversações, Nixon anunciou que divulgaria 1.200 páginas de transcrições de conversas. Admitiu que as conversas iriam constrangê-lo, mas ponderou que provariam sua inocência.
Publicadas na forma de livro, as transcrições se transformaram em best-seller instantâneo, embora muitos trechos tivessem sido suprimidos. Nixon censurou todos os palavrões que saíam de sua boca e os substituiu pela expressão "expletivo deletado", que ficou famosa.
Mesmo com toda essa maquiagem, a imagem que se formou do presidente dos EUA era horrível. Um Nixon raivoso e boca suja debatia como levantar dinheiro para pagar um dos encanadores que chantageavam o governo, como evitar acusações de perjúrio ou obstrução de Justiça e como usar a desculpa da segurança nacional.
Não havia evidência cabal de que Nixon cometera algum crime, de que sabia de tudo desde o começo e de que agira para impedir as investigações. As conversas pouco republicanas, no entanto, pioravam ainda mais a percepção do público a seu respeito. Em frente à Casa Branca, manifestantes protestavam com cartazes criativos: "Impeach o (expletivo deletado)".
A exemplo de Nixon, Temer viu sua imagem se deteriorar após serem veiculados o áudio de sua conversa com Joesley e o conjunto de depoimentos dos delatores.
Na gravação, o presidente chama de idiota o ex-ministro Marcelo Calero (Cultura), que acusou o ex-ministro Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo) de pressioná-lo para liberar obra de um prédio na Bahia no qual tinha comprado apartamento. Para Temer, essa tentativa de obter vantagens financeiras foi uma "bobagem sem consequência nenhuma".
Em outro momento, Joesley afirma ter um plano para destituir um procurador da Lava Jato que investigava a JBS e conta que estava "segurando" dois juízes. "Ótimo, ótimo", é a resposta de Temer.
Adiante, o presidente instrui Joesley a recorrer ao deputado federal Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR), de sua "mais estrita confiança". Loures foi filmado posteriormente com uma mala de dinheiro.
No inquérito aberto a partir do acordo de delação, a Procuradoria-Geral da República apontou indícios de três crimes supostamente cometidos pelo peemedebista: obstrução de Justiça, corrupção passiva e organização criminosa.
A cada dia surgem novas informações comprometedoras para Temer. Ainda não há uma "arma fumegante", a prova irrefutável de que o presidente cometeu o crime de tentar comprar o silêncio de Eduardo Cunha, cuja delação poderia devastar o governo.
Mas talvez não seja necessário.
Se Nixon só caiu após ser obrigado pela Suprema Corte a divulgar a "arma fumegante", no dia 5 de agosto de 1974, sua queda já tinha se tornado inevitável alguns meses antes, quando a gravação com a evidência cabal do crime ainda não se tornara pública.
No momento em que ele publicou as transcrições de suas conversas e deixou expostas as engrenagens sujas do poder, sua presidência tornou-se indefensável.
Como escreveu o colunista William Safire no jornal "The New York Times", em abril de 1974, "as transcrições mostram que o homem no Salão Oval é culpado de conduta imprópria a um presidente".
"A fraqueza mostrada pelo presidente ao não assumir o controle da situação e não construir uma muralha entre a Presidência e o escândalo é imperdoável", escreveu o colunista há 43 anos.
Safire não era um propagador de "fake news" nem estava a serviço de mídias golpistas. Ele havia sido assessor de Richard Nixon durante anos, escrevendo os discursos do presidente.
PATRÍCIA CAMPOS MELLO, 42, é repórter especial da Folha.