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    Célebre nas artes plásticas, Nuno Ramos também é escritor premiado

    FERNANDO TADEU MORAES

    20/08/2017 02h00

    RESUMO O artista plástico Nuno Ramos lança no fim deste mês "Adeus, Cavalo", seu oitavo livro. Com uma obra literária prolífica e elogiada, ele começou a esboçar os primeiros textos na adolescência, abandonou a escrita por cerca de dez anos e voltou às letras nos anos 1990, quando a carreira em museus e galerias já se consolidava.

    Ele é autor de obras como "Fruto Estranho" e "Bandeira Branca", que causou polêmica na Bienal de 2010 devido aos três urubus vivos que mantinha em confinamento.

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    O artista plástico Nuno Ramos me recebe à porta de seu ateliê, um enorme galpão retangular localizado no bairro do Cambuci, na região central de São Paulo. O espaço, onde no passado funcionou uma gráfica, possui 600 m² de área, pé-direito que pode chegar aos 5 metros e um aspecto abandonado quando visto de fora.

    Sou conduzido por um corredor estreito, cujas paredes amparam caixas de papelão, estantes e objetos embalados. Um salão amplo e iluminado logo se descortina. Num canto, destacam-se da desordem geral os dois grandes troncos de árvore que integraram a instalação "Fruto Estranho", montada em 2010 no Museu de Arte Moderna do Rio.

    Nas paredes veem-se alguns dos quadros monumentais da série "Utopias", exposta na Estação Pinacoteca, em São Paulo, em 2015 –obras nas quais o artista mistura tinta, tecido, cordas, pelúcia e estruturas de alumínio que se projetam em direção ao espectador.

    Descansando no chão, uma tela de 2,75 m por 2 m recebe a ação ininterrupta de três ventiladores ligados em potência máxima. As grossíssimas camadas de tinta multicolorida precisam secar logo, ele explica, pois o quadro será exibido em uma mostra marcada para setembro, numa galeria do Rio.

    Sigo meu anfitrião em meio às obras novas e antigas, que formam um pequeno labirinto. Pelo caminho, latas de tinta, placas de madeira, pincéis, rolos de espuma, cartazes, livros, esboços de pinturas, um fogão utilizado para derreter vaselina.

    Ele indica, ao fundo, um sofá carcomido e manchado de tinta, onde nos sentamos para conversar sobre outro artista: o escritor Nuno Ramos.

    Conhecido sobretudo por sua prolífica carreira nas artes visuais , que já conta 35 anos, Ramos, 57, vem construindo nas duas últimas décadas uma obra literária tão múltipla quanto a que o consagrou em galerias e museus –composta de textos de prosa, ensaios e poesia– e apontada como uma das mais originais e relevantes da literatura brasileira contemporânea.

    No final deste mês, lança "Adeus, Cavalo" [Iluminuras, 76 págs., R$ 38, R$ 22 em e-book], seu oitavo livro. Nele, um ator, imerso em uma banheira, narra histórias delirantes a um jornalista e reflete sobre o ofício no palco, enquanto recebe as vozes do ator e dramaturgo Procópio Ferreira (1898-1979), do poeta italiano Giuseppe Ungaretti (1888-1970) e do músico Nelson Cavaquinho (1911-86).

    O compositor carioca, além de participar dos delírios do protagonista de "Adeus, Cavalo", é tema de um dos ensaios do livro que Ramos prepara para o início do ano que vem, que reunirá ainda textos sobre o pintor Jorge Guinle (1947-1987) e a cultura brasileira no século 20, entre outros assuntos.

    VAIVÉM

    Não se imagine, porém, que Ramos começou nas artes plásticas e, em determinado momento da vida, passou a se dedicar também às letras. Mais apropriado seria dizer que, depois de ter-se encontrado no trabalho com a matéria, pôde voltar a escrever, numa trajetória tortuosa marcada por crises de vocação e pela morte precoce do pai.

    Em 1974, aos 14 anos de idade, o artista teve uma experiência traumática e definidora. Tomava banho em casa, após voltar de uma partida de handebol. Na sala, seu pai, Vitor Ramos, um português que fugira da ditadura de António Salazar e se tornara professor de literatura francesa da USP, comemorava com amigos a Revolução dos Cravos, que havia ocorrido uma semana antes e derrubara o regime salazarista.

    Durante uma conversa telefônica com Antonio Candido (1918-2017), seu amigo e colega na USP, Vitor Ramos sofreu um súbito aneurisma cerebral e caiu fulminado no chão. Tinha 54 anos.

    O filho, que na época começava a se entusiasmar com a literatura e a esboçar os primeiros textos, tornou-se um leitor obsessivo. Aos 16 anos, mudou-se para a biblioteca do pai, em uma edícula nos fundos da casa, do lado de uma pitangueira. Passou a escrever contos e poemas diariamente.

    Com 18, ingressou no curso de filosofia da USP, no qual se formaria quatro anos depois.

    "Meu projeto era, de certa forma, edipiano", diz Ramos, que não raro emprega o léxico freudiano para se referir a si ou ao trabalho. "Esse percurso inicial se deu sob a regência da morte do meu pai, que era um intelectual uspiano e alguém que dizia não ter escrito o romance que gostaria. Herdei essa carga."

    A frustração, contudo, foi dupla. Pouco antes de terminar a faculdade, percebeu que não possuía a vocação de intelectual. "Para usar o título do ensaio do [filósofo francês Gérard] Lebrun [1930-99], 'A Paciência do Conceito', eu não tinha a paciência, no sentido etimológico, de recepção de tudo aquilo que tínhamos de ler."

    "Eu me sentia menos capaz que meus colegas, achava que eles entendiam tudo muito melhor do que eu –sensação, aliás, que guardo até hoje. Gosto de ler livros difíceis, mas certamente perco alguma coisa grave, especialmente o movimento geral da obra. Acabo me deixando levar por afluentes e perco o riozão."

    Embora ele afirme ter conseguido lidar bem com a decepção, o fato é que ela se somou àquilo que Ramos sentia em relação aos próprios textos. "Comecei a duvidar daquilo que estava escrevendo; isso foi muito duro."

    "Eu me lembro de não entender mais o que estava fazendo, de sentir as palavras saindo num fluxo vazio, como se tudo fosse abstrato demais", diz. Tampouco encontrou na literatura brasileira da época algo que o instigasse ou servisse de guia, fosse um autor, uma obra, um crítico ou um colega.

    "Nessa época, alguma coisa na potência das palavras me dominou, ao invés de eu dominá-las, e a saída para as artes plásticas, para o trabalho com a matéria, me deu um lugar onde eu pude começar de novo", recorda-se.

    Era o início dos anos 1980. Ramos começou a pintar e logo se juntou ao coletivo de artistas que ficou conhecido como Casa 7, "um grupo já bem constituído, com ideias próprias, em que aprendi demais", diz.

    A reconciliação com as letras demorou quase dez anos. Durante o hiato, que afirma ter sido um período de muito poucas leituras, Ramos se firmou como um dos artistas plásticos mais elogiados e promissores de sua geração.

    O retorno às letras, no começo dos anos 1990, foi como um estalo. "Quando recomecei a escrever, a sensação foi a de que não era 'eu', não era algo confessional, mas uma voz literária. Senti que o jogo da literatura estava sendo jogado. Escrever passou a fazer sentido."

    Ramos arrisca uma explicação: "Acho que só pude encarnar o escritor depois que me corporifiquei como artista plástico. Sinto que, como artista, eu precisava de um corpo, e as artes plásticas me deram isso. O artista plástico talvez seja o corpo que ofereci à voz do escritor".

    José Miguel Wisnik, ensaísta e professor de literatura brasileira da USP, resume essa peculiar trajetória artística. "Queria escrever e virou pintor, reconhecido como multiartista plástico surgiu escritor, e o escritor faz letras e canções aos borbotões", diz, em alusão à produção de Ramos como letrista .

    ESTREIA

    "Cujo", primeiro livro de Ramos, de 1993, é um resgate literário da experiência que ele vinha tendo no ateliê com a mistura e a transformação de materiais. "Pus todos juntos: água, alga, lama, numa poça vertical como uma escultura, costurada por seu próprio peso", escreve, na abertura.

    Destituído de enredo ou personagens, "Cujo" compila fragmentos e reflexões que não estabelecem relação direta entre si. "É um livro muito colado à atividade de artista plástico dele", diz o poeta e curador João Bandeira. "Parece ainda o livro de um artista plástico, embora em vários momentos já apareçam sinais de uma prosa, por assim dizer, literária."

    A obra seguinte, "Pão do Corvo", foi editada em 2001 (e será relançada no fim deste mês). "Esse é o primeiro livro do Nuno que é possível reconhecer propriamente como literatura. São narrativas esquisitas, ensaísticas, mas são, definitivamente, narrativas", diz Bandeira.

    Ainda se valendo das formas breves exploradas em "Cujo", Ramos mescla, nas 17 histórias de "Pão do Corvo", o esforço ficcional com a reflexão ensaística que iria desenvolver plenamente em "Ensaio Geral" , de 2007.

    Adeus, Cavalo
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    Neste, reuniu 22 ensaios sobre arte, canção, literatura e futebol, além de projetos de exposições e três escritos memorialistas.

    "Sua capacidade de entender certas especificidades da cultura brasileira –por exemplo, o lado mais sombrio do samba– é algo precioso para mim, que venho de outro país", diz o italiano Lorenzo Mammì, professor de filosofia da USP e curador de programação e eventos do Instituto Moreira Salles.

    Dentre os textos de "Ensaio Geral", João Bandeira destaca os que tratam de Paulinho da Viola e de Hélio Oiticica, os quais "se tornaram referências obrigatórias na fortuna crítica desses artistas".

    Em 2008, veio a lume "Ó", seu livro mais conhecido, no qual desfila uma miríade de assuntos, do surgimento da linguagem a mulheres nuas, passando por galinhas e hidrelétricas.

    José Pasta, professor de literatura da USP, escreve na orelha do volume: "[Os textos] não são contos, nem poemas em prosa, nem crônicas, nem ensaios, nem crítica, nem romance, nem autobiografia, sendo, no entanto, tudo isso e mais uma coisa incerta e não sabida, que o leitor nomeará".

    A ousadia formal de "Ó" valeu a Ramos, em 2009, um dos mais prestigiosos –e bem pagos– prêmios da literatura em português, o Portugal Telecom (hoje, Oceanos) de melhor livro do ano, deixando para trás autores consagrados, como o português António Lobo Antunes e João Gilberto Noll (1946-2017).

    Repetiu a dose em 2012, com "Junco", vencedor do Portugal Telecom na categoria poesia. Os poemas do volume –abstratos, difíceis e de dicção cabralina– foram escritos ao longo de 14 anos. "Na literatura, tenho um superego muito mais formado do que nas artes plásticas", diz, para justificar seu processo de composição, que costuma ser lento e marcado pela reescrita obsessiva.

    Ramos diz que os dois prêmios foram muito importantes, pois lhe deram definitivamente o lugar de escritor –que vai além do de artista plástico que ocasionalmente escreve livros. "Mas, embora tenham me trazido o reconhecimento da crítica, não me ajudaram a constituir um público", afirma.

    VENDAS FRACAS

    Ele estima ter vendido, contando todos os seus livros, cerca de 15 mil exemplares. "É muito pouco, e não foi por falta de divulgação da mídia."

    Para Ramos, as vendas tímidas refletem a situação geral de descrédito da literatura no país –o experimentalismo de sua escrita possivelmente contribui também para tal performance comercial. "Uma das grandes astúcias machadianas é a invenção do 'caro leitor' nos romances. Sempre me perguntei que leitor era esse. Eram pouquíssimos, na verdade, quase não existiam. Essa situação não se modificou substancialmente no Brasil, onde até hoje a literatura não formou propriamente um público."

    Entre "Ó" e "Junco", Ramos lançou "O Mau Vidraceiro", em 2011, um livro de histórias que se aproximam do conto, numa tentativa de retomar sua vertente mais narrativa. Com "Sermões" , última obra publicada (2015), Ramos apostou numa prosa poética convulsiva e delirante, na qual narra a vida de um professor de filosofia obcecado por sexo, que faz sermões desatinados enquanto caminha pela praia.

    Enquanto escrevia o livro, teve uma experiência rara, que descreve como a sensação de que a voz do personagem emergia de dentro de si. "Aquela impressão de ter conseguido subir na prancha e pegar a onda."

    Sobre o novo trabalho, diz: "Tentei forjar uma mitologia melancólica, escrita do ponto de vista da perda, de como eu gostaria de escrever ou fazer arte. Tentei descrever isso num Rio de Janeiro arquetípico e com personagens reais, mas biograficamente imprecisos e mitificados".

    "A obra literária de Nuno Ramos é profundamente inquieta", diz Gustavo Silveira Ribeiro, professor de literatura brasileira da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). "Desliza entre gêneros, frequenta múltiplos temas e experimenta linguagens o tempo todo. De livro para livro, desde o primeiro, ela se faz e refaz sempre diferente de si mesma: não há constância, e essa é, talvez, sua principal característica, a aposta no desvio e na diferença."

    João Bandeira vê o que chama de "indisciplina formal" do artista com relação aos grandes gêneros literários. "Seu livro de poesias, por exemplo, parece ser um único poema que se repete a cada página. Nos textos em que você espera uma narrativa, aquilo se desdobra num ensaio; nos textos propriamente ensaísticos, ele se vale de uma linguagem literária, alusiva, metafórica, repleta de imagens."

    O hibridismo, também recorrente na produção visual, é apontado por muitos como sintoma de originalidade, mas para Ramos é fonte de angústia e insegurança. "Meu medo é que essa característica, no fundo, seja uma enorme forma brasileira de irresponsabilidade criativa, que leve a minha obra a soar como um infinito tatear em busca de algo nunca encontrado. A frase terrível para mim é aquela que uma vez me disseram: 'Fez tanta coisa e não vai ficar nada'."

    DESCONEXÃO

    Um dos temas mais explorados por Ramos em sua obra literária é o da desconexão entre matéria e linguagem, "da falsidade da linguagem porque ela não tem correspondência material com o que diz", afirma.

    Em "Ó", por exemplo, imagina a possibilidade de "estudar as árvores numa língua feita de árvores, a terra numa língua feita de terra", de descrever "uma paisagem com a quantidade exata de materiais e de elementos que a compõem".

    "Os narradores de seus livros", diz João Bandeira, "demonstram uma insatisfação melancólica, uma irritação, justamente porque, na visão deles, a linguagem mata o que há de verdadeiro, de importante, de vital nas coisas –ela disciplina, amarra, nomeia. Nos 'Sermões', o narrador a todo momento diz que a palavra vai matar as coisas, mas, ao mesmo tempo, é alguém condenado a tratar dessas mesmas coisas por meio da palavra."

    Para Luís Augusto Fischer, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o modo como Ramos desenvolve essa questão encerra um paradoxo.

    "Apesar de serem recorrentes em seus livros declarações de dúvida acerca do poder da palavra e de sua capacidade enunciativa, o saldo sugere bem o oposto. Os textos costumam ter um aspecto geral de triunfo sobre essa dúvida; são uma vitória, um passeio sobre os impasses e as imagens de derrota que povoam a superfície dos enunciados, mas que não são sua alma."

    "Vejo em Nuno Ramos", prossegue Fischer, "um visível prazer, gozo mesmo, em apontar para impasses na relação entre texto e mundo, linguagem e coisa, mas, à maneira dos poetas, sempre mediante jogos de palavras que se oferecem como elementos para a admiração do leitor, como a mostrar que o impasse existe, mas que o escritor merece o crédito por havê-lo dito de modo sutil."

    Embora Ramos procure manter a atividade de escritor separada da de artista plástico e ambas as carreiras corram em paralelo, essa contínua investigação dos encontros e desencontros do mundo da palavra com o mundo da matéria evidencia quanto os dois artistas, no fundo, estão imbricados.

    "De um lado, sua literatura está coalhada de referências a coisas materiais, numa escala vertiginosa, que vai dos fluidos corporais às manifestações telúricas, como lava e terremotos", diz João Bandeira. "De outro, seu trabalho de artes plásticas está repleto de discurso verbal, das coisas mais óbvias, como letras confeccionadas com vaselina, textos incrustados em paredes e vídeos de pessoas declamando, até trabalhos que se dão de maneira totalmente verbal."

    Bandeira cita a obra "Balada" –um livro de 896 páginas em branco atravessado por uma bala de revólver– como um exemplo de criação em que o escritor e o artista plástico se abraçam. "Aquilo é um trabalho de artes plásticas incrível e ao mesmo tempo vive nas beiradas do continente da literatura."

    A impressão de Mammì é de que Ramos apenas se vale de meios diferentes para executar uma mesma e única obra. "Às vezes ele é pintor, às vezes faz instalações, às vezes faz performances e às vezes escreve um livro. É diferente, por exemplo, de um Chico Buarque, que num período é só escritor, no outro é só músico e compositor."

    José Miguel Wisnik enumera as facetas artísticas que identifica em Ramos: "Pintor, desenhista, escultor, ficcionista, poeta, ensaísta e cancionista, com incursões pelo vídeo e pela performance, tudo isso afluindo para suas instalações".

    "Mas não se trata", adverte, "de uma cascata de personas artísticas estilhaçadas em heterônimos. Seu campo é tudo, a base é uma só."

    À sua maneira –como uma foto em negativo–, Ramos diz o mesmo. "Acho que não sou nem poeta, nem ensaísta, nem escritor, nem letrista, nem artista plástico... Quer dizer, eu sou, mas sou não sendo."

    FERNANDO TADEU MORAES, 32, é jornalista da Folha.

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