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    Destaque na Europa, português renova clássicos com teatro de apelo popular

    GONÇALO FROTA

    01/09/2017 06h00

    RESUMO O dramaturgo e diretor português Tiago Rodrigues, 40, é hoje um dos nomes de proa da cena europeia. Conhecido por adaptações lúdicas do cânone literário e dramático, ele é saudado pela crítica por conciliar voos intelectuais elevados e forma acessível. Sua obra insiste em apagar a fronteira entre realidade e ficção.

    Quando Cândida começou a perder a visão e foi avisada pelo médico de que quanto mais lesse, mais veloz seria esse processo, pediu ao neto, o ator, dramaturgo e diretor teatral português Tiago Rodrigues, 40, para escolher um livro que ela pudesse memorizar e carregar consigo o tempo todo.

    Esse pedido se tornou quase um tormento, uma missão terrível: a responsabilidade de escolher uma só obra que passaria a ser o único contato real e cotidiano de alguém com toda a literatura jamais escrita.

    "By Heart", peça que Rodrigues estreou em 2013, parte desse episódio para se construir a partir de uma seleta de textos e relatos sobre a relação entre a literatura e a memória –de George Steiner, Boris Pasternak (1890-1960), Ray Bradbury (1920-2012) ou William Shakespeare (1564-1616), cujos sonetos o lisboeta findou por recomendar à avó–, atravessada por um espantoso potencial de resistência.

    Pode-se roubar muita coisa a um homem ou a uma mulher, mas dificilmente aquilo que cada um decide manter vivo dentro de si. Daí "By Heart", ou seja, saber de cor.

    Criado em parte para celebrar os dez anos de seu grupo, o Mundo Perfeito, "By Heart" projetou-o em definitivo para além das fronteiras lusas. Hoje, ele é um dos mais destacados diretores da cena europeia.

    As turnês de seus trabalhos cruzam o continente, com produção bancada por instituições prestigiosas como o Festival de Avignon, uma das mais importantes mostras de teatro do mundo, e o Kunstenfestivaldesarts, de Bruxelas.

    Em "By Heart", não está clara a distinção entre os momentos em que Rodrigues se serve estritamente de sua história e aqueles em que tece uma ficção a partir de fatos biográficos. Pouco importa.

    É justamente a fronteira porosa entre os dois mundos que leva a atriz Isabel Abreu –ligada ao lisboeta desde o solo "Carta de Uma Empregada do Hotel Lutécia à sua Filha", de 2010– a falar de sua escrita como caminhando cada vez mais no sentido de "uma irrealidade real ou uma real irrealidade".

    "No trajeto dele, tem ficado clara essa poesia sobre o real e a fantasia, em que não percebemos o que é real ou imaginação, e que ele tem apurado nos últimos textos", diz ela.

    O aprimoramento dessa voz narrativa e dramatúrgica é notado pelo dramaturgo, crítico e professor Jorge Louraço Figueira, para quem suas peças foram avançando na maturação de "um talento invulgar para conhecer, ler, memorizar coisas, lugares e pessoas, e depois reescrever o nosso tempo em cena".

    AVIGNON

    "Sopro", a criação mais recente, estreou em julho passado em Avignon. Tratou-se da segunda participação do autor no evento e da primeira vez que um artista português apresentou na cidade francesa uma obra encomendada pelo próprio festival.

    A proposta partiu da diretora de programação, Agnès Troly, que descobriu o teatro de Tiago com "By Heart". O nome do português lhe era quase desconhecido em 2014, quando a montagem passou pelo Théâtre de la Bastille, um dos mais fervilhantes palcos parisienses. "No fim, pensei que devia me encontrar com ele para dizer o quanto havia ficado emocionada", lembra.

    O mesmo se deu com Brigitte Salino, jornalista do "Le Monde": "Fiquei tão seduzida que pedi para me encontrar com o Tiago, contrariando meus hábitos".

    Troly, a programadora de Avignon, acabou por não procurar o autor. Faltavam-lhe palavras: "Queria guardar aquilo para mim, sonhar, refletir. É um espetáculo inteligente, que nos coloca diante de valores humanistas. O que ele faz é muito sofisticado em termos de pensamento, mas usa uma forma simples, que pode tocar um público vasto".

    Um par de meses mais tarde, ela viajaria até Lisboa para assistir à estreia de "Antônio e Cleópatra". Àquela altura, o prolífico artista acabava de ser nomeado diretor do Teatro Nacional Dona Maria 2ª, posto habitualmente reservado a figuras consagradas, não a alguém em plena afirmação criativa.

    Aos 37 anos, Tiago tinha sob seus auspícios uma das salas mais importantes do teatro português. Encantada pela releitura shakespeariana operada por Rodrigues, que deixa o texto nas mãos de dois coreógrafos e bailarinos com estofo de atores, Troly convidaria o português a se apresentar pela primeira vez em Avignon, em 2015.

    Foi na preparação de um especial sobre essa edição do festival para a revista "Les Inrockuptibles" que o jornalista francês Hervé Pons travou contato com a obra de Rodrigues. Para entender do que se tratava, rumou para Montemor-o-Novo, a uma hora de Lisboa, para assistir a um ensaio de "Antônio e Cleópatra". "Fiquei abalado com a beleza do espetáculo –cenográfica, dos intérpretes e do texto", conta.

    Desde esse primeiro impacto, Pons passou a acompanhar as criações de Rodrigues –cuja presença crescente nos palcos franceses foi coroada em 2016 com o Prêmio da Crítica pela versão local da peça "Bovary". Ali, em torno da personagem homônima de Flaubert, o português finta, tal como em "Como Ela Morre" (a partir de "Anna Kariênina", de Tolstói), qualquer tentação de adaptação.

    "'Bovary' é o espetáculo em que eu talvez vá mais longe na relação com o texto enquanto patrimônio literário, com o teatro do ponto de vista do leitor, de alguém que quer fazer um teatro sobre aquilo que leu", analisa Rodrigues.

    TEATRO DO LEITOR

    Esse teatro arquitetado a partir de uma perspectiva de leitor é uma das três marcas fundamentais que ele identifica em sua carpintaria criativa. Leituras de clássicos da literatura ou do cânone dramatúrgico embasam boa parte de suas encenações recentes, inclusive "Sopro".

    Nesta fabulação a partir do percurso de Cristina Vidal, que trabalha há mais de 25 anos como "ponto" (sopradora de falas para atores esquecidos) no Dona Maria 2ª, as memórias da mulher se cruzam com textos de Tchékhov, Racine ou Molière.

    A esse gosto pelo diálogo com narrativas consagradas junta-se, segundo o autor, "uma escrita que manipula a realidade e o documento em favor da ficção, que parte de histórias reais para construir uma leitura ficcional da realidade".

    Tal traço se faz muito nítido em "Se Uma Janela se Abrisse" e em "Três Dedos abaixo do Joelho", este construído a partir dos relatórios dos censores que peneiravam o teatro levado à cena durante os anos da ditadura em Portugal (1926-74).

    A terceira característica do teatro rodriguiano (por ele mesmo) é a recorrência da perspetiva da heroína, a presença constante de uma figura nuclear feminina.

    Para além disso, chama a atenção a construção cada vez mais compartilhada com os atores. "O Tiago expõe o trabalho que está a desenvolver numa fase embrionária, ainda muito frágil, a fase que costumamos esconder porque é muito fácil de destruir", descreve a atriz Isabel Abreu.

    Ela compara o método à cronologia de uma gestação: "É como se fossem os primeiros três meses de gravidez, em que não se conta a ninguém sem saber se vai correr bem. [Mas com ele] Desde o primeiro dia ela é exposta e questionada, muitas vezes de forma violenta".

    DIVERTIMENTO

    Esse processo também fascina Hervé Pons, que fala de Rodrigues como "um artista que constrói verdadeiramente uma obra, no sentido de que há correspondências que se estabelecem entre os diferentes trabalhos, por diferentes que sejam entre si".

    O jornalista identifica como perene "um certo arrebatamento, no sentido da joie [alegria] pasoliniana, do divertimento, do prazer em estar no teatro, em partilhar uma história, em perguntar-se como contá-la e, como diria Brecht, em fazer dos espetáculos uma espécie de celebração do pensamento".

    O francês coloca Rodrigues "no nível de outros grandes encenadores europeus, como [o italiano] Romeo Castellucci, [o suíço] Christoph Marthaler ou [o alemão] Thomas Ostermeier", ressalvando que as linguagens são tão distintas que não se pode, a rigor, compará-las.

    As grandes ascendências sobre o criador português, no entanto, são outras. "Fui influenciado sobretudo por pessoas com quem tive contato direto", diz Tiago. "Sou muito mais permeável na sala de ensaios do que na plateia. Ainda hoje, quando estou a trabalhar, reconheço mecanismos e estratégias que roubei a artistas como [o conterrâneo] Jorge Silva Melo, [a trupe belga] tg STAN, [o libanês] Rabih Mroué e [o britânico] Tim Etchells."

    Só que o roubo é transformado em matéria pessoal. "Pessoal, concreta, humilde no sentido de que não procura fazer uma obra grandiosa, mas sim dizer aquilo que lhe parece vital, aqui e agora, com doçura", defende Brigitte Salino.

    Agnès Troly faz coro. "Precisamos de palavras tão clarividentes e reconfortantes ao mesmo tempo."

    Palavras que, com o pensamento no Brasil (onde ele mostrou seu trabalho em 2011 e 2013), Rodrigues prefere reduzir às quatro que tem repetido em sua página no Facebook: "Fora Temer, diretas já".

    GONÇALO FROTA, 40, jornalista português, escreve no jornal "Público" sobre música, teatro e dança.

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