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    Judeu vê filmes nazistas para testar convicções sobre liberdade de discurso

    MICHEL LAUB

    18/11/2017 06h00

    Divulgação
    Cena do filme "O Triunfo da Vontade", da alemã Leni Riefenstahl (1935)

    RESUMO Para testar suas convicções sobre liberdade de discurso, autor judeu passa uma semana assistindo a filmes nazistas dos anos 1930 e 1940. Ao final do exercício, conclui que meios-termos dão espaço a casuísmos arbitrários. Sua proposta é aprender a lidar melhor com o ultraje e aderir a uma liberdade radical.

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    Em suas memórias sobre a "fatwa", decreto religioso que o condenou à morte por um romance supostamente blasfemo contra o Islã, Salman Rushdie chamou os dez anos em que precisou viver escondido de "batalha entre a mente literal e a mente irônica".

    É uma boa definição: o contrário das certezas do fanatismo seria um recurso cuja essência —dizer algo diferente do que parece estar sendo dito— é um convite à nuance, à dúvida que faz avançarem inteligência e sensibilidade.

    Seria tentador usar esse exemplo para ridicularizar quem se indignou com a programação recente de instituições culturais no país —evangélicos, um ex-ator pornô e senhoras de Santana disfarçadas de liberais.

    Afinal, ver estímulo à pedofilia num quadro que traz a frase "criança viada" (Santander Cultural/Porto Alegre), ou um ato sexual numa menina acompanhada da mãe que toca o pé de um homem nu cercado de outras pessoas num museu (MAM-SP), entre tantos outros exemplos, é apenas entender as coisas por um valor de face adaptado à estupidez do observador.

    Mais interessante é levar o caso a sério em seus próprios termos. Um dos subtextos dos protestos reafirma uma verdade que andava esquecida: a de que algumas das batalhas centrais na determinação da mentalidade de uma época estão, sim, no campo simbólico da representação estética. Se a arte voltou a ser perigosa, é porque voltou a ser relevante.

    LITERALIDADE

    Deixando de lado injunções eleitorais, como um eventual desvio estratégico de foco em relação ao fracasso criminoso do governo Michel Temer (PMDB), há três dimensões envolvidas na briga: a da experiência pessoal, a da cultura e a da própria arte.

    A primeira traz o risco de certo reducionismo identitário, como se não fosse possível formar juízos sobre o caráter ofensivo de uma obra sem ter origem e valores semelhantes aos de quem se vê agredido por ela.

    Mas, para efeito de argumento, resolvi aceitar a premissa: lembrar que o rótulo de obscenidade —a noção de que algo não deveria estar onde está— transcende a nudez e outros temas domesticados entre a elite pensante.

    Só mudando o objeto da análise, portanto, é que testo de verdade minhas convicções sobre liberdade de discurso e sua veiculação. Como judeu, um modo de chegar a isso foi passar uma semana assistindo a filmes nazistas dos anos 1930 e 1940. Estão todos no YouTube, e sua mensagem segue clara apesar da baixa qualidade de imagem e problemas de legenda.

    Foi uma longa semana. Para usar a classificação de Rushdie, a literalidade faz penar quem enfrenta "O Eterno Judeu" (Fritz Hippler, 1940), no qual os integrantes do "povo que vive da produtividade de outros povos" são comparados a demônios, ratos e pragas.

    O documentário faz parte da linhagem crua e direta defendida por Adolf Hitler como vanguarda ideológica para as ações militares do Terceiro Reich.

    "O Judeu Süss" (Veit Harlan, 1940) e "Os Rotschilds" (Erich Waschneck, 1940), por sua vez, obedecem à estratégia "soft" defendida por Joseph Goebbels: a propaganda insinuada em meio a certo engajamento de personagens e trama.

    Numa roupagem ficcional suntuosa que tem fatos da história europeia como pano de fundo (a biografia de Joseph Oppenheimer, as guerras napoleônicas), vilões de traços semitas praticam tortura, estupro, conspiração e outras barbaridades que soam caricaturais para uma plateia educada de hoje.

    EXPERIÊNCIA

    Diferente é o caso de Leni Riefenstahl, a cineasta contratada para documentar um congresso do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e os Jogos Olímpicos de Berlim (1936).

    "O Triunfo da Vontade" (1935) e "Olympia" (partes 1 e 2, 1938), respectivamente, permanecem clássicos emulados na forma com que se filmam campanhas eleitorais e competições esportivas nas últimas oito décadas.

    Como escreveu Susan Sontag num ensaio de 1975, a imagem aqui não só registra a realidade. É a realidade que se constrói para servir à imagem. Leni usa figurantes fornecidos pelo governo alemão, por exemplo, para montar cenas de mães loiras sorridentes à espera dos discursos arrebatadores do führer.

    Em alguns aspectos, o resultado é tão fantasioso como em Harlan, Waschneck e Hipples. O que distingue Leni é a eficiência estética e narrativa de sua propaganda. Se pode até haver comédia involuntária num agiota mostrando joias e se dizendo apátrida em "O Judeu Süss" —rimos por estarmos acima desse esquematismo repulsivo—, na queridinha de Hitler tudo é rigor e sofisticação.

    Vistos de 2017, elementos comumente associados ao nazismo são diluídos pelo que quase um século de indústria cultural fez deles. Sontag diferencia a "estética utópica" da arte totalitária de direita da "moral utópica" da de esquerda, e a forma como isso aparece em Leni não é estranha a muito do que se vê no cinema comercial, nos comerciais de TV ou no Instagram de celebridades.

    Nos termos da ensaísta americana, além do culto a padrões de saúde e beleza sobre-humanos para a maioria de nós, os exemplos vão da morte glamorizada à exaltação de "dois estados aparentemente opostos: a egomania e a servidão".

    Melhor seria dizer que é a história, em breves e fatais interferências, que dá o sentido macabro de "O Triunfo da Vontade" e "Olympia".

    Impossível ver o führer em ângulos majestosos no primeiro, ou a narração que chama um corredor canadense de "negro Edwards" no último, sem lembrar de antepassados meus, de amigos e de conhecidos que viveram o horror do século 20. De nada adianta isso estar camuflado por uma orquestração de simetrias e velocidades, uma fusão quase erótica entre natureza, humano e mito.

    O mecanismo que faz o belo (ou virtuoso) estar a serviço do sombrio (ou criminoso) é mais velho do que o nazismo, claro. Mas se trata de ferramenta que nunca perde a atualidade nas cruzadas totalitárias.

    Sob essa luz, o que Leni Riefenstahl representa está tão vivo hoje quanto nos anos 1930.

    É o suficiente para eu emular o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), e o do Rio, Marcelo Crivella (PRB), numa pregação por limites na veiculação de obras como a da diretora alemã, apenas trocando a "libidinagem" combatida pelos dois políticos pelo "discurso de ódio" que qualquer pessoa razoável condena?

    CULTURA

    Uma forma de responder é evocando a célebre distinção do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard: cultura é regra, arte é exceção. A primeira não se resume ao que está exposto em museus; inclui itens como educação e tecnologia, formando o imaginário e as práticas sociais de um tempo traduzidas em linguagens como as da política e da publicidade.

    A esperteza dos grupos que protestaram contra o MAM e o Santander foi tentar tirar o debate da esfera artística —quase todos admitem que a criatividade precisa ser livre— e trazê-la para a esfera cultural.

    Nesta, em termos de valores a serem protegidos de ataques, argumentos externos à obra —faixa etária do público, hora e lugar para referências sexuais— são usados para igualar os ofendidos do momento a negros, gays e qualquer outra coletividade discriminada.

    Ocorre que, na esfera cultural, proposições justas em termos absolutos podem ser relativizadas pelo contexto.

    Evangélicos não são vítimas de ataques físicos como integrantes de religiões afro-brasileiras, nem como transgêneros que veem seus pares assassinados país afora. É diferente discutir os pudores de Alexandre Frota e do MBL e violências contra minorias sem bancada no Congresso, estações de TV e esquemas milionários de arrecadação de dízimos.

    A saída para um tratamento desigual a realidades desiguais poderia estar na proposição de Godard: separar censura artística (que deve ser sempre combatida) e conveniência cultural (que depende de dinâmicas sociais momentâneas).

    No meu caso, isso resolveria o incômodo de não achar adequado, digamos, a exibição de "O Eterno Judeu" em horário nobre na TV aberta. A par da minha sensibilidade identitária, há bom senso –ou condescendência, não importa– em temer seus efeitos em quem mal sabe o que foi a Segunda Guerra ou o Holocausto.

    ARTE

    O problema em fórmulas desse tipo é que elas abrem espaço para casuísmos autoritários tão ruins como os males que combatem.

    Se levarmos adiante exemplos que não são tão fáceis como filmes patrocinados por Hitler e Goebbels, chegaremos a impasses baseados em definições muito variáveis de ofensa. De "O Mercador de Veneza" (Shakespeare) a "Lolita" (Nabokov), há antissemitismo e pedofilia (e outras formas de intolerância e escândalo) para todos os gostos em todos os graus.

    Existe irrealismo, também, na tentativa de controle do acesso de crianças e adultos ao que quer que seja em 2017. Isso vale para a decisão do Masp, que instituiu censura de 18 anos numa exposição sobre sexualidade e depois voltou atrás por ordem do Ministério Público.

    Já que falamos em tecnologia, a programação de um museu é uma gota de água quando qualquer celular fornece pornografia e pregação fascistoide à vontade. E já que falamos em educação, o sucesso das fake news prova que o estrago está sendo feito em dimensões imprevisíveis.

    Para não regredir à censura estatal, única forma de exercer a censura tecnológica e educacional, nivelando tudo pelo silêncio como na China, é hora de aprender a lidar melhor com o ultraje.

    É o otimismo que vejo como possível diante do avanço das trevas. E uma lição que a arte poderia dar à cultura: se a segunda é o espaço do consenso dadas as variáveis de uma época, a primeira sempre foi o oposto. Seu papel, inclusive, passa por uma espécie de exorcização das pulsões destrutivas que acompanham nossos esforços humanistas bem-intencionados.

    Entender a radicalidade dessa proposição é aderir a uma liberdade radical: a única que nos possibilita sermos tocados pela verdade da exceção. Por mais respeitáveis que sejam os valores da regra, para mim ou para quem resume os problemas do Brasil à falta de uma cueca, ter contato apenas com eles é viver num mundo mais simplório e desonesto.

    MICHEL LAUB, 44, é jornalista e escritor. Seu último romance é "O Tribunal da Quinta-Feira" (Companhia das Letras).

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