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    História de Gilgamesh, agora com nova tradução, antecipa aspectos da Bíblia

    MARCELO REDE

    22/12/2017 06h00

    Alex Wong/Getty Images/AFP
    Em Washington, museu sobre a história da Bíblia mostra várias versões do livro

    RESUMO Pela primeira vez traduzida do acadiano para o português, a "Epopeia de Gilgámesh" compila em forma de poesia as aventuras do lendário soberano de Uruk, considerada uma das primeiras cidades da história. Professor da USP debate paralelos entre os episódios contidos nessa obra e os relatos da Bíblia.

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    Uma história de milhares de anos nos conta sobre terrível decisão divina: um dilúvio universal destruiria a humanidade e tudo que fora criado. Um bom homem e sua família, porém, seriam poupados.

    A divindade diz ao homem para tudo abandonar e construir um grande barco, dando-lhe instruções e medidas precisas. Diz também que leve consigo alimentos e animais. A tempestade vem, devastadora; ao final, a embarcação atraca no topo de uma montanha.

    O homem solta alguns pássaros, mas eles não encontram terra seca onde pousar e retornam ao barco. Após algum tempo, uma ave não volta: as águas haviam baixado.

    Poucos não reconheceriam nessas linhas a história de Noé, uma das mais famosas passagens da Bíblia. Esse, no entanto, é o resumo de um texto escrito muito antes de a narrativa hebraica existir.

    No relato, Uta-napishtim —cujo nome significa "vida de dias longevos"—, um habitante da antiquíssima cidade de Shuruppak (fundada por volta de 3000 a.C. no sul do atual Iraque), narra a Gilgamesh, rei de Uruk, a proeza de ter sobrevivido ao dilúvio.

    O episódio integra a "Epopeia de Gilgámesh" [Autêntica, trad. de Jacyntho Lins Brandão, R$ 59,80], uma compilação em forma de poesia das aventuras do lendário soberano de Uruk (também localizada no sul do atual Iraque), considerada uma das primeiras cidades da história.

    Em etapa anterior da saga, a morte de Enkidu, fiel companheiro do rei, havia imposto a Gilgamesh o assombro de sua própria finitude, estimulando-o a buscar conselho do homem que escapara à inundação.

    A tentativa, contudo, é vã. O poema conclui que o destino de todo ser humano, por mais elevado que seja, é o sombrio Mundo Inferior —a terra dos mortos. Gilgamesh retorna à esplêndida Uruk e, ao final de sua jornada, a única eternidade por ele conquistada será a da memória de seus atos. São as palavras que lhe darão a imortalidade.

    Durante séculos, as façanhas de Gilgamesh foram copiadas e recopiadas na superfície de tabletes de argila em escrita cuneiforme (em forma de cunhas).

    Num primeiro momento, foram compostos episódios isolados, em língua suméria —a primeira a ter sido registrada por escrito. Depois, diferentes escribas editam o material existente, aproveitando alguns trechos e descartando outros.

    O resultado é o aparecimento de várias versões em acadiano, o idioma semítico que, junto com o sumério, formava a base da expressão linguística na antiga Mesopotâmia (região que corresponde hoje ao Iraque e parte da Síria).

    Esse processo se assemelha bastante à confecção dos textos bíblicos, com a diferença de que, no caso da Bíblia hebraica, nenhum manuscrito original foi conservado.

    As centenas de tabletes e fragmentos preservados da "Epopeia" permitem acompanhar, ainda que parcialmente, um processo complexo em que os textos são transformados continuamente por obra de escribas que transmitem o saber.

    ARQUEOLOGIA

    A versão final dessa obra magistral deve ter sido formulada por volta de 1200 a.C. na Babilônia (centro-sul do atual Iraque). Trabalho coletivo ou de um escritor inspirado? Não sabemos ao certo. Mas a própria tradição mesopotâmica consagrou o nome de um escriba e sacerdote, Sîn-leqe-unninni, como sendo o responsável pela "Epopeia".

    É a versão desse sacerdote que foi encontrada nos tabletes descobertos na biblioteca de Assurbanipal (688-627 a.C.), em Níneve (última grande capital assíria, situada ao norte da Babilônia), e que compõe a quase totalidade do texto conhecido como a edição canônica.

    Inevitável sentir um calafrio ao saber que as aventuras de Gilgamesh permaneceram enterradas por mais de 2.000 anos no subsolo iraquiano e que quase continuaram ignoradas. Sem falar da aflição de pensar no quanto dessa literatura pode ter sido esmigalhado para sempre pelos ataques do Estado Islâmico a sítios arqueológicos e museus na região de Níneve.

    Se hoje podemos ler esses velhos textos, é porque a história é estranhamente complexa. No século 19, algumas potências da Europa, como a França e a Inglaterra, voltaram-se para o Império Otomano e para o leste asiático. Eram motivadas sobretudo por uma estratégia de fortalecimento político e por interesses econômicos.

    Esse mesmo movimento, entretanto, despertou atração intelectual inédita pela antiguidade do Oriente Próximo. Por volta de 1850, as escavações arqueológicas nas antigas capitais assírias —Kalhum, Dur-sharruqin, Níneve— abarrotaram os museus da Europa com objetos e inscrições cuneiformes que mal se conseguia decifrar.

    Mais de 20 anos depois, o inglês George Smith procurava identificar e traduzir os milhares de fragmentos vindos de Níneve para o Museu Britânico, em Londres. Ele foi o primeiro a perder o fôlego quando, em 1872, deparou-se com a história do dilúvio desse verdadeiro "Noé antes de Noé" que foi Uta-napishtim. Smith não demorou a perceber que havia descoberto e decifrado parte —o 11º tablete— de uma obra maior, a "Epopeia de Gilgamesh".

    A revelação causou enorme impacto na Europa cristã. Pelas mãos do inglês, o mundo moderno recuperou alguns capítulos de uma saga perdida, que ele publicou como "Relato Caldeu do Dilúvio" -referência aos caldeus, nome usado na Bíblia em relação a população e governantes do Império Babilônico.

    Surgia uma nova disciplina: a assiriologia, campo que busca reconstituir a história da Mesopotâmia por meio da arqueologia e da decodificação dos milhares de documentos escritos em cuneiforme.

    Nem os assírios nem os babilônios eram completamente desconhecidos do Ocidente moderno. Textos clássicos, como as "Histórias" de Heródoto, já os mencionavam. Mas a grande fonte do imaginário ocidental sempre tinha sido a Bíblia: a Torre de Babel, Abraão e sua partida da Ur dos caldeus, as infinitas ameaças e agressões da Assíria e da Babilônia e, sobretudo, o exílio às margens do rio Eufrates.

    Com as novas descobertas no Oriente Próximo, essas visões sedimentadas puderam ser comparadas e desafiadas. Os textos mesopotâmicos permitiram escrever uma história mais diretamente documentada da Assíria e da Babilônia e reinterpretar, sob nova luz, a própria Bíblia e suas narrativas.

    DEBATE BÍBLICO

    O horizonte que se abria era extraordinário e, é claro, bastante ameaçador para aqueles que professavam uma leitura exclusivamente teológica da Bíblia e não admitiam que sua verdade histórica fosse relativizada ou questionada. Era apenas o início de um caloroso debate, que já dura um século e meio.

    A narrativa do dilúvio é, em todo caso, a mostra perfeita de que a Bíblia, tal qual a conhecemos, não existiria sem a Assíria e a Babilônia. As histórias e as mitologias bíblicas foram largamente influenciadas pelo ambiente cultural do Oriente Próximo no primeiro milênio antes de Cristo, em particular pela sofisticada produção literária mesopotâmica.

    Esse tipo de interação fica claro na existência dos dois relatos bem diferentes sobre a criação no Gênesis. No primeiro deles, Deus cria o homem e a mulher conjuntamente, através da palavra, depois de ter concebido todo o resto. No outro, Deus molda antes o homem, com argila, depois gera os animais e só então cria a mulher, a partir da costela do homem.

    É demonstração de que as variadas cosmogonias (mitos sobre a origem do universo) e antropogonias (narrativas de origem da humanidade) que circulavam na região foram relidas pelos autores bíblicos e adaptadas à visão monoteísta que se consolidava no judaísmo.

    Além desse fluxo de motivos culturais, os conflitos brutais entre as potências mesopotâmicas e os pequenos reinos da região sírio-palestina prepararam o terreno no qual grande parte dos textos bíblicos foi elaborada ou reelaborada.

    Em 721 a.C., ao devastar o Reino de Israel, a Assíria criou um vácuo que permitiu a ascensão e a consolidação do Reino de Judá, ao sul. Até então, Judá era ator secundário: mais pobre materialmente, mais fraco politicamente e bem menos refinado culturalmente do que o desaparecido Reino de Israel.

    Com essa centralização política e religiosa em Jerusalém, Judá beneficiou-se da herança intelectual de Israel e pôde se reivindicar como legítimo herdeiro da aliança com o deus Yahweh.

    Em 587 a.C., entretanto, foi a vez de Judá sucumbir diante dos ataques da Babilônia. A deportação de parte da população judaíta para as terras babilônicas, a destruição do templo de Jerusalém e o fim da dinastia davídica formaram os elementos principais de uma crise traumática, que pôs em risco a identidade social e religiosa da comunidade e até sua existência.

    Foi a reação ao trauma exílico que levou à formulação de muitas das narrativas bíblicas. A elite dos exilados reinventou seu passado e seus ancestrais: de Abraão a Moisés, da criação do mundo à catástrofe da conquista babilônica, passando pelo êxodo do Egito, pela conquista de Canaã e por um imaginário reino unificado, inacreditavelmente rico e poderoso.

    Foi essa visão —favorável a Judá, em detrimento de Israel— que forneceu a chave para que os judeus exilados na Babilônia interpretassem sua situação longe da terra prometida e elaborassem um projeto de futuro baseado no retorno.

    Nos séculos seguintes, os redatores bíblicos beberam abundantemente das fontes mesopotâmicas para construir suas próprias memórias, reinventar sua identidade de grupo e reformular sua concepção de divindade como um deus único.

    A "Epopeia de Gilgámesh" é a obra mais conhecida da literatura mesopotâmica, um texto fundamental que ajuda a entender os primeiros passos do pensamento humano. Ela finalmente chega ao leitor brasileiro diretamente do acadiano, em trabalho hercúleo de tradução de Jacyntho Lins Brandão, professor da UFMG.

    Incorporando as mais recentes edições críticas, Brandão buscou a maior fidelidade ao sentido original, sem abrir mão de oferecer, a cada verso, o máximo da sonoridade e do ritmo do poema. Tarefas dificílimas quando se trata de verter uma língua morta há 2.000 anos.

    *

    "EPOPEIA DE GILGÁMESH"
    Trechos da tradução de Jacyntho Lins Brandão

    (I: 37-48)

    Alto é Gilgámesh, perfeito, terrível:
    Abriu passagens nas montanhas,
    Cavou cisternas nas encostas
    do monte,
    Atravessou o mar, o vasto oceano, até onde nasce Shámash,

    Palmilhou os quatro cantos, em
    busca de vida,
    Chegou, por sua força, ao remoto
    Uta-napíshti,
    Repôs os templos arrasados
    pelo dilúvio,
    Instituiu ritos para toda a
    humanidade.

    Quem há que a ele se iguale
    em realeza
    E como Gilgámesh diga: este
    sou eu, o rei?
    A Gilgámesh, quando nasceu, renome lhe deram:
    Dois terços ele é um deus, um terço é humano.

    (XI: 128-139)

    Seis dias e sete noites
    Veio vento, tempestade, vendaval, dilúvio.

    O sétimo dia ao romper,
    Amainou o vendaval (...)
    Amainou o dilúvio sua guerra.
    O que lutou como em trabalho de parto descansou, o mar.
    Calou-se a tormenta. O dilúvio
    estancou.

    Olhei o dia: posto em silêncio
    E a totalidade dos homens tornara-se barro.

    Como um terraço estava liso o prado.
    Abri a claraboia, uma luz caiu-me sobre as têmporas.
    Abaixei-me, sentei e chorei,
    Sobre as têmporas vinham-me as lágrimas.

    *

    MARCELO REDE, 52, doutor em assiriologia pela Universidade de Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, é professor de história antiga da USP e autor de "Família e Patrimônio na Antiga Mesopotâmia" (Mauad).

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