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    Peça pouco conhecida de Shakespeare aborda homoerotismo platônico

    LAVINIA SILVARES

    06/01/2018 06h00 - Atualizado às 19h59
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    Donald Cooper/RSC
    "Os Dois Primos Nobres", em montagem da Royal Shakespeare Company de 2016

    RESUMO Peça pouco conhecida de William Shakespeare, escrita em coautoria com John Fletcher, tem lançamento no Brasil. Escrito no século 17, texto surpreende por sua atualidade, com temáticas como amores não realizados e homoerotismo, mostrando forte potencial para montagens teatrais contemporâneas.

    *

    Uma das peças menos conhecidas de Shakespeare ganha edição em verso inédita no Brasil e tem tudo para mover os ânimos do público contemporâneo.

    "Os Dois Primos Nobres" —uma tragicomédia em cinco atos breves— embaralha os limites do amor e da amizade, pondo em cena questões modernas sobre gênero, sexualidade e identidade social. Com uma trama sombria mas profundamente dinâmica, a peça apresenta momentos de dança, canto, duelo, troca de farpas e também alívio cômico, em cenas que vão do lirismo à loucura.

    A obra tem como protagonistas Palamon e Arcite, primos e amigos de longa data, que lutam lado a lado contra o exército de Teseu na guerra entre Atenas e Tebas. Derrotados, os primos tebanos se tornam prisioneiros de guerra e, na solidão de suas celas, se resignam à sua nova condição, num diálogo que revela grande ternura entre os dois homens, carregada de um sutil erotismo.

    Mas essa harmonia entre os primos será rapidamente quebrada quando Palamon anuncia seu amor por Emília —irmã de Hipólita, mulher de Teseu— a quem ele avista rapidamente por entre as grades da prisão. Em resposta, Arcite, cujos sentimentos por Palamon parecem transcender a amizade, declara-se também apaixonado pela mesma mulher, disparando uma inesperada rivalidade entre os primos, que terminará em tragédia.

    Certamente, é de se comemorar a publicação da primeira edição brasileira, em verso, de "Os Dois Primos Nobres" [Iluminuras, 200 págs., R$ 53], com tradução e notas de José Roberto O'Shea. O prefácio é de Marlene Soares dos Santos, autora de diversos estudos sobre a obra shakespeariana, que define a peça, provavelmente escrita entre 1613 e 1614, como "plena de peculiaridades".

    Para começar, o texto não integra nenhuma das primeiras grandes coletâneas das obras de Shakespeare publicadas ao longo do século 17, a começar com o "Primeiro Fólio", de 1623. De fato, "The Two Noble Kinsmen", seu título original em inglês, foi registrada e publicada pela primeira vez em 1634.

    A peça é, aliás, uma das poucas de Shakespeare que a crítica especializada define, sem muita dúvida, como fruto de colaboração: na publicação, a autoria foi atribuída aos "memoráveis Ilustres de seu tempo" —ambos já falecidos à época— Shakespeare e John Fletcher, outro integrante da companhia teatral King's Men, 15 anos mais novo que o icônico dramaturgo.

    A coautoria ainda motiva estudos sobre o dinamismo linguístico e inventivo da obra, além de contribuir para ofuscar o culto romântico ao pretenso gênio solitário de Shakespeare.

    Outra peculiaridade de "Os Dois Primos Nobres" é o anúncio explícito de sua fonte literária logo no prólogo, coisa rara na dramaturgia da época: "Chaucer, tão admirado, doa a história, / que em sua obra vive sempre em glória".

    A passagem se refere a Geoffrey Chaucer (c. 1343-1400), grande poeta medieval considerado o pai da literatura de língua inglesa, e uma de suas obras mais conhecidas, "Os Contos de Canterbury", muito popular na época e que continua sendo objeto de adaptações modernas em cinema e televisão.

    O núcleo temático dramatizado por Shakespeare e Fletcher em "Os Dois Primos Nobres" é uma reapropriação da história contada por Chaucer em "Conto do Cavaleiro". Mas a peça teatral extrapola o âmbito marcadamente delineado e unido da obra medieval, criando eixos temáticos secundários que imprimem outra dinâmica na trama principal e constroem uma dimensão cômica e mais espetacular.

    Ademais, os dramaturgos inovam na caracterização das personagens de origem mitológica, como Teseu e Hipólita, na amplificação da relação entre Palamon e Arcite e na diversidade elocutiva das falas.

    PALAVRAS

    Uma das cenas que mais chamam a atenção em "Os Dois Primos Nobres" é justamente o diálogo entre os primos na segunda cena do ato dois. Já prisioneiros em Atenas, os jovens tebanos conversam, sozinhos em suas celas, sobre como será a vida dali em diante.

    De início, imaginam um destino tomado de privações e sofrimento: nunca mais lutariam por sua pátria, nem defenderiam sua honra; nunca se casariam, nem veriam sua semelhança impressa na face de filhos; nunca mais sentiriam o galope veloz de seus cavalos:

    PALAMON
    Ah! Jamais haveremos de com armas
    Nos exercitar, qual gêmeos em honra
    E sentir nossos fogosos cavalos
    Embaixo de nós qual o mar revolto.
    Nossas espadas —o próprio deus Marte
    Melhores não teve— são arrancadas
    Dos nossos flancos e, qual velharia
    Vão enferrujar e ornar os templos
    De deusas que nos odeiam (...).

    Essa primeira reflexão, pessimista em essência e elevada em sua natureza elocutiva, prepara o clima para o que vem em seguida: uma reviravolta discursiva que transformará toda privação em ganho, superação, vitória.

    Os primos prometem fazer da prisão um lar; da companhia do outro um convívio edificante; da ausência de mulheres uma oportunidade de cultivar sentimentos mais nobres.

    Em chave neoplatônica de exaltação do ócio produtivo e da amizade masculina, Palamon e Arcite metaforizam a clausura física em união conjugal, dizendo que são "esposos" —um a família do outro:

    ARCITE
    Tenhamos a prisão por santuário
    Que nos livra da corrupção dos vis
    (...)
    Juntos, aqui
    Somos u'a mina infinda, um para o outro;
    Somos esposos, cujo afeto sempre
    Renasce; somos pais, amigos, sócios;
    Um a família do outro; sou teu herdeiro
    E tu és o meu. O nosso legado
    É este lugar; que nenhum tirano
    Ouse tirar-nos; aqui, com paciência
    Teremos vida longa e afetuosa. (...)

    PALAMON
    Terá existido dois que mais se estimem
    Do que nós, Arcite?

    A cena se constrói como revelação de um tipo de amor mais elevado: aquele entre dois homens, conforme sustentavam os discursos neoplatônicos sobre a amizade masculina que circulavam desde o século 15 nas cortes europeias.

    Deve ter exigido coragem abordar o homoerotismo numa peça durante o reinado de Jaime 1º, rei que protagonizou um escândalo por conceder privilégios reais e manter relações íntimas com o jovem Robert Carr, conde de Somerset.

    Em termos linguísticos e poéticos, esses diálogos são exemplos do primoroso trabalho de tradução feito por José Roberto O'Shea, pesquisador da dramaturgia shakespeariana e de sua performance, e responsável por diversas traduções anotadas do autor, como "Antônio e Cleópatra" (Mandarim/Siciliano, 1997) e "Hamlet, o Primeiro In-Quarto" (Hedra, 2010).

    Como de seu costume, O'Shea traduz a obra em decassílabos —salvo, é claro, as passagens originalmente escritas em prosa—, e segue os princípios da tradução/transposição cultural, pressupondo o que chama de "dimensão intercultural inescapável" do texto dramático vertido para outra língua, cultura e tempo.

    A tarefa exige a busca de soluções que garantam o sentido e a relevância do texto original no âmbito linguístico-cultural do português brasileiro contemporâneo, observando também os efeitos poéticos dos versos e a função retórica que cumprem no discurso mais amplo da peça.

    SUBTEXTO

    Mas o teatro não é só feito de palavras: o forte potencial performático da cena entre os primos prisioneiros permite entrever a relação homoerótica entre eles.

    As palavras afetuosas de um e de outro podem funcionar como a letra para uma música, um ponto de partida verbal para todo um movimento de corpos —toques, gestos, afagos— que realiza a sexualidade apenas latente na enunciação.

    Este é, inclusive, um elemento cruel constante em "Os Dois Primos Nobres": o fato de que as relações amorosas nunca se cumprem por completo.

    No início da peça, há uma brusca interrupção do casamento de Teseu e Hipólita, com a aparição de viúvas de soldados mortos que convertem a leve alegria das festividades de núpcias em lágrimas e o início de uma nova guerra.

    O declarado amor entre Palamon e Arcite é igualmente interrompido quando o primeiro se diz, de súbito, apaixonado por Emília —num deslocamento do objeto sexual tão repentino que parece se dar como sublimação da homossexualidade proibida. Mais à frente, uma moça pobre enlouquece por seu amor impossível por Palamon.

    Tais movimentos foram explorados, por exemplo, pela Royal Shakespeare Company em montagem de 2016, na qual se ampliaram as potencialidades temáticas da peça, realçando os momentos em que as personagens questionam sua própria sexualidade.

    Interpretando, por exemplo, a relação entre Palamon e Arcite e sua obsessão pela jovem Emília como um triângulo amoroso homossexual, a companhia teatral inglesa deu à trama uma versão bem contemporânea, com corpo e gestual que explicitam o homoerotismo mais do que o texto de Shakespeare e Fletcher permitia entrever.

    Em outro momento, logo no início da peça, Emília revela que não se sente atraída por homens, dizendo que nada supera o verdadeiro e puro amor entre as mulheres; o espelhamento dessa cena com a do diálogo de homoafetividade entre os primos permite reforçar o caráter não convencional da sexualidade das personagens, abrindo o leque interpretativo que cada performance pode explorar.

    Como se vê, o potencial dos versos de Shakespeare e Fletcher em "Dois Primos Nobres" é muito amplo e abre um leque de possibilidades interpretativas para diferentes adaptações teatrais, inclusive explorando a atualidade de seus temas. Fica a torcida para que o lançamento da obra no Brasil dê origem, em breve, a montagens nos palcos brasileiros.

    *

    LAVINIA SILVARES, 38, é professora de literatura inglesa na Unifesp e autora de "Nenhum Homem é uma Ilha: John Donne e a Poética da Agudeza" (Editora Unifesp).

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