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    Vegetarianos deveriam ter regras mais flexíveis, defende pesquisador

    ALBERTO GIUBILINI
    DA "AEON"

    24/01/2018 06h00

    É um cenário bastante comum. Alguém vai jantar na casa de um amigo. O anfitrião se esquece de que o convidado é vegetariano e lhe serve uma costeleta de porco. O que o convidado deveria fazer?

    Sua reação inicial provavelmente será de nojo e repulsa. Os vegetarianos muitas vezes desenvolvem esse tipo de atitude para com alimentos cuja base é a carne, o que torna mais fácil sua atitude absolutista em sua rejeição.

    Suponha, porém, que a pessoa vegetariana decida desconsiderar seus sentimentos de repulsa e comer a costeleta, talvez para não fazer desfeita. Sua atitude será moralmente repreensível?

    O mais provável é que essa pessoa não tenha comido carne de animais criados de modo humanitário —para alguns (mas não todos) vegetarianos éticos, seria aceitável consumir carne produzida de modo humanitário.

    Muito provavelmente, a carne passou por um processo de produção intensivo, industrializado e cruel. Comer a carne, sob essas circunstâncias, não poderia, por isso, ser o que o filósofo Jeff McMahan define como "carnivorismo benigno".

    Será que a pessoa vegetariana fez alguma coisa errada, por violar seu código moral?

    A maioria dos vegetarianos se preocupa com o sofrimento causado aos animais pelo consumo de carne, ou com o impacto do processo industrializado de criação de animais sobre o meio ambiente.

    A bem da simplicidade, considerarei apenas o caso do sofrimento dos animais, mas o mesmo argumento poderia ser aplicado a outras consequências adversas das atuais práticas industrializadas de criação de animais, entre as quais, por exemplo, emissões de gases causadores do efeito estufa, aproveitamento ineficiente da terra e uso de pesticidas, fertilizantes, combustível, ração animal e água, além do emprego de antibióticos que despertam resistência nas bactérias do gado, com isso causando efeito semelhante nos seres humanos.

    ATITUDE CORRETA

    Dado que comer carne em geral ajuda a sustentar o ciclo de criação de animais de modo industrializado, sob a qual eles sofrem tratamento nada humanitário e são abatidos, é provável que comer carne contribua para o sofrimento dos animais (e para as demais consequências adversas da criação industrializada de animais).

    Assim, se concordamos que um dos bons motivos para ser vegetariano é que comer carne em alguma medida encoraja práticas que conduzem ao sofrimento dos animais, então à primeira vista poderia parecer que comer carne apenas raramente deve ser considerado moralmente permissível (a filósofa Shelly Kagan oferece um contra-argumento), porque é bastante provável que comer carne apenas ocasionalmente não terá nenhum impacto sobre o montante de sofrimento infligido aos animais.

    No entanto, ao não comerem carne —especialmente ao não comerem carne quando ela lhes é oferecida na presença de não vegetarianos—, os vegetarianos estão enviando uma mensagem às outras pessoas.

    Ao manterem seu compromisso ético, os vegetarianos sinalizam que existe algo de errado em ser carnívoro, o que pode levar outras pessoas a considerar a moralidade de seu hábito de comer carne e talvez até passar a considerar que consumir carne é errado.

    Em outras palavras, o impacto positivo de ser vegetariano, em termos de redução do sofrimento animal, pode ser amplificado quando o vegetarianismo é defendido publicamente e demonstrado em contextos sociais.

    Por outro lado, abrir exceções quanto ao próprio vegetarianismo pode transmitir a mensagem de que comer carne não é assim tão mau, afinal. Se até mesmo os vegetarianos comem carne ocasionalmente, então comer carne não pode ser tão repreensível de um ponto de vista moral, certo?

    Assim, o convidado o começo do texto que comeu uma costeleta de porco talvez estivesse moralmente errado pelo motivo descrito acima: enviou a mensagem errada às pessoas com quem jantou.

    CASO COMPLEXO

    Mas as coisas não são tão simples. Evitar carne em todas as circunstâncias, entre as quais a situação em que o convidado se viu, é uma estratégia que pode fracassar.

    Seria plausível afirmar que a mensagem "correta" a enviar aos não vegetarianos é aquela que aumente a probabilidade de que mais pessoas deixem de comer carne ou ao menos passem a consumir menos carne.

    Se as pessoas perceberem o vegetarianismo como uma posição que não permite exceções, é menos provável que se tornem vegetarianas. Uma posição moralmente flexível é mais atraente do que uma posição rígida, que não admita exceções.

    É mais provável que pessoas sejam convencidas a se tornarem vegetarianas "flexíveis" —ou seja, que se abstenham de comer carne, com algumas exceções— do que sejam convencidas a se tornarem vegetarianas rígidas. E, do ponto de vista moral, é melhor ser um vegetariano flexível do que ser carnívoro.

    Assim, o fato de o convidado vegetariano ter comido carne provavelmente demonstrou ao anfitrião que é possível ser vegetariano (flexível) e, ao mesmo tempo, desfrutar de carne, ocasionalmente, sem sentimento de culpa.

    Isso certamente faz com que o vegetarianismo (flexível) pareça mais acessível e mais atraente do que teria sido o caso se o convidado tivesse se recusado a comer carne.

    É fato que uma pessoa que coma carne, mesmo que apenas ocasionalmente, poderia perder o direito de se declarar "vegetariana", mas isso talvez não seja muito importante.

    O que importa é que um mundo no qual muitas pessoas comam carne apenas ocasionalmente é preferível, de longe, ao mundo em que vivemos atualmente, com relativamente poucos vegetarianos e uma vasta maioria de carnívoros.

    *

    ALBERTO GIUBILINI é pesquisador de pós-doutorado no Centro Uehiro de Ética Prática, na Universidade de Oxford. Coeditou "The Ethics of Human Enhancement" (2016), com Julian Savulescu, Steve Clarke, C. A. J. Coady e Sagar Sanyal.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Publicado originalmente no site Aeon.

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