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    PEC das domésticas combate herança escravocrata, diz juiz do trabalho

    JULIANA CUNHA
    DE SÃO PAULO

    11/05/2015 12h00

    A Câmara concluiu a votação do projeto de lei que regulamenta a PEC do trabalho doméstico, aprovada quase dois anos antes, e o projeto foi votado pelo Senado nesta quarta-feira (6). O texto segue agora para a presidente Dilma Rousseff e as regras passam a valer 120 dias após sua sanção.

    O projeto aprovado determina o recolhimento de 8% de FGTS aos empregadores sobre a remuneração do empregado e unifica a cobrança do INSS, do IR e do fundo de garantia em um boleto único a ser pago pelos empregadores. Também prevê o percentual de 0,8% de seguro por acidente de trabalho e cria um banco de horas extras a ser compensado com folga num prazo de até um ano.

    Nesses dois anos de limbo jurídico, a PEC gerou dúvidas e críticas por parte de patrões. Em entrevista concedida à Folha, o juiz do Trabalho Marcelo Segal, professor de Direito do Trabalho da FGV, explica como a justiça do trabalho lidou com as mudanças nos últimos dois anos e como o texto final da PEC afeta a vida do trabalhador.

    Editoria de Arte/Folhapress

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    Folha - Quando foi aprovada, a PEC das Domésticas gerou dúvidas. Havia questões tormentosas sobre situações corriqueiras, como controle da jornada. O número de processos trabalhistas aumentou nos últimos dois anos em razão dessas questões em aberto? Muita coisa ficou a cargo da interpretação pessoal dos juízes?

    Marcelo Segal - No começo, houve uma espécie de histeria coletiva, com muitos empregados domésticos sendo dispensados a pretexto de que o empregador não conseguiria cumprir as novas determinações legais. Alguns novos direitos se revelaram autoaplicáveis –portanto, exigíveis de imediato–, outros dependiam da regulamentação, que vem agora. Na experiência que tenho na Vara da qual sou juiz titular, a quantidade de ações movidas por empregados domésticos não teve alteração significativa em termos de quantidade.

    O Senado reduziu de 12% para 8% a contribuição previdenciária feita pelo empregador doméstico e estabeleceu o recolhimento mensal de 3,2% para uma espécie de "poupança", com os recursos mantidos em um fundo a ser utilizado pelo patrão no momento da demissão sem justa causa. Essas medidas não acabam facilitando a demissão?

    Não creio. Se a mão de obra é necessária, a tendência é que o empregador queira a manutenção do empregado doméstico. A redução do INSS cota-parte do empregador se justifica por conta da obrigação adicional que ele deverá cumprir em breve. Foi, então, uma espécie de compensação, para não sacrificar em demasia o empregador doméstico.

    Alguns senadores argumentaram que a mudança no modelo clássico de 40% de multa do FGTS nas demissões sem justa causa incentiva a demissão por justa causa. O que o senhor acha disso?

    O empregado doméstico é também empregado. Para os empregados comuns, a necessidade de depositar a indenização de 40% sobre o FGTS nas dispensas sem justa causa não me parece fazer com que os empregadores simulem justas causas falsas, mesmo porque a Justiça, se for o caso, anulará essa punição e determinará o pagamento de todas as verbas devidas. Aqui me parece que o caso é mais de existência (ou ausência) de caráter, ética e boa-fé do que propriamente estímulo à dispensa por justa causa - que, aliás, deve ser provada pelo patrão, se for o caso, pois a presunção é de inocência do empregado.

    O conceito de trabalhador doméstico é aquele que presta serviço de forma contínua na casa de uma família por mais de dois dias na semana em uma atividade que não pode gerar lucro ao empregador. Como fica essa questão de "gerar lucro"? Como o direito entende esse conceito?

    O que caracteriza o empregado doméstico é que ele presta serviço de natureza não lucrativa ao empregador, no âmbito residencial deste. Se o empregado, mesmo ficando dentro de casa, tem o trabalho utilizado para gerar lucro ao patrão, então é considerado empregado comum –e não doméstico. Por exemplo, a empregada que ajuda a patroa a fazer comida que será vendida em quentinhas para clientes, ou bolos e doces para festas e casamentos, é uma empregada comum, não doméstica.

    Por muito tempo, houve um entendimento de que o trabalho doméstico era radicalmente diferente de outras formas de trabalho. Agora parece que a lei entende que essas diferenças devem ser minimizadas. Essa ideia do trabalho doméstico como sendo diferenciado era uma herança escravocrata brasileira?

    A origem do emprego doméstico é de fato escravocrata, e historicamente, os domésticos tiveram menos direitos que os empregados comuns, numa evidente discriminação. Ao longo do tempo verifica-se uma tendência à equiparação de direitos, suavizando o abismo que existe entre esses tipos de empregados, com tradicional desvantagem para o doméstico.

    O banco de horas agora funciona a cada três meses e não anualmente, como previsto anteriormente. A mudança é benéfica?

    Ainda é cedo para dizer. Antes mesmo do banco de horas, creio que a maior dificuldade será o controle dessa jornada. Se nas empresas que contam com menos de 10 empregados sequer é obrigatório marcar folha ou cartão de ponto, com maior razão não vejo necessidade de o empregador doméstico manter esse tipo de controle.

    Essa lei não pode agravar o desemprego justo num momento de recessão econômica?

    Toda conquista social é acompanhada por profetas do apocalipse garantindo que as conquistas irão afetar o emprego, a renda e a democracia. Discordo veementemente. Se fosse assim, nunca haveria avanço social porque qualquer direito conquistado pelos trabalhadores geraria uma hecatombe social. O que se constata é que no início há certo temor e resistência, mas aos poucos a sociedade vai incorporando as alterações que, no caso dos domésticos, são muito justas e já tardam. O importante é compreender bem a lei para cumpri-la.

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