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    Há 20 anos, Honecker era deposto e Muro de Berlim perdia força; leia trecho

    da Folha Online

    17/10/2009 10h58

    Foi em 17 de outubro de 1989 que Erich Honecker, dirigente da antiga Alemanha Oriental e chefe da segurança que supervisionou a construção do Muro de Berlim, foi deposto de seu cargo após votação unânime de membros do seu governo. Sua renúncia foi oficializada no dia seguinte.

    Divulgação
    Erich Honecker (foto) foi deposto em 17/10, após votação unânime
    Erich Honecker (foto) foi deposto em 17/10, após votação unânime

    Antes das intensas manifestações democráticas e da abertura política soviética, Honecker descartava a possibilidade de reunificação da Alemanha e estava certo de que o Muro de Berlim ainda duraria mais cem anos.

    Saiba mais sobre os conflitos ocorridos antes, durante e após a derrubada do Muro de Berlim:

    "O Mundo Depois da Queda"
    Por meio de artigos escritos por Eric Hobsbawm, Paul Auerbach e Jürgen Habermas, e publicados na revista inglesa "New Left Review", o leitor saberá mais sobre o mundo que se formou após a queda do Muro de Berlim.

    "1989: O Ano que Mudou o Mundo"
    O jornalista Michael Meyer, que entrevistou os principais envolvidos no cenário anterior à queda do Muro, desconstrói os mitos que cercam o acontecimento e conta a verdadeira história por trás das notícias dos jornais.

    Leia abaixo um trecho do livro "Muro de Berlim", que conta, com detalhes, como ocorreu a reunião que tirou Erich Honecker do cargo:

    *

    E o Muro Desmoronou

    Na segunda-feira, 2 de outubro, 10 mil cidadãos de Leipzig foram às ruas. Entoavam slogans libertários, mas acima de tudo escandiam: "Vamos ficar AQUI!" À sua maneira, era uma mensagem ainda mais aterrorizante para Honecker que a transmitida pelas hordas de refugiados a caminho da Alemanha Ocidental.

    Divulgação
    Com detalhes, conta como ocorreu a reunião que tirou Erich Honecker do cargo
    Saiba como foi a reunião que tirou Erich Honecker do poder alemão

    O regime se acostumara a deter seus dissidentes e mandálos para o Ocidente. Pois agora eles estavam decididos a permanecer no Leste - e eram em quantidade grande demais para serem deportados. Apesar de tudo, Erich Honecker deu prosseguimento aos preparativos para a comemoração do quadragésimo aniversário do regime que lutara e - devemos admitir - sofrera para criar. Estava absolutamente decidido a fazer com que fosse a maior e mais espetacular prova da viabilidade da RDA que se pudesse esperar.

    Velho e adoentado, o secretário-geral enfrentava problemas óbvios. Para começar, a torrente de refugiados. O pior passou quando, a 3 de outubro, o direito de viajar sem visto para a Tchecoslováquia foi "temporariamente" suspenso. Mas havia também as manifestações. Elas podiam ser minimizadas com um reforço da presença policial e intervenções mais brutais. Mas Honecker também tinha problemas ocultos, aqueles em que sequer queria pensar, mas que já não podiam ser ignorados. Entre eles, o fato de que o Estado que pretendia comemorar com tanta pompa estava, na verdade, à beira da falência.

    Nos últimos anos, a RDA vinha contando com a generosidade alemã ocidental. Nas décadas de 1960 e 1970, a Alemanha Oriental tivera relativo êxito nas exportações. Na década de 1980, quando, nas previsões do planejamento econômico, o país devia transformar-se numa potência moderna calcada na pesquisa e no desenvolvimento de alta tecnologia, o que se verificara, de fato, fora um constante declínio e o aumento do endividamento externo. A RDA só era capaz de imitar, não de inovar. Entre 1980 e 1988, o dispêndio necessário para que uma empresa estatal lucrasse um marco ocidental quase duplicou, passando de 2,40 marcos orientais para 4,40. Com a baixa produtividade e os preços elevados das matérias-primas, o déficit comercial real (descontados os créditos e outros pagamentos da Alemanha Ocidental) continuava aumentando. E se esperava pior ainda.

    A União Soviética, com seus próprios e graves problemas financeiros e econômicos, avisara que diminuiria o fornecimento de petróleo barato para a Alemanha Oriental e elevaria os preços do comércio exterior dentro do bloco oriental aos níveis do mercado mundial. Ainda assim, Honecker, que se acostumara a ignorar as realidades econômicas incômodas, confiando no Deus marxista da história com o mesmo fervor com que qualquer fundamentalista acredita em seu deus, estava decidido a promover a maior festa imaginável no grande aniversário da RDA. Embora tivesse feito uma visita triunfal à Alemanha Ocidental, Gorbachev evitara a RDA nos dois últimos anos.

    Mas não poderia ignorar o quadragésimo aniversário. Como tampouco pôde fechar os olhos, ao chegar a Berlim Oriental, à enorme parada de grupos juvenis ostentando tochas acesas em sua homenagem, ou aos tanques e peças de artilharia que passavam em frente à tribuna de honra onde se postava com a liderança da RDA. À passagem das longas colunas de integrantes da FDJ, com suas camisas azuis e cachecóis vermelhos, muitos davam gritos de homenagem ao reformista soviético, "Gorbi! Gorbi!". Alguns chegavam a arriscar: "Gorbi, ajude-nos!"

    O líder comunista polonês, Mieczyslaw Rakowski, perguntou a Gorbachev se entendia o que os jovens estavam dizendo. O russo assentiu com a cabeça, mas ainda assim Rakowski traduziu. "Eles estão pedindo: 'Gorbachev, salve-nos!'", explicou, incrédulo. "Só que são os militantes do partido! É o fim!" Nas conversas entre Gorbachev e Honecker, o dirigente alemão oriental recusou-se a discutir reformas ao estilo das que vinham sendo promovidas na União Soviética. Em vez disso, perguntou: "Sua população está suficientemente abastecida de comida, pão e manteiga?" E comparou desfavoravelmente o padrão de vida da URSS com o da RDA. A relação entre os dois dirigentes deteriorou-se ainda mais na noite de sábado.

    Numa reunião com o Birô Político alemão oriental, Gorbachev fez mais algumas observações com endereço certo. "Quando ficamos para trás, a vida logo trata de nos punir", comentou, evidentemente referindo-se a Honecker e seus seguidores. Honecker pareceu ignorar, continuando a se jactar dos êxitos da RDA e de seu suposto posicionamento "entre as dez maiores economias do mundo". Suas palavras foram recebidas em silêncio. Exceto no caso Gorbachev, que se voltou para o vizinho e soltou um discreto mas perfeitamente audível assobio de mofa.

    Günter Schabowski, desde 1985 primeiro-secretário do SED no importante distrito de Berlim, observaria mais tarde: "Éramos mesmo uns babacas! Devíamos ter dado o golpe de Estado ali mesmo, na presença dele!" No banquete daquela noite, Krenz finalmente decidiu desembainhar o punhal. Ao terminar a noite, contava com promessas de apoio de alguns membros do Birô Político: Schabowski, Siegfried Lorenz (chefão do SED em Karl-Marx-Stadt) e, sobretudo, o ministro da Stasi, Erich Mielke, de 81 anos, mas ainda homem de confiança de Moscou. Os soviéticos foram discretamente informados, e os conspiradores começaram a tramar a derrubada de Honecker. Depois de 18 anos no poder, o filho de Wiebelskirchen estava com os dias contados.

    Em 1953, o regime do SED só sobrevivera graças às tropas soviéticas. Já circulavam boatos de que Gorbachev não permitiria que o Exército Vermelho interviesse se o mesmo voltasse a acontecer. O governo, entretanto, não hesitava em manter a "ordem" nas ruas mediante criterioso uso da força nesse período crucial. Era o caso sobretudo em Leipzig e Dresden, onde as manifestações de protesto não só prosseguiam, como ganhavam força. Berlim Oriental estava relativamente tranquila, graças, em parte, às intervenções às vezes brutais da Stasi e da polícia para sufocar no nascedouro quaisquer manifestações. Apesar das ameaças veladas e dos atos brutais contra manifestantes individuais no fim de semana do quadragésimo aniversário, 70 mil habitantes de Leipzig compareceram às "orações" da segunda-feira seguinte na Nikolaikirche, que se havia transformado no mais importante foco da oposição.

    Informado da crescente agitação na Saxônia, no domingo, 8 de outubro, Mielke ativou um "alerta vermelho", na prática autorizando suas forças a "atirar para matar" nas ruas. Afirmava a diretiva: "Verificou-se um agravamento da natureza e dos riscos correlatos dos ajuntamentos ilegais de forças hostis e oposicionistas, assim como de elementos negativos e arruaceiros interessados em comprometer a segurança do Estado (...)."

    A ordem prosseguia, ameaçadora: Assim sendo, determino: Um "alerta total" de Estado, nos termos da Diretiva Nº 1/89, parágrafo II, em todas as unidades, até ordem em contrário. Os membros das forças armadas devem portar permanentemente suas armas, de acordo com as necessidades da situação (...). Deverão ser mantidas de prontidão forças de reserva suficientes, capazes de intervir à última hora, inclusive para medidas ofensivas de repressão e dispersão de manifestações ilegais. O exército também foi posto em alerta. Um regimento de para-quedistas foi transferido para as proximidades de Leipzig. Na noite de 9 de outubro, as forças de segurança foram estacionadas nas ruas próximas da Nikolaikirche.

    Os hospitais se prepararam para a chegada de feridos. No fim, a manifestação, apesar de gigantesca e nitidamente representando uma ameaça para o regime, não descambou para a violência. A multidão reagiu com notável moderação às advertências de vários oradores importantes, entre eles o internacionalmente conhecido regente da Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, Kurt Masur. Houve quem dissesse que Honecker ordenara que as forças de segurança não atirassem, pois não queria ser culpado por uma possível guerra civil. Seja como for, Gerhard Strassenberg, o chefe de polícia da cidade, instruiu seus homens a usar as armas apenas para se defender. O dia 9 de outubro em Leipzig representou uma virada. O exército russo de ocupação não apareceu em cena, confirmando que Gorbachev o havia confinado nos quartéis. O 17 de junho de 1953 não se repetira em Leipzig - nem tampouco a Praça Tiananmen.

    A queda de Honecker ocorreu pouco mais de uma semana depois, por simples votação no Birô Político. No dia 9 de outubro, as massas haviam adotado um slogan desafiador: "Nós somos o povo." Até alguns policiais haviam entoado o cântico. Nos dias seguintes, as manifestações se espraiaram pela RDA, chegando a Magdeburgo, Potsdam, Halle, Karl-Marx-Stadt e outras cidades. Krenz e seus companheiros de conspiração começaram a aumentar a pressão sobre Honecker logo depois da partida de Gorbachev. Redigiram um documento reconhecendo os problemas do regime e propuseram medidas corretivas.

    Honecker tentou impedir seu debate no Birô Político, mas não conseguiu. Contava com o apoio apenas de Mittag, o guardião da ortodoxia econômica, e de seu velho amigo íntimo Hermann Axen, assessor de política externa. Confrontado, contudo, Honecker insistiu que não renunciaria. Ninguém teve coragem de forçar a situação.

    Os conspiradores recuaram para reagrupar forças. As linhas telefônicas estavam congestionadas. No dia 16 de outubro de 1989, a maioria dos membros do Birô Político assistia com uma forte sensação de desconforto a uma transmissão secreta da TV da Stasi, filmada com câmeras ocultas em praças e esquinas de Leipzig, mostrando uma enorme multidão - dessa vez, 120 mil pessoas - afluindo pacificamente à reunião da segunda-feira. Entoavam slogans que diziam não apenas "Gorbi! Gorbi!", mas também "O Muro tem de acabar!". Honecker, perplexo, exclamava repetidamente: "Agora, certamente teremos de fazer alguma coisa!" Mas ninguém na sala recomendou o recurso à força. O chefe do estado-maior do exército, general de brigada Fritz Streletz, recusou-se explicitamente a mobilizar seus homens contra os manifestantes. "Não podemos fazer nada", disse. "Pretendemos deixar que tudo siga pacificamente seu curso natural."

    No dia seguinte, 17 de outubro, o Birô Político devia reunir-se. Mielke, que apesar da idade ainda dava um mergulho matinal em sua piscina em Wandlitz, levantou-se ainda mais cedo que o habitual. Telefonou ao chefe da segurança no prédio do Comitê Central, que era, naturalmente, um oficial da Stasi e seu subordinado. O ministro o instruiu a se certificar de que a sala de reuniões fosse guardada por oficiais de confiança. Honecker devia ser impedido de convocar seus próprios guarda-costas ao chegar o momento decisivo. Às 10 horas, a reunião teve início.

    Honecker parecia tranquilo. Abriu a reunião como se tudo estivesse em perfeita ordem e absolutamente normal na RDA, a melhor das Alemanhas. Perguntou então se alguém tinha algo a propor para a pauta do dia. Fez-se um breve silêncio. Até que o presidente do Conselho de Ministros, Willi Stoph, 75 anos, manifestou intenção de falar. Stoph havia muito vinha se mostrando crítico de Honecker em cartas pessoais a Gorbachev, tendo aderido ao grupo de Krenz. Como tudo mais que aconteceu naquela manhã, seus comentários haviam sido combinados com os outros conspiradores.

    "Permita-me, Erich", começou Stoph em seu monótono tom burocrático. "Gostaria de sugerir como primeiro item na pauta: 'Dispensa do camarada Erich Honecker de suas funções de secretário-geral e eleição de Egon Krenz como secretário-geral'." Honecker congelou, deixando o olhar perdido vagar pela sala. Passados alguns momentos, recompôs-se e disse calmamente: "Muito bem, vou então abrir os debates." Ele seria traído por todos, um a um, na sessão de três horas de duração que se seguiu. Até mesmo seu velho escudeiro, o mandachuva econômico Günter Mittag, finalmente se deu conta da direção em que soprava o vento e declarou que Honecker havia "perdido a confiança do partido". Era o mesmo indivíduo que mentira a todo mundo sobre a situação da economia alemã oriental, aquele que podia ser considerado, mais que qualquer outro, o responsável pela situação do país. Os outros membros do Birô Político não conseguiram conter um riso de deboche.

    No fim, votaram pelo afastamento de Mittag também, assim como do chefe da censura à imprensa, Joachim Herrmann. Honecker advertiu, com dureza mas tranquilamente, que sua renúncia não resolveria os problemas da RDA. Mas se era a decisão dos companheiros, teria de curvar-se. A votação pelo afastamento de Honecker foi unânime. No espírito da tradição do "centralismo democrático", o próprio secretáriogeral votou por sua demissão. Sem mais uma palavra, Honecker retirou-se para seu gabinete. Ditou então uma carta, convocando o Comitê Central para uma reunião, no dia seguinte, em que sua demissão seria corroborada. Dirigiu-se então ao telefone e chamou sua mulher, Margot. "Aconteceu", foi tudo que Erich Honecker lhe disse. Desligou o telefone e começou a reunir lenta e metodicamente seus objetos pessoais.

    *

    "Muro de Berlim"
    Autora: Frederic Taylor
    Editora: Record
    Páginas: 574
    Quanto: R$ 69,90
    Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha.

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