• Mundo

    Thursday, 09-May-2024 12:42:52 -03

    França votará reconhecimento de roubo de crianças em ilha africana

    ANNE PENKETH
    DO "GUARDIAN", EM PARIS

    17/02/2014 12h28

    Jean-Jacques Martial tinha seis anos de idade quando chegou ao aeroporto de Orly numa manhã de novembro, trajando short e sandálias de dedo. Tinha sido tirado da guarda de sua avó na ilha francesa de ultramar de Reunião, dentro de um esquema oficial para ajudar a aumentar a população minguante do coração rural da França.

    Ele só tinha uma ideia na cabeça: "Eu ia me educar e denunciar o que tinha acontecido comigo".

    Martial acabou por fazer justamente isso, e na terça-feira (18) a Assembleia Nacional francesa vai encarar esse capítulo vergonhoso da história nacional pela primeira vez. Os deputados vão votar sobre uma moção para reconhecer formalmente o papel exercido pelo Estado no escândalo das "crianças roubadas" de Reunião.

    Entre 1963 e 1982, 1.615 crianças ao todo foram trazidas compulsoriamente do território no oceano Índico, cuja população estava explodindo, para repovoar áreas rurais da França.

    "Eles levaram bebês de apenas 6 meses de idade", comentou Erica Bareigts, uma das deputadas do território responsáveis pela iniciativa.. Famílias pobres e analfabetas foram informadas que seus filhos seriam enviados à França, "e, é claro, imaginaram Paris e a torre Eiffel", disse a deputada.

    "Prometeram que as crianças teriam um lar, teriam estudo e teriam sucesso. Foi dito às famílias que as crianças voltariam nas férias. Mas era tudo mentira."

    Inicialmente, Martial, que hoje tem 55 anos, foi enviado a um orfanato, e então transferido para Gueret, no distrito de Creuse, na França central, onde foi criado por um agricultor idoso e sua esposa.

    Martial relatou suas experiências num livro de memórias, "Une Enfance Volée" (Uma infância roubada). Ele conta que, após quatro anos em Creuse, foi adotado por um casal jovem na cidade portuária de Saint Vaast la Hougue, na Normandia.

    O escândalo só chegou à atenção do público francês maior quando, em 2002, Martial tentou processar o Estado francês, pedindo indenização de €1 bilhão, por "sequestro e deportação de menores".

    "É muito dinheiro, mas quanto vale uma infância roubada?" ele perguntou. Seu processo fracassou porque o caso já havia prescrito.

    Ele retornou a Reunião em 2006, mas vai voltar para a França para assistir ao debate na Assembleia, o último trecho de sua longa jornada em busca de justiça. "Após a Assembleia Nacional, vou virar a página", explicou. "Estou cansado."

    Outra vítima, Simon A-Poi, tinha 12 anos quando foi levado a Gueret, em 6 de setembro de 1966, em um de dois ônibus cheios de crianças de Reunião.

    "Havia crianças de todas as idades –12, 15, 17, até 3", ele recordou no domingo. Simon era órfão; foi tirado da tutela de sua avó, juntamente com seus quatro irmãos e 12 primos. "Fomos a maior família a chegar à região de Creuse."

    "Pensamos que íamos a Paris para ver a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo. Acabamos num orfanato em Gueret. Em outubro, foi a primeira vez que vimos neve. Pensamos que fosse algodão caindo do céu", ele contou a um emissora local de TV de Reunião.

    A remoção forçada das crianças foi idealizada por Michel Debre, ex-ministro gaullista que na época era deputado de Reunião. Em 1963 ele descobriu uma ilha onde o desemprego chegava a 60% e ocorria uma explosão demográfica.

    "Ele deve ter pensado que a remoção das crianças seria uma solução lógica para a população reduzida em outra parte da França. Não levou em conta que a viagem para a França levava dois dias partindo de Reunião, onde fazia 40 graus. Ele ignorou completamente o aspecto humano e a diversidade", disse Bareigts.

    O reassentamento foi organização pelo Escritório governamental do Desenvolvimento da Migração em Territórios de Ultramar, e a maioria das vítimas foi enviada a Creuse. As crianças trabalharam para agricultores ou se tornaram empregadas domésticas de famílias burguesas.

    Algumas se suicidaram, enquanto outras foram internadas em hospitais psiquiátricos. O Escritório foi desativado em 1983, dois anos após a chegada ao poder do presidente socialista François Mitterrand.

    A moção a ser debatida na terça-feira não prevê o pagamento de indenização, mas terá peso moral forte. O texto provisório denuncia a "migração forçada" de crianças da ilha de Reunião e descreve o destino delas como "irreparável".

    A França não é o único país a ter vitimado suas próprias crianças. Em 2008 o governo australiano pediu desculpas pela remoção de estimadas 100 mil crianças aborígenes que foram assimiladas compulsoriamente, entre os anos 1890 e os 1970. Os Estados Unidos e o Canadá tiveram políticas semelhantes para seus povos indígenas.

    O Reino Unido colonial exportou 100 mil crianças para povoar a Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e Canadá, sob o programa "crianças do país de origem".

    E a história de Philomena, hoje vista em um filme indicado ao Oscar, destaca o tratamento dado pela Irlanda a milhares de mães solteiras cujos filhos foram arrancados delas à força pela Igreja Católica.

    Yvan Combeau, historiador de Reunião, observou que a moção francesa não inclui um pedido de desculpas, mas que cada palavra foi pesada cuidadosamente para que os arquivos históricos possam ser abertos.

    "O texto pede reparações através do reconhecimento da história desses exilados. A reparação precisa ser decorrente do conhecimento e reconhecimento dos fatos", ele disse em e-mail.

    "Precisamos analisar a questão sob uma perspectiva política", disse Bareigts. "Reunião era uma colônia. Tivemos escravidão. Não podemos varrer essas coisas debaixo do tapete. Precisamos reconhecer o que aconteceu para que nós e as vítimas possamos deixar isso para trás."

    Tradução de CLARA ALLAIN

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024