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    Cidade natal de papa João 23 se prepara para invasão pós-canonização

    LIZZY DAVIES
    DO "GUARDIAN"

    25/04/2014 11h31

    Gimmy Schiavi está tentando explicar a função da Casa del Pellegrino (Casa do Peregrio), em Sotto Il Monte, mas seu telefone não para de tocar.

    "O quanto antes", ele recomenda a uma mulher que quer saber quando deve fazer as reservas para um grupo de idosos locais que querem visitar o lugar. "O mês de maio já está parecendo que será cheio." Ele oferece à pessoa as opções de uma visita com guia: €25 com almoço e €12 sem.

    "Estamos recebendo ligações sobre muitas coisas diferentes", diz Schiavi. "O dia 27 será uma data fundamental. Para nós, será apenas o ponto de partida. Mas está claro que os pedidos são muitos. As pessoas querem saber o que temos para oferecer, porque somos uma novidade."

    Esta cidade pequena no norte da Itália, próxima aos contrafortes dos Alpes, está mergulhada nos preparativos para a maior data de sua história -a maior, pelo menos, desde 28 de outubro de 1958, quando Angelo Roncalli, quarto filho de Marianna e Giovanni, da casa na via Colombera, tornou-se papa.

    O filho de meeiros converteu seu pontificado, que durou quatro anos e meio, num dos mais importantes do século 20, conquistando legiões de admiradores que o viam como o humilde e simples "bom papa João".

    Hoje seu nome está inscrito em letras brancas numa encosta de montanha, como o nome de Hollywood, e seu retrato benévolo está na parede da seção de sorvetes do café da Casa do Peregrino.

    No domingo, diante de centenas de milhares de pessoas reunidas na praça São Pedro, o papa Francisco vai canonizar este popular pontífice italiano e o papa João Paulo 2º, alçando os dois à condição de santos. E Sotto Il Monte -população total, 4.300 habitantes–, onde Roncalli nasceu e passou seus dez primeiros anos de vida, se prepara para uma invasão.

    A previsão é que entre 5.000 e 6.000 peregrinos lotem a cidade nesse dia, e Schiavi prevê que os 100 mil visitantes recebidos na cidade no ano passado dobrem de número em 2014 e, que, quem sabe, o número continue alto durante anos.

    Desde a Idade Média os lugares associados à vida dos santos se beneficiam economicamente pelo fato de atrair peregrinos, que buscam hospedagem, alimentação e, com frequência, relíquias.

    "A ideia de que os negócios acompanham a devoção e piedade popular vem de muito tempo atrás", comentou a historiadora papal Rebecca Rist, da Universidade de Reading, na Inglaterra.

    Mas Sotto Il Monte não é Assis. A cidade natal de São Francisco, na região de Úmbria, vive principalmente do turismo, recebendo peregrinos e amantes das artes. Já Sotto Il Monte sequer tem um hotel. Todos os sítios da cidade podem ser visitados de graça.

    Os sinais mais evidentes de comércio previsto são encontrados numa lojinha na Casa Natale de João 23, a casa rústica de pedra em que ele cresceu: duas medalhas comemorativas da canonização, por €55 e €45, e uma "bolsa de peregrino" com lenço de pescoço, terço e guia turístico, por €12.

    Não chega a ser uma operação comercial de grande monta. "Oops!" exclama um dos assistentes, vendo que uma foto de Roncalli caiu da caixa de exposição, forrada de veludo vermelho. "O papa tombou."

    Descrito frequentemente como o Papa Bom, o pontífice amistoso que caminhava por Roma e conquistava as pessoas comuns, do mesmo modo como faz hoje o papa Francisco, João 23 é visto por seus admiradores como um dos pontífices mais corajosos e importantes da história.

    Roncalli passou boa parte de sua carreira como diplomata do Vaticano em países que incluíram Bulgária, Turquia e França. Ele convocou o Concílio Vaticano Segundo em 1962 e morreu menos de um ano depois.

    Mas o processo de mudanças que desencadeou sobreviveu a ele, mostrando ser crucial para a capacidade da Igreja de conservar algum grau de relevância na idade moderna.

    O monsenhor Claudio Dolcini, padre de Sotto Il Monte, espera que a canonização alimente novo interesse pelo João 23 real e uma compreensão dele que ultrapasse a ideia do Papa Bom, que ele considera limitada.

    "Se esse homem iniciou uma obra de tal importância (o Vaticano 2) conscientemente, não obstante sua idade avançada, foi porque se deu conta, graças à sua experiência como viajante, como núncio, representante do papa no mundo, que era chegada a hora de a Igreja se atualizar ou correr o risco crescente de revelar a distância que a separava do mundo moderno", ele diz.

    Num esforço para facilitar o percurso dos peregrinos nas ruas tranquilas de Sotto Il Monte, a Casa do Peregrino, criada em 2012, definiu um trajeto que passa por locais que incluem a casa onde Roncalli passou sua infância, a igreja onde ele foi batizado e o santuário onde celebrou sua última missa em sua cidade, antes de tornar-se papa.

    O dinheiro ganhou com as tours é usado pela Associação Papa Giovanni XXIII, sem fins lucrativos, para pagar os guias e os almoços e financiar a renovação e manutenção dos locais visitados, diz Schiavi.

    Atingido nos últimos anos pela mais longa recessão italiana desde o final da Segunda Guerra Mundial, o comércio local prevê um aumento grande em seu movimento neste fim de semana. Depois disso, contudo, o futuro continua incerto, devido à pouca infraestrutura da cidade.

    "As reservas são poucas no momento, devido à crise", explica Pieralberto, dono da pousada Villa Enrica, com três quartos, um dos poucos lugares locais a oferecer hospedagem.

    Ele nota que a grande maioria dos visitantes vem a Sotto Il Monte apenas para passar um dia. Mas Tina, a proprietária de um café, diz que, apesar da previsão de mais visitantes, ninguém pretende subir seus preços.

    "Precisamos passar uma impressão boa", ela explica, tirando do caixa um pequeno mapa caseiro das atrações da cidade.

    Tina sempre foi devota de João 23, antes mesmo de ele ser beatificado, em 2000. "Porque ele era sincero, como o papa Francisco. Ele ficava em contato com o povo."

    É isso que atrai também a Emmanuela e Mauro, um casal de meia-idade de Turim que passeia pela cidade. Eles gostam do charme discreto de Sotto Il Monte e preferem a cidade a Assis, que consideram "comercial demais". "Aqui é mais simples", explica Emmanuela. Como João 23? "Sim, isso mesmo. Muito básico. Normal."

    A CIDADE NATAL DE JOÃO PAULO 2º

    João Paulo 2º é provavelmente a figura mais adorada da história polonesa contemporânea. É também o maior astro do país, mesmo depois de morto. E, embora isso possa soar grosseiro, é provavelmente a maior fonte de renda de sua cidade natal, Wadowice.

    Aqui, antes mesmo de ele ser canonizado, é possível comprar desde fotos emolduradas do papa até a mais famosa atração culinária de Wadowice - os "bolinhos de creme papais", uma delícia favorita de João Paulo. O nome é marca registrada.

    Há museus de João Paulo 2º em Cracóvia e Varsóvia, centenas de estátuas dele espalhadas pelo país, livros incontáveis sobre sua vida (mais comprados que lidos), filmes e peças sobre ele.

    Mas Wadowice é o destino principal de peregrinação. Um museu multimídia de £5,1 milhões foi aberto na casa em que o papa falecido passou sua infância. A exposição acompanha a história de sua vida, desde o período que passou servindo o exército, na juventude, até seu tempo de arcebispo de Cracóvia e seus anos posteriores no Vaticano.

    Tudo está aqui, desde suas meias e tênis até a pistola Browning usada para disparar contra ele em 1981. Os ingressos para o museu de Wadowice custam £25 por pessoa, e o museu espera receber 250 mil visitantes este ano.

    O banco central polonês também está lucrando com o papa. Este mês, lançou 1,7 milhão de moedas comemorativas da canonização de João Paulo. As pessoas aguardaram em filas longas para comprar as moedas, as mais caras das quais custam £1.500, embora algumas pessoas de espírito empreendedor já as estejam revendendo online por muito mais.

    Para alguns, a comercialização do papa morto já passa dos limites. Em janeiro o cardeal Stanislaw Dziwisz, que foi o secretário pessoal de João Paulo, provocou ultraje com um caderno de anotações pessoais do papa feitas entre 1962 e 2003, apesar de o testamento do papa ter ordenado que o caderno fosse incinerado.

    O cardeal disse que não teve coragem de destruí-lo, porque seu valor histórico é grande demais.

    "As autoridades daqui tratam o papa falecido como fonte de renda, com a qual podem ganhar pilhas de dinheiro, nada mais", comentou o estudante Zbigniew Janowski.

    "Muitos comerciantes fazem o mesmo. Eles vendem suvenires de todo tipo e livros diversos sobre o papa, mas provavelmente nunca leram uma página de seus ensinamentos, muito menos refletiram sobre eles", opinou um professor primário local, Tomasz Kowalski.

    O motorista de táxi Darek Wójcik está satisfeito com as coisas do jeito como estão. "Graças ao fato de João Paulo 2º ter nascido aqui, turistas nos visitam e gastam dinheiro em nossa cidade, e isso é bom para nós. Temos orgulho de nosso papa e achamos que ele não teria achado ruim que Wadowice recebesse essa atenção toda."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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