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    Após infância em lixão, ruandês chega a Harvard

    MICHAEL WINES
    DO "NEW YORK TIMES"

    04/11/2014 02h00

    BOSTON - Aos 9 anos de idade e órfão devido ao genocídio étnico, ele morava em um carro queimado, abandonado em um lixão em Ruanda. Vivia de esmolas e ficou mais de um ano sem tomar banho.

    Um dia, quando uma assistente social americana, Clare Effiong, visitou o depósito de lixo, outras crianças debandaram. Justus Uwayesu, porém, ficou onde estava, e ela indagou o motivo. "Eu quero ir para a escola", foi a resposta do menino, que acabou realizando seu desejo.

    Neste ano, Uwayesu entrou na Universidade Harvard com uma bolsa de estudos integral e está cursando matemática, economia e direitos humanos. Com cerca de 22 anos -sua data de nascimento é desconhecida-, ele poderia ser apenas um dos 1.667 alunos do primeiro ano por aqui. Obviamente, porém, ele é diferente.

    Nesses 13 anos desde que escapou, Uwayesu não só ascendeu aos mais altos níveis acadêmicos em seu país. Estudando em Ruanda, ele aprendeu inglês, francês, suaíli e lingala. Além disso, ajudou a fundar uma entidade beneficente para ajudar alunos pobres do ensino médio.

    Ian Thomas Jansen-Lonnquist/The New York Times
    Justus Uwayesu, calouro da Universidade Harvard, passou a infância em um lixão de Ruanda
    Justus Uwayesu, calouro da Universidade Harvard, passou a infância em um lixão de Ruanda

    Originário de um país dominado por dois grupos étnicos -os hutus majoritários e os tutsis, os quais tiveram o maior número de mortos no conflito em 1994-, diz estar encantado com a profusão de nacionalidades e estilos de vida em Harvard. Ele ficou agradavelmente surpreso com a aceitação em relação a alunos assumidamente gays -"não se ouve falar disso em Ruanda"- e perturbado ao ver mendigos morando nas ruas em um país tão próspero que "é difícil distinguir quem é rico e quem não é".

    Ele conta que os quatro colegas de quarto o ajudaram a se adaptar à vida em Boston. No entanto, ainda está tentando entender a cultura americana, que é mais frenética e ruidosa do que a de sua terra natal. "As pessoas fazem tudo rapidamente e se movimentam com pressa. Elas lhe dizem a verdade e contam suas experiências e restrições. Em Ruanda, tratamos os adultos com grande deferência. Não gritamos nem somos brigões."

    Uwayesu tinha somente 3 anos quando seus pais, ambos agricultores analfabetos, morreram em um massacre que ceifou a vida de cerca de 800 mil pessoas em cem dias. Funcionários da Cruz Vermelha o salvaram junto com um irmão e duas irmãs e cuidaram deles até 1998, quando a maré crescente de crianças órfãs fez com que fossem levados de volta a seu vilarejo. Eles chegaram justamente quando a província estava devastada pela seca e pela fome. "Eu fiquei desnutrido", relatou Uwayesu.

    Em 2000, Justus e seu irmão foram a pé para Kigali, capital de Ruanda, com cerca de 1 milhão de habitantes, em busca de comida e ajuda. No entanto, foram parar em Ruviri, lixão nos arredores da cidade que era o lar de centenas de órfãos.

    Justus e outras duas crianças foram morar em um carro abandonado. A partir daí, durante um ano e meio, ele passava o tempo todo procurando comida e abrigo. "Não havia chuveiro nem qualquer possibilidade de tomar banho", relatou. Ele aprendeu a achar caminhões de hotéis que carregavam refugos e a apanhar a comida antes que as cargas fossem dadas a outros órfãos. Uwayesu contou que certa vez quase foi enterrado vivo por um trator que empurrava pilhas de lixo em um buraco.

    Ele passou noites aterrorizado diante da possibilidade de ser atacado por um tigre que supostamente vagava pelo lixão, embora não haja de fato tigres na África. Mendigando nas ruas, ele via um mundo inatingível. "Ao meio-dia", comentou ele, "crianças de uniforme saíam da escola e voltavam para suas casas correndo e brincando. Às vezes, elas me chamavam de nayibobo" -que significa "criança esquecida".

    A Esther's Aid, instituição de caridade fundada por Clare Effiong nos arredores de Nova York, decidiu em 2000 se dedicar a ajudar os órfãos de Ruanda. Certo dia, em 2001, após entregar um contêiner com alimentos e roupas, Effiong viu Justus e outros órfãos e se ofereceu para levá-los a um lugar seguro. "Eu o levei para onde eu estava, o fiz tomar banho, lhe dei roupas limpas, cuidei de suas feridas e posteriormente o enviei para a escola primária", disse ela.

    Ao final do primeiro ano, ele foi o melhor aluno de sua turma. Já no ensino médio, suas notas lhe garantiram uma vaga em uma escola especializada em ciências.

    Uwayesu mudou-se para um orfanato dirigido pela Esther's Aid e depois, junto com suas duas irmãs, para o prédio onde Effiong morava quando estava em Kigali. Ele trabalhou na instituição de caridade, que depois também passou a oferecer uma escola de culinária para meninas e está construindo um campus para órfãos.

    Todavia, ele não teria conseguido concorrer a uma vaga em uma universidade nos EUA sem ajuda externa. Ele entrou no programa Bridge2Rwanda, de um ano de duração, sob direção de uma instituição de caridade em Arkansas que prepara alunos para o processo de entrada na faculdade.

    Durante a década passada, o diretor de admissões internacionais de Harvard percorria a África anualmente em busca de candidatos. No entanto, até este ano, o campus de Cambridge tinha apenas uma estudante de Ruanda, Juliette Musabeyezu, que está no segundo ano.

    Isso, porém, mudou. Dos cerca de 25 inscritos africanos que foram aprovados neste ano, três são de Ruanda, incluindo um segundo bolsista da Bridge2Rwanda.

    Há uma foto dos alunos ruandeses em Harvard na página de Musabeyezu no Facebook, com a legenda: "Finalmente minha gente está aqui".

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