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    Trauma por conta de tsunami persiste na Indonésia após 10 anos

    MARCELO NINIO
    ENVIADO ESPECIAL A ACEH (INDONÉSIA)

    21/12/2014 00h00

    Chaideer Mahyuddin/AFP
    À esquerda, logo após o tsunami, a mesquita era a única construção de pé em um trecho da costa de Aceh (Indonésia); ao lado, a mesma área, reconstruída, em dezembro de 2014
    À esquerda, logo após o tsunami, a mesquita era a única construção de pé em um trecho da costa de Aceh (Indonésia); ao lado, a mesma área, reconstruída, em dezembro de 2014

    O dia 26 de dezembro de 2004 era um domingo qualquer para o pescador Usman Rayeuk, 54. Ele levantou cedo, saiu de casa em silêncio para não acordar a mulher e os quatro filhos, e foi até a beira do mar, onde mantinha um viveiro de peixes.

    Nascido e criado na cidade de Banda Aceh, na ponta norte da ilha indonésia de Sumatra, Usman estava habituado a tremores de terra. Mas nunca havia sentido nada parecido com o que estava por vir. Pouco depois das 8h, foi sacudido por um estrondo. "Parecia uma bomba", relembra.

    O terremoto, de 9,3 na escala Richter, foi tão forte que Usman mal conseguia ficar de pé. Correndo com dificuldade no chão de terra batida que ainda tremia, montou em sua moto e arrancou, perseguido por uma onda de seis metros. As águas foram mais rápidas: quando chegou, a casa já estava inundada quase até o teto.

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    "Parecia um liquidificador, nada ficava parado", conta Usman. Com enorme esforço, conseguiu segurar a mulher e o filho mais novo, de dez anos, mas não por muito tempo. A correnteza carregou a família inteira e ele nunca mais os viu de novo. Só achou os outros dois filhos cinco dias depois. No total, perdeu 27 parentes no tsunami. "Passei dois anos chorando", diz.

    Dez anos após um dos piores desastres naturais da história, Aceh há tempos concluiu os trabalhos de reconstrução, amparados por US$ 7,2 bilhões (cerca de R$ 15 bi) que jorraram em ajuda internacional. Todos os desabrigados ganharam novas habitações e muitos vilarejos conheceram benfeitorias que não havia antes do tsunami, como escolas e ruas asfaltadas.

    Mas bastam uns minutos com os moradores para perceber que o trauma está longe do fim. Parecem saídos de uma guerra: todos têm uma história de perda e sobrevivência. Das cerca de 230 mil mortes causadas pelo tsunami em 14 países, 167 mil foram na Indonésia.

    Para ajudar os sobreviventes a lidar com tamanha dor, a assistência humanitária incluiu o envio de psicólogos e outros especialistas em pós-trauma. Mas o fator central para a recuperação foi a fé islâmica, professada por 98% da população. Aceh (pronuncia-se atche) é a província mais religiosa da Indonésia e a única onde é aplicada a "sharia", a lei islâmica.

    "O islã ensina a aceitar o destino", diz o imã (sacerdote muçulmano) Tergku Muhammad Amin, 60. Quando veio o tsunami, ele estava preso, acusado de terrorismo em meio à guerra civil que Aceh vivia na época, entre governo e rebeldes separatistas. Isolada do mundo e sob lei marcial, Aceh era um lugar de difícil acesso e sob constante tensão.

    Marcelo Ninio/Folhapress
    Tergku Amin aproveitou o Tsunami para fugir da prisão
    Tergku Amin aproveitou o Tsunami para fugir da prisão

    O desastre trouxe a paz. O tsunami levou a um cessar-fogo, pavimentando o caminho para o acordo de paz assinado em 2005, sob mediação finlandesa. Submissos à vontade divina, muitos se perguntam se a tragédia não foi um castigo dos céus pelos 29 anos de luta fratricida.

    O conflito também teve um efeito perverso quando houve a inundação. Temendo os confrontos, muitos moradores de Aceh se afogaram ao evitar locais elevados nas montanhas, onde os combatentes do grupo separatista Gam (Movimento de Libertação de Aceh) se escondiam.

    Hoje o partido ligado ao antigo Gam tem a maior bancada no Legislativo e o governo da província. Mas os ex-rebeldes não estão satisfeitos.

    "O acordo de paz previa autonomia na maioria dos assuntos, mas em muitos casos isso não ocorre, como na educação", diz Nurzahri, um corpulento e sorridente ex-combatente que estava embrenhado na floresta quando ocorreu o tsunami. "Se houvesse referendo, a maioria votaria pela independência."

    Hosni Calang tinha 7 anos quando ocorreu o tsunami e pouco lembra do conflito. Mas não esquece nenhum detalhe daquele domingo em que uma onda gigante arrasou o seu vilarejo.

    "Eu estava brincando na rua com outros meninos quando alguém disse que o mar havia recuado e todo mundo correu para pegar os peixes que tinham ficado", conta Hosni que perdeu os pais e os três irmãos e vive num orfanato mantido por uma organização islâmica.

    "A minha sorte foi que um vizinho viu que a onda estava chegando, me colocou na garupa da moto e me salvou."

    PESADELOS

    Como a maioria dos sobreviventes, o hoje adolescente continua tendo pesadelos sobre o desastre, sem falar no medo de um novo tsunami.

    "A questão não é se um novo grande terremoto acontecerá, mas quando", diz Hamza Latif, do Centro de Pesquisa de Tsunami, em Aceh. "Estamos numa zona de fricção entre placas tectônicas, a única coisa que podemos fazer é investir em prevenção. Nesse ponto, há muito o que fazer."

    Ele conta que Aceh só tem cinco "prédios de escape", projetados para resistir a um desastre como o de 2004, entre eles a sede do centro de pesquisa e o imponente Museu do Tsunami. As simulações de desastre são raras, e o sistema de alerta decepcionou em testes recentes, quando parte das boias transmissoras não funcionou.

    Em todo caso, o sistema é bem melhor que dez anos atrás. Quase todos os países banhados pelo oceano Índico estão conectados por uma rede de equipamentos no mar que transmitem movimentos sísmicos para satélites.

    "O sistema mais eficiente de prevenção é a educação. Não adianta alertar se as pessoas não sabem como reagir. Os treinamentos deveriam ser obrigatórios", diz Latif.

    Cercada de praias paradisíacas, Banda Aceh é uma cidade quase sonolenta. A única diversão, além do mar, são as centenas de cafeterias, uma marca da cidade. Há poucos estrangeiros. A maioria dos turistas está de passagem para a ilha de Sabanga, em geral surfistas.

    Por trás do sorriso fácil e das camisas multicoloridas que são tradição local, os moradores não escondem a dor pela memória dos que se foram. Há três cemitérios com covas coletivas, cada um com 40 mil mortos. Todos sepultados sem identificação.

    O escritor Azhari, 33, estava viajando quando ocorreu o tsunami. Ao voltar, seu vilarejo havia sumido do mapa. Perdeu pai, mãe e irmãos. Mais de cem parentes no total. Quando visita os cemitérios, onde muitos deles estão sepultados, Azhari sente-se desorientado. "A pergunta que me vem é: por que só eu sobrevivi? E para quê?".

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