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    Sobrevivente lembra ataque aliado a Dresden, que matou 25 mil há 70 anos

    KATE CONNELLY
    DO "GUARDIAN", EM DRESDEN (ALEMANHA)

    13/02/2015 12h28

    O dia 13 de fevereiro de 1945 começou como outro qualquer para Eberhard Renner, de 12 anos. Ele caminhou de sua casa, na rua Canaletto, para o bairro de Neustadt, em Dresden, querendo comprar equipamentos novos para seu conjunto de química.

    "Era a época do carnaval, e me lembro de ver crianças na rua fantasiadas e brincando. Meus pais me proibiam de fazer isso porque estávamos em guerra e soldados estavam morrendo, então não parecia apropriado nesse contexto. Me lembro de ter passado o dia fazendo experiências. Meu pai era dentista, e seu consultório ficava em casa. Ele recebeu os pacientes como de costume, incluindo o príncipe Ernst Heinrich da Saxônia, que tinha uma relação ambígua com os nazistas."

    O garoto já tinha ido se deitar, com a cabeça ocupada com seus experimentos de química, quando soou o primeiro alarme de ataque aéreo, por volta das 21h45.

    "Os avisos de ataque aéreo aconteciam quase diariamente desde dezembro, então não dei bola, e num primeiro momento eu não quis sair da cama. Mas desci para o térreo, mesmo assim. Não havia nada de especial para indicar o que estava prestes a acontecer."

    Ele e seus pais ouviram o rugido dos bombardeiros à distância, mas pensaram que os aviões estavam indo atacar Chemnitz ou Leipzig. Então viram as chamadas "árvores de Natal" -sinalizadores de magnésio que desciam de paraquedas para iluminar a cidade.

    "Mesmo com isso, tínhamos tanta certeza de que Dresden era invencível que não pensamos que fosse mais que uma missão de reconhecimento", ele recordou. Seus pais lhe disseram que os pilotos inimigos estavam apenas fazendo fotos e que iriam embora logo.

    "Foi só quando as bombas começaram a cair que percebemos que tinha chegado a vez de Dresden", contou Renner, que hoje tem 82 anos.

    "Primeiro atiraram as bombas explosivas para expor os telhados. Depois vieram as bombas incendiárias, para causar os danos reais -uma estratégia inglesa bem estudada. Quando isso aconteceu, já estávamos sentados no nosso porão, e a cada minuto que passava eu sentia mais medo. Uma bomba explodiu no nosso jardim e empurrou a porta do porão na direção minha e de minha mãe, mas por sorte não nos ferimos."

    Os ataques inesperados pegaram de surpresa os Renner e a cidade como um todo. Os moradores de Dresden achavam tão improvável que a Real Força Aérea britânica ousasse bombardear sua linda cidade barroca, especialmente nessa fase final da guerra, que mal tinham se preparado para essa eventualidade.

    A RAF atacou Dresden em duas ondas em 13 de fevereiro, com um total de 800 aviões. As condições meteorológicas eram perfeitas, com uma noite de céu claro e um período de clima seco que propiciaram visibilidade perfeita e tornaram a cidade altamente inflamável.

    "Outras cidades tinham aprendido a enfrentar bombardeios -os ataques aéreos eram comuns em cidades como Colônia ou Hamburgo, onde a população sabia apagar os incêndios e conhecia a importância de evitar boa parte da destruição. Mas em Dresden, a única coisa que tínhamos eram alguns baldes de areia e água nas casas, e, em vez de tentar combater as chamas, a reação instintiva das pessoas foi fugir."

    "Os habitantes de Dresden sempre tiveram uma visão exagerada de sua própria importância, e isso os levou a pensar que os ingleses eram cultos demais para destruir uma cidade como Dresden, a chamada Florença à margem do Elba. Éramos incrivelmente ingênuos."

    Renner e seus pais ficaram sentados ao lado do zelador e sete outros moradores no porão do prédio, um edifício da virada do século num bairro arborizado a 200 metros da fábrica da Volkswagen. Para matar a sede, tomaram vinho Bordeaux recebido de presente do tio de Renner, já que não tinham achado necessário guardar alimentos e água no porão para casos de emergência.

    "Então ouvi meu pai, que não era um homem corajoso, mesmo nos melhores momentos, dizer algo que teria sido impensável dias antes", recordou Renner, engenheiro e arquiteto aposentado que ainda vive em Dresden.

    "'São esses criminosos que temos que agradecer por isto', ele falou", aludindo a Adolf Hitler.

    Como muitas pessoas, a guerra o tinha feito abrir os olhos. "Até então era sempre 'cuidado com o que você fala na frente das crianças'. Agora ele estava expressando sua opinião abertamente diante dos vizinhos! E ninguém o contradisse."

    "Até aquela hora, não tínhamos realmente sentido a guerra de perto. Não tínhamos passado fome. Tínhamos continuado a viver nossa vidinha pequeno-burguesa. Naquela hora, no porão, a verdade apareceu como um tapa na cara do meu pai, que tinha votado nos nazistas em 1933. De repente ele percebeu que foi o maior erro de sua vida."

    Depois da primeira onda de bombas, que durou apenas uns 15 minutos, Eberhard e seus pais saíram do porão e viram a cidade envolta numa intensa tempestade de fogo.

    "Nosso prédio estava ileso, mas a casa ao lado, onde vivia um médico que conhecíamos, estava em chamas. Todos os moradores estavam lá dentro, sem conseguir sair. Ficamos vendo a casa queimar, mas não sentimos solidariedade. Não passou por nossa cabeça tentar salvar as pessoas presas lá dentro. A única coisa que fizemos foi arrancar as cercas de nosso jardim para longe do fogo, para que não pegassem fogo."

    "Quando penso nisso, essa falta de empatia ainda me deixa espantado. Foi apenas depois da guerra, quando as pessoas enfrentaram dificuldades enormes, que ficamos mais dispostos a ajudar uns aos outros."

    Durante a segunda onda de bombardeios, muito mais intensa, a casa dos Renner foi atingida, e em pouco tempo estava em chamas. A família colocou num carrinho de mão de madeira uma lata de ouro usado por seu pai no consultório dentário e alguns cobertores.

    As vigas de madeira do prédio já estavam em chamas. "Eu queria subir correndo para nosso apartamento e salvar meus ratinhos brancos", Renner recordou. "Mas minha mãe não me deixou. Aquele foi sem dúvida o pior momento de todos para mim."

    Eles correram em ziguezague pelas ruas de Dresden, empurrando o carrinho de mão, desviando-se de bombas semienterradas nas calçadas, escombros em chamas e cadáveres espalhados. Atravessaram o grande parque, onde, segundo boatos, leões escapados do zoológico danificado pelo bombardeio estavam andando soltos, e foram se refugiar na casa de alguns dos pacientes de seu pai na periferia da cidade.

    Oito dias depois, pegaram carona para voltar a Dresden e ter uma visão rápida da destruição. "Muitas casas ainda estavam em chamas", contou Renner.

    "A cidade inteira fedia a fumaça, e vimos muitos, muitos corpos. Muitos tinham explodido devido à pressão das bombas e muitos estavam queimados. Me lembro de ver o cadáver de uma mulher arqueada para baixo, com a mão totalmente enegrecida apontando para o ar e sua aliança de ouro brilhando ao sol, intacta."

    Na praça Altmarkt Renner viu quase 7.000 corpos empilhados, aguardando ser incinerados, devido ao medo de uma epidemia. "É espantoso o que uma criança é capaz de encarar", ele comentou. "Eu encarei tudo sem me abalar."

    Eles foram para seu porão, que, espantosamente, ainda estava intacto, e tiraram seus pertences que tinham restado, incluindo porcelanas de Meissen e objetos de prata, todos enegrecidos.

    Olhando em retrospectiva, Renner disse: "Todo o mundo sabia o que os nazistas estavam fazendo, incluindo a perseguição aos judeus. Quem quiser negar isso hoje está mentindo." Ele se recorda de uma vez quando foi a Berlim com seus pais no trem S-Bahn, lembrando o momento em que passaram ao lado do campo de concentração de Sachsenhausen.

    "O campo era visivelmente rodeado por cercas de arame farpado. Mas, quando perguntei o que era, Papai ficou calado."

    Quando ele se recorda hoje da noite em que Dresden foi bombardeada, ele recorda "o som estridente das bombas, o pavor que tomou conta de mim e o fedor".

    Renner insiste que o bombardeio de Dresden encurtou a guerra, sem dúvida, "salvando a vida de alguns soldados e outras pessoas que, de outro modo, teriam morrido. E sem dúvida Hitler foi o culpado pelo bombardeio. Mas sempre terei que questionar se foi realmente necessário matar 25 mil civis."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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