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    Médico 'curado' do ebola descobre vírus escondido no olho

    DENISE GRADY
    DO "NEW YORK TIMES", EM ATLANTA (EUA)

    08/05/2015 16h14

    Quando recebeu alta do Emory Hospital em outubro, depois de uma longa e brutal luta contra o ebola que quase lhe custou a vida, a equipe médica do Dr. Ian Crozier acreditava que ele estivesse curado. Mas menos de dois meses mais tarde, ele estava de volta ao hospital, com perda de visão, dores intensas e alta na pressão de seu olho esquerdo.

    Os resultados dos testes foram assustadores: o olho de Crozier estava repleto de vírus do ebola.

    Os médicos ficaram atônitos. Haviam considerado a hipótese de que o vírus tivesse invadido o olho do paciente, mas não esperavam encontrá-lo lá. Haviam se passado meses desde que Crozier adoecera, trabalhando em uma clínica de tratamento do ebola em Serra Leoa como voluntário da Organização Mundial de Saúde (OMS). Quando ele recebeu alta do Emory, não havia ebola em seu sangue.

    Emory Eye Center- 30.dez.2014/The New York Times
    Vírus do ebola se escondeu no olho esquerdo do Dr. Ian Crozier mesmo após ter recebido alta
    Vírus do ebola se escondeu no olho esquerdo do Dr. Ian Crozier mesmo após ter recebido alta

    Ainda que o vírus possa persistir no sêmen por meses, imaginava-se que os demais fluidos corpóreos ficassem limpos após a recuperação de um paciente. Quase nada era sabido sobre a capacidade do ebola de sobreviver dentro do olho.

    A despeito da infecção presente em seu olho, as lágrimas e a superfície do olho de Crozier não mostravam sinal do vírus, e por isso ele não representava risco para qualquer pessoa com quem tivesse contato casual.

    Mais de um ano depois que a epidemia de ebola na África Ocidental foi identificada, médicos continuam a aprender quanto ao curso da doença e seus efeitos persistentes sobre os sobreviventes. Informações sobre as decorrências do ebola eram limitadas, até agora, porque os surtos anteriores foram pequenos: no máximo algumas centenas de casos, frequentemente com índices de mortalidade de entre 50% e 80%. Mas agora que pelo menos 10 mil pessoas sobreviveram à doença na Guiné, Libéria e Serra Leoa, alguns padrões estão emergindo.

    Crozier, 44, se define melancolicamente como o homem-símbolo da "síndrome do pós-ebola". Além dos problemas oculares, ele sofre de dores debilitantes nas juntas e músculos, fadiga profunda e perda de audição.

    Problemas semelhantes estão sendo reportados na África Ocidental, mas não se sabe o quanto eles são comuns, severos ou persistentes. Houve relatos de sobreviventes acometidos de cegueira ou surdez completa, mas são informações episódicas e não confirmadas.

    Os médicos dizem que os problemas oculares, por ameaçarem a visão, são a parte mais preocupante da síndrome e aquela que mais precisa de atenção. A condição de que sofre Crozier, a uveíte —uma perigosa inflamação no interior do olho— também foi diagnosticada em africanos ocidentais que sobreviveram ao ebola.

    No pico da epidemia, os profissionais da saúde estavam ocupados demais tratando dos doentes para que se preocupassem com os sobreviventes. Mas agora que o surto está se dissipando, a OMS começa a recolher informações sobre as pessoas que não se recuperaram plenamente, diz o Dr. Daniel Bausch, consultor sênior da OMS e especialista em doenças infecciosas na Universidade de Tulane. Ele acrescentou que as informações sobre problemas oculares são especialmente preocupantes.

    "É algo de importante que temos de estudar e para o que necessitamos oferecer apoio", disse Bausch.

    Mas praticamente não existem oftalmologistas na África Ocidental, e só eles têm o conhecimento e o equipamento necessários a diagnosticar condições como a uveíte, que afetam as câmaras internas dos olhos.

    Quando começaram os problemas oculares de Crozier, ele e a equipe da Emory suspeitavam de que o ebola tivesse debilitado seu sistema imunológico, deixando-o vulnerável a algum outro vírus que invadira seu olho e que talvez fosse possível tratar o problema com um medicamento antiviral.

    Por isso, o oftalmologista Dr. Steven Yeh perfurou o olho de Crozier com uma agulha finíssima, extraiu algumas gotas de fluido da câmara interna e as enviou ao laboratório. O resultado foi um choque.

    Kevin Liles - 27.mar.2015/The New York Times
    Dr. Ian Crozier, médico que contraiu ebola no olho esquerdo. "Foi como uma agressão. Pessoal demais"
    Dr. Ian Crozier, médico que contraiu ebola no olho esquerdo. "Foi como uma agressão. Pessoal demais"

    Para Crozier, foi profundamente perturbador descobrir que seu corpo continua ocupado por algo que ele vê como alienígena e malévolo. "Parecia pessoal, de alguma forma, que um vírus pudesse estar no meu olho sem meu conhecimento", disse.

    A uveíte havia sido reportada em alguns sobreviventes de surtos anteriores do ebola, e o vírus da Doença de Marburg, um problema relacionado, foi identificado no olho de um paciente. Mas esses casos pareciam incomuns.

    Um artigo sobre a condição dos olhos de Crozier foi publicado na terça-feira (7) pelo "New England Journal of Medicine".

    O interior do olho em geral não está sujeito a atividades do sistema imunológico, para evitar inflamações que poderiam prejudicar a visão. As barreiras não são compreendidas inteiramente, mas incluem células densamente aglomeradas em minúsculos vasos sanguíneos que bloqueiam a passagem de certas células e moléculas, bem como propriedades biológicas únicas que inibem o sistema imunológico.

    Mas essa proteção, conhecida como privilégio imunológico, pode ocasionalmente fazer do interior do olho um santuário para vírus, onde eles podem se reproduzir sem repressão. Os testículos também contam com o privilégio imunológico, o que explica por que o ebola pode persistir no sêmen durante meses.

    A grande questão era determinar se os médicos conseguiriam salvar a visão de Crozier. Eles estavam preocupados com os dois olhos, porque problemas em uma vista podem em certas ocasiões afetar a outra. Mas não existe medicamento antiviral que funcione comprovadamente contra o ebola e, mesmo que existisse, não havia precedente para tratar de um olho sob pesado ataque do vírus.

    Além disso, a severa inflamação sugeria que as barreiras que normalmente isolam o olho do sistema imunológico haviam sido violadas. Assim, o que estava causando dano ao olho de Crozier? O vírus, a inflamação ou os dois? Não havia como ter certeza.

    O tratamento usual para a inflamação são esteroides. Mas eles podem agravar uma infecção. "E se eles servissem como gatilho ao vírus?", disse Crozier. "Estávamos andando em uma corda bamba".

    O maior choque surgiu certa manhã, cerca de 10 dias depois que os sintomas se manifestaram, quando Crozier se olhou no espelho e percebeu que seu olho havia mudado de cor. A íris, normalmente azul brilhante, estava verde. Infecções virais severas podem, em raros casos, causar tal mudança de cor, e ela é em geral permanente.

    "Foi como uma agressão", ele disse. "Pessoal demais".

    À medida que os dias passavam, sem sinal de melhora, Crozier e a equipe do Emory começaram a calcular que ele tinha pouco a perder. O Dr. Jay Varkey, especialista em doenças infecciosas que havia supervisionado boa parte do tratamento de Crozier, recebeu permissão especial da Food and Drug Administration (FDA, a agência federal norte-americana que regulamenta e fiscaliza alimentos e remédios) para usar um medicamento antiviral experimental, ministrado em forma de pílula (os médicos não quiseram citar seu nome, preferindo preservar a informação para futuro artigo em publicação médica). Não estavam nem mesmo certos de que o remédio chegaria ao olho de Crozier.

    Para reforçar o tratamento contra a inflamação, Yeh também ministrou a Crozier uma injeção de esteroides acima do olho esquerdo, para liberar lentamente o medicamento para o olho.

    Inicialmente, não parecia haver efeito. Mas certa manhã, mais ou menos uma semana mais tarde, Crozier percebeu que ao menear a cabeça, conseguia encontrar "portais" e "túneis" nas obstruções de sua visão e enxergar seu irmão Mark, que estava sentado na ponta de sua cama.

    Gradualmente, em alguns meses, sua visão retornou. Surpreendentemente, seu olho voltou a ser azul. Um vídeo o mostra empolgado, lendo as letras em uma cartela de teste de vista, descendo em direção a tamanhos cada vez menores, com seu irmão e os médicos que o atenderam rindo enquanto assistiam.

    Foi o remédio antiviral? Ele não tem certeza, mas acredita que sim.

    "Creio que a cura veio do sistema imunológico de Ian", disse Varkey, explicando suspeitar que o tratamento tenha reduzido os sintomas de Crozier e o ajudado a preservar a visão por tempo suficiente para eliminar o vírus —da mesma forma que o tratamento de manutenção da vida, na fase inicial e mais grave da doença, o havia conservado vivo até que suas defesas naturais pudessem assumir a tarefa.

    Crozier acredita que as informações sobre seu caso possam ajudar a prevenir cegueira em sobreviventes do ebola na África Ocidental. Em 9 de abril, ele visitou a Libéria com Yeh e diversos outros médicos do Emory para ver pacientes que se recuperaram do ebola e examinar seus olhos.

    "Talvez possamos mudar a história natural da doença, para os sobreviventes", disse Crozier. "É uma conversação que desejo iniciar".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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