Único de sua família a sobreviver ao genocídio de Ruanda (África), em 1994, aos 11 anos, N.S., ativista de direitos humanos, diz que a situação no vizinho Burundi é muito semelhante à dos ruandeses antes da matança.
Em Ruanda, com a saída das tropas da ONU, mais de 1 milhão de pessoas de todas as idades morreram em cem dias, na maioria tutsis e hutus contrários ao genocídio.
Dez anos depois, Kofi Annan, que dirigia as Operações de Manutenção da Paz da ONU em 1994, se desculpou e disse que poderia ter feito mais para evitar o massacre.
"A Comunidade do Leste Africano e a União Africana não deveriam se distrair com as brincadeiras do presidente Pierre Nkurunziza, mas agir enquanto há tempo. EUA e União Europeia parecem esperar por outro banho de sangue", afirma N.S., revoltado.
"Não posso nem falar da ONU: falhar faz parte de sua identidade", prossegue o ativista, que cita pesquisadores independentes segundo os quais barcos do Congo carregados de armas rumam a Bujumbura, capital do Burundi.
"Nkurunziza está de volta e prometeu lutar com quem estiver em seu caminho. O que houve, afinal? Golpe de Estado ou a piada do ano? O que acontecerá a seguir? Mais refugiados? Mais mortes? Rezem por nossa região."
HISTÓRICO
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Há décadas o Burundi vive conflitos entre tutsis (14%) e hutus (85%), as mesmas etnias do massacre em Ruanda.
Doze anos de guerra civil, com ao menos 300 mil mortos, chegaram ao fim em 2005 com eleições multipartidárias. Venceu o principal grupo de ex-rebeldes hutus, que nomeou Nkurunziza presidente.
Em 2010, só ele disputou a eleição presidencial, marcada por ataques com granadas na capital, intimidação de eleitores por policiais e soldados e acusações de fraude.
Em abril deste ano, Nkurunziza anunciou que disputará o terceiro mandato, violando o acordo de paz de 2000 e a Constituição do país, que veta mais de dois mandatos presidenciais seguidos.
Revoltada, a população tomou as ruas de Bujumbura. Pelo menos 50 opositores foram mortos em quatro semanas. Polícia e Exército vêm barrando os protestos com tiros de armas de fogo, gás, jatos d'água, prisões e torturas a adversários do presidente.
A violência crescente, somada ao trauma da guerra civil, levou mais de 105 mil burundienses a fugirem para Ruanda, Tanzânia e República Democrática do Congo.
Segundo a rede BBC, alguns refugiados dizem que foram ameaçados por membros do Imbonerakure, milícia formada por jovens do partido no poder, CNDD-FDD.
"Essa milícia tem muitas semelhanças com as de hutus que protagonizaram o genocídio de Ruanda. Isso não pode ser negligenciado pela comunidade internacional", alerta Lionelle Kingsley Bio, burundiense radicada em Londres e vice-presidente de um grupo de exilados no país.
"É simplista afirmar que o atual conflito é étnico. Temos hutus e tutsis nas ruas pedindo que Nkurunziza respeite a Constituição e desista do terceiro mandato", acrescenta.
O belga Bernard Maingain, advogado da sociedade civil do Burundi, atenta para o risco de o conflito atingir dimensão regional. Também relata transferência de armas para o país e afirma que o Imbonerakure foi formado pela FDLR, milícia hutu de ideologia genocida baseada no Congo.
A população pede que as eleições de 26 de junho sejam realizadas por organização independente, diz o advogado.
GOLPE FRUSTRADO
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O parteiro J.H., 26, contrário ao presidente, chegou a tentar refúgio no Brasil. Com a intensificação dos conflitos, pediu ajuda a amigos de Ruanda para deixar o Burundi o mais rápido possível.
Em 13 de maio, seus planos mudaram. O major-general Godefroid Niyombare, demitido em fevereiro da chefia da inteligência do governo ao sugerir que o presidente desistisse do terceiro mandato, aproveitou viagem de Nkurunziza à Tanzânia para anunciar sua deposição no rádio.
Milhares tomaram as ruas de Bujumbura para comemorar o golpe, cantando e dançando com galhos de árvores nas mãos. Entre eles, J.H.
A deposição, porém, fracassou. Segundo a agência Reuters, muitos envolvidos no golpe estão presos, mas Niyombare continua foragido.
"Corremos risco de vida, mas não vamos parar", diz J.H. sobre os protestos. "O próprio Exército está dividido: alguns soldados atiram contra nós, outros se recusam. A polícia tem sido mais violenta."
Ele afirma que o governo sempre controlou a mídia do Burundi. Desde o golpe frustrado, todas as rádios e TVs privadas do país foram silenciadas. Os jornalistas de oposição, diz, estão foragidos ou sofrendo tortura na prisão.
No dia 15, policiais invadiram um hospital -local até então poupado no país- em busca de opositores e atiraram, matando pacientes.
Nkurunziza voltou da Tanzânia em 15 de maio e só falou à imprensa internacional dois dias depois. Questionado sobre a tentativa de golpe e a crise, ele mudou de assunto dizendo que o país enfrentou uma ameaça do grupo radical islâmico Al Shabaab.
O porta-voz do grupo, Sheik Ali Mahmoud, negou e disse que Nkurunziza quer desviar a atenção do mundo da crise em seu país.