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    De pai negro, miss japonesa luta contra a discriminação em seu país

    MARTIN FACKLER
    DO "NEW YORK TIMES", EM TÓQUIO (JAPÃO)

    01/06/2015 12h32

    Quando Ariana Miyamoto foi coroada Miss Universo Japão 2015, outras participantes disseram que ela roubou o espetáculo com seu andar provocante, sorriso contagiante e uma autoconfiança que não parece natural para alguém de apenas 21 anos. Mas não foram só sua beleza e sua postura que atraíram a atenção nacional para ela.

    Miyamoto é uma das pouquíssimas "hafu", ou japonesas de etnia mista, a vencer um grande concurso de beleza em um Japão orgulhoso de sua homogeneidade. E é a primeira mulher com ascendência negra a fazê-lo.

    A vitória de Miyamoto lhe vale o direito de representar o Japão na porção internacional do concurso de Miss Universo, marcada para janeiro. Ela diz que espera que sua participação — ou ainda melhor, uma vitória — leve mais japoneses a aceitar os hafu. Mas o Japão ainda tem um longo caminho a percorrer, disse.

    Toru Yamanaka - 7.,ai.2015/AFP
    A miss japonesa Ariana Miyamoto relata sofrer discriminação em seu país
    Ariana Miyamoto venceu o concurso Miss Universo Japão 2015

    Mesmo depois de sua vitória na porção nacional do concurso, jornalistas locais demonstraram dificuldade em aceitá-la como japonesa.

    "Os repórteres sempre me perguntam qual das minhas partes é mais semelhante a uma japonesa", diz Miyamoto, que tem as longas pernas de uma top model internacional mas mostra a mesma timidez e reserva das demais jovens japonesas. "E sempre respondo que sou japonesa".

    "Minha esperança era que vencer o Miss Universo Japão os levasse a reparar no fato", ela acrescentou.

    Isso pode demorar um pouco. Depois da vitória, algumas pessoas postaram mensagens online criticando os juízes por escolher alguém que não parece japonesa.

    "A Miss Universo Japão não deveria ter um rosto verdadeiramente japonês?", questionou um desses críticos.

    Mas grande número de japoneses parece ter saído em sua defesa. "Por que uma cidadã japonesa, nascida e criada no Japão, não pode simplesmente ser encarada como japonesa?", questionava um apoiador de Miyamoto.

    Filha de um casamento pouco duradouro entre um marinheiro negro dos Estados Unidos e uma mulher japonesa, Miyamoto cresceu no Japão, onde diz ter sido rejeitada pelas outras crianças por conta da cor de sua pele e de seus cabelos cacheados.

    Essa experiência a levou a usar sua vitória no concurso de beleza como palanque para conscientizar as pessoas sobre as dificuldades dos cidadãos de etnia mista em um país que ainda se encara como monoétnico.

    "Ainda hoje, as pessoas usualmente não me veem como japonesa, mas como estrangeira. Nos restaurantes, recebo o cardápio em inglês e me elogiam porque sei comer com os hashis", disse Miyamoto, falando em japonês. Ela é uma calígrafa muito competente de caracteres japoneses no alfabeto kanji, derivado do chinês. "Quero desafiar a definição do que é ser japonês".

    A missão que ela assumiu provoca estranheza em um momento no qual as relações raciais estão passando por novo escrutínio no Japão, que há muito se vê como imune às tensões étnicas dos Estados Unidos.

    Planos da TV Fuji para um show musical que usaria cantores maquiados como negros foram cancelados depois de muita pressão de grupos de combate ao racismo. Um escritor de direita, antigo assessor do primeiro-ministro Shinzo Abe, também despertou irritação no país e no exterior ao defender uma segregação de raças ao estilo do apartheid.

    No entanto, muita gente vê a vitória de Miyamoto como prova de que o Japão lentamente começa a adotar uma imagem mais multicolorida.

    Com a imigração aberta ainda restrita a poucas pessoas por ano, boa parte da diversidade que o Japão começa a encontrar surge de filhos de casamentos entre japoneses e estrangeiros. Esses hafu — um termo que deriva da palavra inglesa "half", "meio" — vem conquistando proeminência social cada vez maior, especialmente no esporte e na televisão.

    Os japoneses de etnia mista respondem por proporção pequena mas crescente da população geral. De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de 20 mil crianças com pelo menos um progenitor não japonês nascem no país a cada ano, ou 2% dos nascimentos totais.

    Toru Yamanaka/AFP
    Miyamoto venceu o concurso Miss Universo Japão 2015
    A miss japonesa Ariana Miyamoto relata sofrer discriminação em seu país

    "Ariana nos dá nova oportunidade de desafiar as velhas suposições de que você precisa parecer japonês para ser japonês", disse Magumi Mishikura, que é meio japonesa e meio norte-americana de ascendência irlandesa, e codirigiu "Hafu", documentário de 2014.

    Miyamoto disse que teve de aguentar insultos enquanto crescia em Sasebo, um turbulento porto no sul do país onde a família de sua mãe a criou, depois que seu pai deixou o Japão, quando ela ainda era pequena.

    Na escola, ela conta, outras crianças e até pais a chamavam de "kurombo", um termo japonês de insulto racial aos negros. Os colegas tinham medo de segurar sua mão com medo de que a cor dela se espalhasse a eles.
    "Eu chegava em casa zangada com minha mãe", conta Miyamoto. "Perguntava por que ela me fez tão diferente".

    Mas Miyamoto conta que tudo mudou aos 13 anos, quando decidiu fazer contato com o pai, que a convidou a visitá-lo em sua casa em Jacksonville, Arkansas. Ela diz que jamais esquecerá o momento em que primeiro viu seu pai e outros parentes.

    "Eles tinham a mesma pele e rosto que eu", diz. "Pela primeira vez, me senti normal".

    Ela disse que, nos Estados Unidos, começou a se descrever como negra. Mas no Japão ainda se define como hafu. Como Miss Universo Japão, ela pouco mencionou suas origens negras e se apresentou em lugar disso como representante de todos os japoneses de etnia mista, não importa quais sejam suas origens.

    Mas especialistas em concursos de beleza dizem que foi precisamente por ela ser meio negra que Ariana recebeu tamanha atenção. Dizem que sua vitória derrubou uma hierarquia silenciosa entre os hafu, sob a qual as pessoas de pele mais clara costumam ser celebradas como mais bonitas.

    "Ariana é a Miss Universo Japão mais comentada de todos os tempos", disse Stephen Diaz, o correspondente japonês do site "Missology", que cobre concursos de beleza. Ele diz que Miyamoto dominou um concurso que exigia que as participantes mostrassem passos de dança e usassem vestidos de festa elegantes, além do obrigatório desfile em traje de banho.

    "Ariana tem uma história pessoal que outras misses Japão não têm", disse Maki Yamaguchi, candidata ao Miss Universo Japão 2014 e agora assessora de Miyamoto. "Ela é uma miss que tem uma missão a cumprir: eliminar a discriminação".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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